A nova normativa, que permite o registro civil de indígenas conforme sua autodeterminação, foi apresentada nesta terça-feira (8), com o ato simbólico de entrega das certidões atualizadas a lideranças indígenas

Durante a cerimônia foi realizada a entrega dos atos notariais de alteração de nome indígena de lideranças que, atualmente, ocupam o Poder Executivo. Foto: Rony Eloy – Imagem postada em: MPI

Na terça-feira (8), em Brasília, o Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) participaram da solenidade de entrega da Resolução Conjunta nº 12 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). A Resolução é o novo marco legal para registro indígena, ou seja, é a norma que regulamenta para o sistema de Justiça, cartórios e tribunais o registro civil para os povos indígenas no Brasil. Durante a cerimônia também foi realizada a entrega das certidões de nascimento atualizadas com o nome indígena a lideranças que, atualmente, ocupam o poder público.

A Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 12, de 13 de dezembro de 2024, alterou a Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 3, de 19 de abril de 2012. Após entrar em vigor, a Resolução passou a garantir a facultatividade do registro civil de nascimento da pessoa indígena, conforme a autodeterminação dos povos indígenas, entre outros direitos. Um deles é o nome de livre escolha do registrando, ou seja, o pedido de nome do declarante indígena deve constar da forma que ele ou ela quiser.

Durante a cerimônia, o ministro Luiz Roberto Barroso comentou sobre os obstáculos encontrados pelos povos indígenas diante da normativa anterior. De acordo com o ministro, o ordenamento jurídico brasileiro estabelecia uma série de condicionantes para a alteração dos nomes com base no Código Civil e na lei dos registros públicos e para a retificação do nome civil indígena, as pessoas dependiam de ação judicial, que desencadeava num processo moroso e oneroso que, muitas vezes, resultava na negativa do pedido com base em interpretações excessivamente restritivas da legislação em vigor. “Essa resolução do CNJ teve por finalidade modernizar e facilitar essas alterações, visando corrigir essas distorções e harmonizar o registro civil com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, o reconhecimento da diversidade cultural e, muito importante, da autodeterminação dos povos indígenas”, defendeu o ministro.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, comemorou a resolução como um resultado efetivo do aldeamento do Estado, com a presença de lideranças indígenas na gestão pública. “Chegou o tempo da colheita! Como efeito dos diálogos jurídicos e interculturais promovidos por toda a justiça brasileira, o encontro da beleza se fez. Agora, vamos colher aquilo que é o resgate e a reparação histórica para os povos indígenas: o direito ao nome, sobrenome, etnia e à ancestralidade em nossos documentos oficiais sem tutela e sem racismo”, disse. De acordo com a ministra, a Resolução Conjunta nº 12, de 13 de dezembro de 2024, representa um avanço significativo ao desburocratizar o acesso das populações indígenas ao registro civil, quando comparada com a normativa anterior, a Resolução Conjunta nº 3, de 19 de abril de 2012.

Sonia Guajajara falou sobre a importância da superação do regime de tutela estatal no regramento jurídico brasileiro possibilitado por meio da resolução, que desvincula a necessidade de intermediação do registro civil de indígenas por órgãos do Estado. “Enquanto a norma anterior condicionava o registro ao RANI ou à presença de representante da FUNAI, criando obstáculos formais que desconsideravam contextos socioculturais específicos, a nova resolução reconhece a Declaração de Nascido Vivo e o testemunho de terceiros como provas suficientes, mesmo na ausência de documentação oficial”, disse.

Em seu discurso, a ministra também retomou o processo histórico de violação de direitos vivenciado pelos povos indígenas brasileiros, praticado inclusive pelo próprio Estado que, desde a colonização, ergueu um arcabouço legal que naturalizou por séculos a expropriação de territórios indígenas, a negação à sua autonomia e identidade e outros tipos de violência. “Os povos indígenas, ensina a História, sempre foram um assunto de Estado. No caso brasileiro, toda uma estrutura foi fundada em convicções de civilização e colonização que articularam a economia, a política, a cultura, a religião e o direito para corromper, subjugar, escravizar e roubar a terra dos nossos ancestrais. Qual forma melhor senão a de minar as identidades indígenas com o sequestro do modo tradicional de vida e a imposição autoritária do modo de vida do invasor?”, disse Sonia Guajajara.

Joênia Wapichana, presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), também reforçou a importância do rompimento da intermediação estatal para o registro civil das pessoas indígenas. “Essa resolução reforça um direito que já é previsto na nossa Constituição Federal, desde 1988. Pois ela assegura o direito ao nome indígena e põe fim à exigência do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), garantido dessa forma que os direitos dos povos indígenas sejam respeitados em sua totalidade”.

Os nomes indígenas, conforme defendido pela presidente da Funai, conectam as histórias individuais às histórias coletivas e à própria história do Brasil. Eles representam a diversidade cultural e fortalecem os direitos indígenas a partir da sua reafirmação. “É tempo de mudanças para a reparação, tempo de mudanças para reafirmações. O Estado brasileiro tem essa dívida histórica com os povos indígenas, a começar pelo primeiro desafio, respeitar a forma como os povos indígenas se identificam. Os nomes indígenas são importantes para identidade, porque eles conectam a nós, indígenas, com as nossas línguas, nossa cultura, nossa tradição, nossa  espiritualidade, nossa religiosidade. Representam também a nossa relação com a terra, a nossa relação com os nossos ancestrais”, disse.

Em 2022, 89,1% dos nascimentos de indígenas foram registrados em cartórios, um aumento em relação aos 67,3% de 2010, de acordo com dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ato simbólico

Durante a cerimônia foi realizada a entrega dos atos notariais de alteração de nome indígena de lideranças que, atualmente, ocupam o poder público. A ministra Sonia Guajajara, o ministro Barroso e o ministro Mauro Campbell Marques fizeram a entrega das certidões de nascimento atualizadas com os nomes indígenas ao secretário-executivo do MPI, Eloy Terena, à presidente da Funai, Joenia Wapichana, à secretária Nacional de Gestão Ambiental e Territorial Indígena do MPI, Ceiça Pitaguary, ao secretário substituto de Articulação e Promoção de Direitos Indígenas, Uilton Tuxá do MPI, ao escritor Daniel Munduruku e à estagiária do CNJ, Paola Raquel Tukano.

O ministro Mauro Campbell Marques destacou que a resolução vem para que seja superada a invisibilidade indígena nos registros públicos, com a ausência dos marcos distintivos do pertencimento indígena dos povos indígenas no registro civil de uma população historicamente vulnerabilizada. “O que assistimos hoje é o compromisso transformador do poder público. Sabemos que o sub registro civil e o registro tardio fazem parte da desafiadora realidade enfrentada pelos indígenas do nosso país. Compreendemos que, sem o registro civil de nascimento, os direitos morrem antes mesmo de nascerem e junto deles, a cidadania”, comentou o ministro.

A presidente da Funai, que recebeu em mãos o novo registro civil, defendeu a necessidade de reparação pelo Estado, com respeito à autonomia e à autodeterminação indígena. “Esse ato que fizemos hoje vem mostrar que é possível um processo de reconstrução de identidade, de reivindicação das nossas línguas indígenas, do direito à nossa terra. E também é uma forma de demonstrar respeito à nossa cultura. Wapichana é importante para mim, assim como para todos que são Wapichana. Isso representa uma reafirmação dos nossos direitos constitucionais”, completou a presidente da Funai.

O que mais institui a Resolução?

O povo indígena, também considerados a etnia, grupo, clã ou a família indígena a que pertença o registrando, pode ser lançado como sobrenome. A aldeia ou o território de origem da pessoa indígena, bem como de seus ascendentes, poderão constar como informação a respeito das naturalidades, juntamente com o município de nascimento, no registro civil.

Ainda, caso o declarante tenha interesse em adicionar os dados na língua indígena, o registrador civil deverá acatar e, em caso de dúvida acerca da grafia correta, deverá consultar a pessoa com domínio do idioma indígena, a ser indicada pelo declarante.

Se o registro de nascimento da pessoa indígena estiver desacompanhado da respectiva Declaração de Nascido Vivo (DNV), o registrador civil deverá exigir declaração firmada por duas testemunhas, maiores e capazes, diferente dos genitores, que tenham presenciado o parto do recém nascido. Na ausência das testemunhas, o registrador civil poderá exigir uma prova complementar, como acompanhamento pré-natal, carteira de vacinação, etc. Se houver dúvida quanto à autenticidade de qualquer dos documentos apresentados, o registrador civil submeterá o caso ao Juízo competente, fundamentando os motivos da dúvida.

Se o declarante do registro não compreender a língua portuguesa, ele ou ela poderá indicar um tradutor ou pessoa de confiança, para auxiliá-lo. A pessoa indígena maior e capaz, registrada no Registro Civil das Pessoas Naturais, poderá solicitar mediante ofício a alteração do seu prenome, assim como a inclusão do povo indígena, também considerada a etnia, grupo, clã ou a família indígena a que pertença, como sobrenome.

O registro tardio de nascimento da pessoa indígena será realizado mediante requerimento do próprio registrando, ou de seu representante legal se for incapaz, ao serviço de Registro Civil das Pessoas Naturais.

Por fim, se o registrador civil tiver dúvida ou suspeitar da falsidade da declaração das testemunhas do requerimento do registro tardio, poderá exigir: uma declaração de pertencimento a comunidade indígena, assinada por pelo menos três integrantes indígenas da respectiva etnia; informação de instituições representativas ou órgãos públicos que atuem e tenham atribuição de atuação nos territórios onde o interessado nasceu ou residiu, onde seu povo, grupo, clã ou família indígena de origem esteja situada e onde esteja sendo atendido pelo serviço de saúde.

Cartilha

Na ocasião, também foi lançada cartilha da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen-Brasil), para informar os indígenas sobre seus direitos específicos de registro civil.

Com apoio do MPI, a Arpen-Brasil desenvolveu a cartilha contendo orientações para a população indígena sobre procedimentos relacionados ao registro civil de nascimento que a engloba. O objetivo principal deste material é apresentar, de forma clara e acessível, as novas regras para o registro civil de nascimento de pessoa indígena, assim como as possibilidades de retificação ou alteração do registro, respeitando sua identidade, cultura e autodeterminação. O guia visa assegurar os direitos das populações indígenas em âmbito nacional no Registro Civil, promovendo cidadania, respeito e inclusão.

FONTE: MPI – Com presença do MPI e da Funai, CNJ e CNMP apresentam Resolução Conjunta sobre novo marco legal indígena — Ministério dos Povos Indígenas