Qualquer Semelhança não é Mera Coincidência
Continuando engarupado na memória:
Tribuna da Imprensa n° 4.311, Rio, RJ
Sábado, 28 e Domingo, 29.03.1964
Censura Calou as Emissoras
O Conselho Nacional de Telecomunicações foi empregado, pela primeira vez, na crise da Marinha, como órgão de censura, encarregado da distribuição do noticiário para as emissoras de rádio e televisão, em todo o País. O estabelecimento da censura prévia às emissoras de rádio e televisão foi instituído na noite de anteontem, especificamente com relação à crise da Marinha, recebendo as emissoras instruções de somente darem à publicidade as notas oficiais expedidas pelo CONTEL. Até ao fim da noite de ontem, quando a situação já era considerada “normal”, persistia a censura, que se acredita venha a ser levantada hoje. Um porta-voz do CONTEL disse que a censura foi estabelecida para impedir que a “onda de boatos, comum nas horas de crise”, fosse levada ao ar, levando a inquietação à população do País.
A Omissão do Governo foi Furada Pelo Exército
A crise na Marinha de Guerra, que assumiu aspectos dramáticos durante o dia de quinta-feira, lançando o País no sobressalto e na inquietação, ainda não estava resolvida definitivamente na noite de ontem. O sr. João Goulart, responsável maior pelos acontecimentos, depois de manter-se omisso durante as primeiras doze ou quatorze horas, regressou ao Rio, na madrugada de sexta-feira, para autorizar o Exército a agir e nomear um novo ministro da Marinha, o almirante Paulo Mário. É difícil avaliar, a esta altura, os prejuízos que o episódio pode ter trazido à ordem pública e à disciplina das Forças Aramadas, às quais incumbe responder pela estabilidade e pela segurança do regime. Um grupo de militares, sem dúvida instigado por agitadores, mas certamente reagindo ao estado de coisas reinante em sua corporação, onde a indisciplina, a desordem e a corrupção complementam-se pelas injustiças, sublevou-se num gesto que se quis comparar a uma espécie de “Potemkin” ([1]) a seco. Uma tropa de 80 homens, mandada para submeter os rebeldes, desintegrou-se em plena rua, aos olhos de todos. E, durante quase um dia inteiro, o governo omitiu-se: esteve vago e vazio, não só moralmente, conforme costuma estar, mas, desta vez, fisicamente. O ministro da Marinha, que há tempos se desdobrava para manter-se no cargo, embora já não contasse com a confiança integral nem dos seus companheiros de armas, nem do presidente da República, mandou afinal ao Palácio a sua carta de demissão. O sr. Goulart não estava lá para recebê-la e nem era encontrado em ponto nenhum do território nacional.
Em seu lugar, o chefe da Casa Civil, sr. Darci Ribeiro procurou reunir o ministério, mas o ministério nada podia fazer. Afinal, já não estamos no sistema parlamentarista; só restava esperar pelo presidente, e o presidente, de um modo ou de outro, tinha de acabar aparecendo.
Premeditação
Dir-se-ia que o gesto dos marinheiros reunidos no sindicato dos metalúrgicos, surpreendeu a todos, a começar pelas mais altas autoridades do País. Mas não foi assim. A crise vinha amadurecendo devagar; tudo era previsível e tudo devia estar previsto por autoridades dignas desse nome. Ao contrário, atentando para a maneira como se passaram as coisas, assim como para o que continua a acontecer no rescaldo da crise, não há como fugir à ideia de que a omissão do sr. João Goulart foi deliberada e consciente. Dependia dele ter tomado as providências capazes de prevenir o episódio ou, uma vez deflagrada a sublevação, reduzi-la e dominá-la no nascedouro, em vez de deixá-la crescer desmesuradamente, ao menos do ponto de vista publicitário. A omissão do sr. João Goulart, entretanto, serviu para que o País pudesse comprovar algumas verdades fundamentais, a que já temos feito referência expressa.
A primeira delas é que, apesar de presidente da República e comandante-chefe das Forças Armadas, não é dele que dependem a ordem pública e a segurança das instituições no Brasil Estas baseiam-se em organizações e serviços, cujos fundamentos a ação desagregadora do chefe do Governo não conseguiu atingir.
A Marinha, assaltada pela crise, deixou-se paralisar pela ausência de comandos hábeis. O ministro Mota, digno sucessor do ministro Suzano, demitiu-se na hora do aperto embora não tivesse a quem devolver o cargo, preferiu não assumir as responsabilidades que o momento exigia, ou não teve forças para assumi-las, depois de um determinado número de semanas gastas em fortificante equilíbrio para se conservar no posto. Quanto ao almirante Aragão responsável direto pelo estado de coisas reinante entre a tropa dos fuzileiros navais, não seria precisamente dele que se poderia esperar qualquer providência eficaz. Demitiu-se também, embora dizendo que não se demitia e que contava com o sr. Goulart para ficar onde estava.
O Exército
Se o resto do País se manteve, apesar disso, em inteira ordem, e se a sublevação não se alastrou, este fato veio comprovar mais uma vez o quanto é sem raízes a agitação e como a máquina da lei continua a funcionar, mesmo à revelia do seu chefe nominal. Desde o primeiro momento, o Exército tomou posições e colocou-se em situação de cumprir as suas atribuições com eficiência e rapidez. É inútil que nos perguntemos a quem pertence o “dispositivo” que se pôs em movimento com tanta naturalidade, mesmo numa hora em que o próprio ministro da Guerra, recém-operado, achava-se recolhido a um hospital. O Exército isolou o foco rebelde, recusando passagem até mesmo a um ministro de Estado, título que calha mal no sr. Amauri Silva, que se fazia acompanhar de dois líderes conhecidos do CGT. Para quem quer que raciocine com um mínimo de bom-senso, é fácil extrair daí as conclusões óbvias sobre os possíveis desdobramentos da crise, caso tivesse ido adiante.
O caos a que se está querendo deliberadamente levar o Brasil, não vingará, embora as agitações e provocações a que se procede por sistema, sob o alto patrocínio do presidente da república, possam muito bem dar, numa das voltas do caminho, em uma solução muito diferente da que desejam os esquerdistas brasileiros Esta solução, seja nasserista ou apenas peronista, deu mais um passo considerável entre a quinta e a sexta-feira. Pode vir muito antes do que se espera, se a reação democrática não continuar a crescer como deve, pelo País, que já não é o mesmo de 1937.
Inconsequência
Um grande matutino da Guanabara publicou, na manhã de quinta-feira, no alto de sua primeira página, uma bela fotografia do líder rebelde, o marinheiro José Anselmo. No dia seguinte publicava, em 8 colunas, uma manchete igualmente estimulante, na qual se dizia que o governo estava impotente diante da rebelião. Ao pé da página trazia o matutino, que é, sem favor, o mais bem feito jornal brasileiro, um severo e sóbrio editorial em corpo 10. Mas nem sempre se pode apagar o fogo soprando-o ao mesmo tempo.
Tranquilidade
Pelo menos a um ponto da Guanabara a rebelião da Marinha trouxe alguma tranquilidade. Quinta e sexta-feira, contrariando seus hábitos, o almirante Aragão deixou de comparecer ao Bridge Clube, no posto 6, onde costuma gastar o seu tempo de folga jogando pif-paf.
# Sublevação Matou Três Marinheiros #
A existência de pelo menos três marinheiros mortos, num tiroteio havido na manhã de ontem no pátio interno do Ministério da Marinha entre oficiais do gabinete do Ministro Sílvio Mota e praças amotinados, foi confirmada ontem por fontes do gabinete do novo Ministro, sem precisar, porém, o número exato dos vítimas, ou identificá-los. Enquanto um porta-voz do gabinete Sílvio Mota manifestava, à tarde, a existência de seis vítimas, sem precisar se feridos ou mortos, a Associação dos Marinheiros e Fuzileiros indicava a existência de sessenta vítimas, incluindo mortos. Na Candelária, onde se concentraram após terem sido postos em liberdade, os marinheiros homenagearam, com um minuto de silêncio, “os companheiros que tombaram”.
Incidente
O incidente teve lugar por volta das 06h30 de ontem após o hasteamento da bandeira. Cerca de 600 marinheiros integrantes das guarnições dos navios que se encontravam atracados no cais leste iniciaram uma concentração junto ao cais e decidiram marchar com uma bandeira nacional à frente até ao Sindicato dos Metalúrgicos, onde ainda se encontravam em assembleia, três mil companheiros.
Os marujos que literalmente tomaram a Ilha das Cobras saíram desarmados, não encontrando qualquer resistência por parte da oficialidade dos navios atracados. Ao passarem pelo pátio interno, defronte ao prédio central, um dos oficiais do gabinete do Ministro Silvio Mota fez disparos de metralhadora, alertando-os que parassem. Os disparos foram feitos para o chão sem atingir ninguém.
Revide
Fuzileiros que formavam a guarda do portão do Ministério ouvindo os disparos revidaram com tiros de metralhadora em direção à janela do edifício, em defesa dos companheiros que marchavam. A esses disparos responderam com novos tiros vindos do gabinete, atingindo a alguns marinheiros.
O incidente deu margem a que as tropas do Exército que se encontravam nas proximidades, cercassem o prédio anunciando que o ocupariam militarmente se novos disparos se registrassem.
Ao mesmo tempo diversas ambulâncias do Hospital Central da Marinha entravam no Ministério e o prédio era totalmente interditado a civis, impedindo-se mesmo a presença de jornalistas na cerimônia de transmissão de cargo.
Vítimas
Por volta do meio-dia, um porta-voz do gabinete do Ministro Sílvio Mota confirmava a existência de “seis vítimas” sem todavia precisar se se tratavam de mortos ou feridos. Mais tarde os próprios marinheiros manifestavam a existência de sessenta vítimas “inclusive mortos”, homenageando “os companheiros que tombaram” na concentração que realizaram nas escadas da Igreja da Candelária.
# Crise Devolve à GB Importância de Capital #
A crise na Marinha veio provar, mais uma vez, que o Estado da Guanabara continua sendo a verdadeira Capital da República, pois exatamente aqui se desenrolam os acontecimentos que comandam a vida do País. A importância política da Guanabara, que nos últimos tempos fez crescer o cerco do governo Federal ao Governo Carlos Lacerda, é de tal ordem que em nenhum outro Estado da Federação há tantos pretendentes ao seu Governo.
No momento, são candidatos ao Guanabara elementos das mais variadas tendências, alguns apoiados por partidos políticos, outros apenas em cargos que ocupam. O desejo de ter a Guanabara nas mãos é tão grande que aspiram ao Governo do Estado, sem contar naturalmente com os candidatos do PTB e da UDN, nada mais, nada menos que os srs. Hélio de Almeida, Francisco Negrão de Lima, Osvino Ferreira Alves, Saldanha Coelho, Elói Dutra, Mourão Filho, Leonel Brizola e Amaral Neto.
Como se vê, são tantos os candidatos que, se todos resolverem disputar, o número de partidos políticos atualmente legalizados será pequeno para o registro de todos.
No número de pretendentes sem partido ainda, não foram incluídos os srs. Sérgio Magalhães e Hélio Beltrão, porque estes já ocupam posições definidas no campo eleitoral.
A Importância
A importância da Guanabara como centro de difusão cultural do País é causa do grande empenho em controlar a vida política e administrativa do Estado. Os grupos políticos em luta pelo controle do País não desconhecem essa importância e daí a série de providências tomadas pelo governo federal para esvaziar do seu conteúdo o Estado da Guanabara.
O processo de federalização da Polícia Militar e das Forças Auxiliares do Estado teve esse sentido. Retirar das mãos do sr. Carlos Lacerda um instrumento de prestígio junto à opinião pública do Estado.
Outras providências correlatas do governo federal, como o deslocamento de tropas federais para a garantia do comício do dia 13 na praça Cristiano Otôni, teve também o mesmo sentido – esvaziar o Governo Estadual. Mas o fundamental foi que o comício fosse realizado no Rio e justamente contra as proibições da Lei.
Centro
A participação do deputado Hércules Corrêa na crise da Marinha, de vez que foi esse deputado um dos que mais colaborou com o marinheiro José Anselmo, concitando-o a resistir quando ainda havia dúvida entre a marujada, veio mostrar que a representação estadual é de importância vital para qualquer esquema que pretenda ser montado para o controle dos acontecimentos políticos.
Enquanto alguns deputados federais eram barrados por forças da PE, e até por choques de fuzileiros, era o deputado Hércules Corrêa quem, em companhia do sr. Dante Pelacâni, transmitia a palavra de ordem aos marujos rebelados.
O fato por si só prova que o controle político da Guanabara, pelo qual se bate com insistência o governo federal, é a pedra fundamental de qualquer movimento de massa no País. […]
Hiram Reis e Silva, Bagé, 3.03.2025, um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
– Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
Link: Currículo do Canoeiro Hiram Reis e Silva
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS);
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO);
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS);
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG);
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN);
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
- E-mail: hiramrsilva@gmail.com
FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor
[1] Potemkin: motim de marinheiros russos contra as autoridades militares, em 1905, a bordo do encouraçado “Kniaz Potemkin Tavricheski”, no Mar Negro. (Hiram Reis)
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