COP30 é oportunidade para Brasil se apresentar como referência na preservação da Amazônia, mas governo ainda adota políticas que promovem intensos impactos ambientais, diz biólogo que pesquisa a região há mais de quatro décadas
Philip Fearnside foi um dos integrantes do IPCC laureados com o prêmio Nobel da Paz de 2007. Em entrevista ao Jornal da Unesp, ele defende que realização de encontro da ONU em Belém este ano motive executivo federal a rever programas e projetos que apoiam exploração descontrolada e desmatamento, e contribuem para as mudanças climáticas. “O país precisa assumir de verdade este papel de liderança ambiental com urgência”, diz.
Este ano, em novembro, os olhos do planeta vão se voltar para a Amazônia brasileira, que receberá na cidade de Belém a 30ª edição da Conferência das Nações Unidas sobre a Mudança Climática, a COP30. Espera-se que, como país anfitrião, o Brasil desempenhe um papel de liderança junto à comunidade global a fim de superar os muitos entraves que marcaram a COP29, em 2024. Paira no ar a possibilidade concreta de que o encontro de novembro assinale o início de um desmonte do arcabouço diplomático global, erguido durante décadas, para combater a mudança climática. Porém, o governo brasileiro corre o risco de chegar à mesa de negociações carecendo da autoridade moral para exercer a liderança tão necessária neste momento, devido aos seus muitos insucessos na defesa de seu quinhão da maior floresta tropical do planeta. Pior: boa parte dos quadros do governo federal defende uma abordagem exploratória e pouco sustentável do bioma.
Uma das vozes mais ativas em denunciar as inconsistências na posição do governo brasileiro, à medida que se aproxima a COP30, é o biólogo Philip Martin Fearnside, 77. Americano que mora há mais de quatro décadas no país, Fearnside é um dos decanos do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), e também um dos líderes de um grupo internacional que agrupa dezenas de cientistas para investigar os impactos do desmatamento sobre a floresta. Ele também é um dos mais de 2 mil cientistas que integrava o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) da Organização das Nações Unidas (ONU), quando o órgão teve sua atuação premiada com o Nobel da Paz em 2007.
Fearnside compartilhou suas preocupações com a Amazônia em uma palestra destinada aos estudantes e docentes da Unesp presentes à 36 ª edição do Congresso de Iniciação Científica (CIC) da Unesp, realizado em fins de novembro. Na ocasião, o pesquisador concedeu a seguinte entrevista ao Jornal da Unesp. Na conversa, ele fez questão de destacar a importância da COP30 vindoura, e a oportunidade que ela oferece para que nosso país reforce seu protagonismo na articulação diplomática em torno do clima, posicionando-se como exemplo para outras nações e lutando por um futuro melhor para os próprios brasileiros. “O Brasil seria devastado se o aquecimento escapar do controle, o que está bem perto de acontecer. O país precisa assumir de verdade este papel de liderança ambiental com urgência”, diz.
De acordo com o serviço climático europeu Copernicus, um dos principais fornecedores de dados globais, o ano de 2024 foi o mais quente já registrado e o primeiro a ultrapassar a marca de 1,5°C de aumento na temperatura média da Terra em relação aos níveis pré-industriais. A informação foi divulgada nesta sexta-feira, 10 de janeiro.
*****
Este ano, pela primeira vez uma COP vai ocorrer na Amazônia, e o senhor tem falado sobre a importância do evento para intensificar a defesa do bioma. O que mais lhe preocupa, neste momento, com relação ao futuro da Amazônia?
Philip Fearnside: São muitas ameaças, que estão agindo em conjunto e convergindo no bioma. Você tem o desmatamento atual, já bem conhecido, mas também há obras que levarão ao desmatamento no futuro. Não é só o que acontece neste ano. Quando se abre uma grande área de floresta para a construção de estradas, por exemplo, o que acontece depois foge do controle do governo. Entram grileiros, [trabalhadores] sem-terra, madeireiros e outros, e destroem a floresta. E é isso o que está acontecendo com a reconstrução da rodovia BR 319, Manaus-Porto Velho, e as estradas ligadas a essa obra. Não se trata de uma estrada apenas. São várias estradas laterais que abrem aquela enorme área de floresta no oeste do estado do Amazonas. Essa é uma das maiores ameaças.
Existem outras [ameaças]. Tem a degradação da floresta, que não é um corte raso, nessa discussão. Por meio da exploração madeireira, prepara-se a floresta para pegar fogo. Porque você deixa toda a madeira morta dentro da floresta, além de galhos e árvores que são mortas acidentalmente. E tudo isso é lenha. Quando acontece um incêndio, isso leva a floresta a pegar fogo mais facilmente, o fogo se torna mais quente e mata mais árvores. Então, essa degradação é uma coisa do mesmo porte do desmatamento.
E também temos a mudança climática, gravíssima. Se escapar de controle, não vai ter mais floresta amazônica. Isso está muito perto de acontecer e a própria destruição da floresta está contribuindo para a mudança climática. Porque ela abriga uma quantidade de carbono tão grande que, se for liberada, em poucos anos irá empurrar o clima global para além do ponto de não retorno. Nesse caso, mesmo que toda a sociedade humana pare de emitir carbono, não queime mais nem um litro de gasolina, não corte nem mais uma árvore, não haverá mais como controlar.
A Amazônia está no centro de toda a discussão ambiental. O Brasil precisa assumir a liderança no combate ao efeito estufa, porque seria um dos países mais vitimizados. Perderia a Floresta Amazônica, que é essencial, obviamente, para pessoas que moram na Amazônia, mas também para quem reside em São Paulo. Porque aqui, em São Paulo, temos a água que vem da Amazônia pelos chamados rios voadores, os ventos que vêm de lá. Ela é reciclada por meio da Floresta Amazônica. Se a floresta for desmatada, aquela água irá embora pelo rio Amazonas, não virá mais para cá. Então, não temos mais tempo a perder. O clima aqui está mudando, e já podemos ver essas enormes secas, como as de 2014 e de 2021, quando São Paulo quase ficou sem água.
Outras regiões também seriam muito impactadas…
Philip Fearnside: O Nordeste pode virar um deserto, por exemplo. Dezenas de milhões de pessoas vivem de agricultura lá. A costa possui grande densidade populacional e pode vir a sofrer com grandes tufões, aumento do nível do mar. O agronegócio seria devastado, e toda a agricultura familiar… Tivemos surpresas climáticas como a grande enchente de 2014 no rio Madeira, e em 2023 e 2024 no Rio Grande do Sul. Eventos desse tipo, que não foram previstos nos modelos de clima, tendem a aumentar.
Então o Brasil precisa assumir a liderança nessa questão. E não está fazendo isso. Existe todo o discurso sobre a importância da COP30 etc e tal. Mas, com exceção do Ministério do Meio Ambiente, que tenta controlar o desmatamento, todo o restante do governo está do outro lado. Por exemplo, querem ampliar a exploração de petróleo na costa, inclusive na foz do Rio Amazonas, grandes leilões para fazer dentro da Floresta Amazônica, um enorme plano justamente naquele lugar no oeste do estado do Amazonas para gás e petróleo… Tem que mudar [essas políticas]. Tem também a coisa de legalizar as reivindicações de invasões em terras públicas, o grande motor do desmatamento…
Por que você se opõe à proposta de exploração de petróleo na região da margem equatorial da Amazônia pela Petrobras?
Em termos de efeito estufa, é uma loucura. Até a Agência Internacional de Energia, que não é um grupo ambientalista, divulgou um relatório dizendo que não se deve começar nenhum novo campo de petróleo e gás no mundo. Apenas usar os que já existem. E deve-se diminuir a extração paulatinamente, até zerar em 2050. Porque, quando se inicia um novo campo, como aquele proposto para a foz do rio Amazonas, a previsão é levar cinco anos apenas para começar a produção comercial. Daí, seriam mais cinco anos para pagar o investimento. E ninguém quer parar algo com zero de lucro, então, segue em frente. Essa exploração deverá continuar por décadas, e isso em um tempo em que o mundo inteiro tem que parar de explorar petróleo. Mesmo financeiramente, não faz sentido.
Ao mesmo tempo, em termos do impacto ambiental, é gravíssimo. É só lembrar o que aconteceu no Golfo do México em 2010: um grande derramamento da [plataforma] Deepwater Horizon, os poços da British Petroleum Company. Jorrou petróleo durante cinco meses e ninguém no mundo conseguiu parar o vazamento. Esse caso ocorreu em 1,5 km de profundidade na água. A exploração que querem fazer na foz do rio Amazonas será o dobro [profundidade], ou seja, ninguém no mundo tem tecnologia para parar um vazamento desse porte. Se tivesse, se a Petrobras tivesse esse conhecimento, teria ido lá ajudar, no Golfo do México, e parar o vazamento. Todo o discurso, de como o setor é muito avançado e preparado, não cola, porque de fato a prova é o que aconteceu lá. Então, é só uma questão de tempo. Se se colocar o risco de acontecer algum vazamento de forma constante, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer.
A lógica econômica sempre pressiona a lógica ambiental. Como romper esse suposto contraponto e uni-las?
Philip Fearnside: Quando se fala de sobrevivência das pessoas, geralmente se pensa nas pessoas mais pobres, que estão plantando para comer, mas isso é absolutamente mínimo em termos do total de desmatamento. A área desmatada está virando pastagem, e não sendo usada para plantar macaxeira e coisas deste tipo. Esse argumento serve como discurso para justificar não controlar o desmatamento, mas realmente a grande força é outra. Em termos econômicos, existe a força do mercado de exportação. O Brasil é o maior exportador de soja e também de carne de boi no mundo. Isso significa que o Brasil produz muito mais desses dois produtos do que a população brasileira come. Então, cada hectare a mais que é desmatado é para exportação, não é para alimentar a população brasileira.
Isso é uma decisão. As pessoas pensam que a economia é uma mão invisível que vai guiando o que acontece. A ideia de que a Floresta Amazônica vai ser transformada em uma grande pastagem ou em campos de soja porque o mundo quer comprar esses produtos é um engano. É uma decisão do país, se quiser transformar a Amazônia para exportar mais desses produtos. Os países são soberanos, tanto no que importam – a Europa, por exemplo, está questionando soja aqui, o desmatamento etc. – , e também no que exportam.
O Brasil no passado já decidiu não exportar várias coisas. Por exemplo, antes do Código Florestal de 1965, o país exportava pele de onça e o mundo queria pagar bem e queria comprar. O Brasil decidiu que não ia vender mais, e não exporta mais. Decidiu, é soberano para isso. Também teve moratória de mogno em 1996. O mundo quer comprar mogno e paga caro, mas o país diz “não. Se quiser comprar, compre de outro lugar e não daqui, porque o dano é demasiado”. Então pode-se dizer “não queremos transformar a Amazônia em pasto e soja, vamos parar aqui”. É uma decisão do Estado, não é a economia que governa o país.
Durante sua apresentação, o senhor citou a questão dos serviços ambientais como uma estratégia para o desenvolvimento sustentável, algo que é defendido também pela ministra Marina Silva quando enfatiza que é mais vantajoso manter a floresta de pé. É possível visualizar essa abordagem prosperando em um futuro próximo?
A biodiversidade tem um valor utilitário, tal como oferecer informações para novos fármacos, e também um valor intrínseco, muito importante. É só pensar que todas essas unidades de conservação foram criadas com base nesse valor, e não para produzir fármacos ou outra coisa. Muito menos para controlar a questão do aquecimento global. Então, na prática, tem muito valor. Você tem a reciclagem de água, essencial para o Brasil e para países vizinhos, como a Argentina, onde as pessoas realmente estão mais preocupadas do que os próprios brasileiros. Isso não é uma coisa global, não afeta o hemisfério norte, mas é essencial para o Brasil.
É isso que mantém, por exemplo, a cidade de São Paulo, e muito do agronegócio no Centro-Oeste. Ou seja, são áreas que dependem desta água, água que é reciclada da Floresta Amazônica. Sobretudo a parte da floresta que está sendo ameaçada pela rodovia BR-319 e as estradas ligadas a ela, e que é transportada pelos chamados rios voadores para o Sudeste do Brasil. E também tem a função de manter a própria Floresta Amazônica, porque toda a parte sudeste da Amazônia depende dessa água para que a floresta viva. Se isso se perder, será uma catástrofe enorme. Esse é outro grande serviço ambiental, mas não se pode esperar que os países ricos paguem por ele.
Agora, conter o aquecimento global, sim, é de interesse do mundo inteiro. O Brasil, claro, é o mais interessado, porque seria um dos países mais impactados, se esse processo escapar do controle. Evitar que isso aconteça é algo de muito valor. É uma questão de como isso pode ser recolhido e empregado para preservar a floresta, assim como as pessoas que realmente são os guardiões da floresta. Essa lei sobre o mercado de carbono, do que jeito que está, beneficia os grandes fazendeiros e não é voltada para manter a floresta com os povos tradicionais. Então é uma coisa que depende de como a legislação é empacotada, mas os serviços ambientais têm um valor real. É questão de montar as instituições para que isso aconteça.
O que, na prática, o Brasil poderia fazer a fim de chegar à COP30 em condições de se colocar como exemplo no combate à mudança climática, e em melhores condições para desempenhar um papel de liderança?
Philip Fearnside: Para servir de exemplo na COP30, o Brasil precisa tomar medidas práticas em todos os ministérios para reduzir as emissões de gases de efeito estufa. Atualmente, apenas o Ministério do Meio Ambiente e das Mudança Climáticas está efetivamente engajado neste esforço.
O Ministério de Minas e Energia precisa desistir de abrir novos campos de gás e petróleo e aumentar os campos já existentes, cancelando o segundo “leilão do fim do mundo” que está programado para as próximas semanas e declarando o abandono de planos futuros de extração, como a exploração na foz do Rio Amazonas e o projeto “Área Sedimentar Solimões” na Floresta Amazônica. O Ministério dos Transportes precisa desistir do seu plano de reconstruir a Rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), que implica na abertura de grandes áreas de floresta à entrada de desmatadores. O Ministério da Agricultura precisa parar de subsidiar soja e gado, e o Incra precisa desistir de legalizar ocupações e reivindicações que envolvam terras públicas, pois esse é um dos grandes motores do desmatamento. Apenas adotar um discurso verde sem tomar as medidas práticas não vai transformar o Brasil em uma liderança climática. E o Brasil seria devastado se o aquecimento escapar do controle. Isso está bem perto de acontecer. O país precisa assumir de verdade este papel de liderança ambiental com urgência.
ÍNTEGRA DISPONÍVEL EM: Jornal da UNESP – Jornal da Unesp | COP30 é oportunidade para Brasil se apresentar como referência na preservação da Amazônia, mas governo ainda adota políticas que promovem intensos impactos ambientais, diz biólogo que pesquisa a região há mais de quatro décadas
Deixe um comentário