“Esse projeto foi um sonho realizado dentro da nossa aldeia”, conta Israel Aparício, tuxaua de São Pedro do Cuiú Cuiú. “A realização do projeto despertou um interesse muito grande dentro da comunidade, o resgate da língua materna era algo que vínhamos sonhando bastante e nos incentivou a buscar a nossa própria organização para realizar esse sonho”, acrescenta.

Moradores da aldeia São Pedro do Cuiú Cuiú, comitiva de indígenas Miranha da Colômbia e parceiros do projeto reunidos durante o encerramento do encontro. Foto: Miguel Monteiro – Imagem postada em: Instituto Mamirauá

Em novembro deste ano, foi realizado um encontro histórico entre indígenas Miranha do Brasil e da Colômbia, movido pela vontade de resgatar uma cultura que foi violentamente arrancada de um povo ao longo do tempo. Os preparativos e a realização deste encontro foram marcados por iniciativas e trocas extremamente simbólicas entre os parentes que vivem às margens do mesmo rio, mas foram divididos por uma fronteira territorial e linguística. Neste processo, ao resgatar o seu passado, os Miranha esperam também consolidar a sua trajetória futura.

Histórico do Povo Miranha

A história entre os Miranha no Brasil e na Colômbia se conecta com a economia da borracha. A partir de meados do século XIX, o rio Japurá foi cenário de grandes seringais, gerando processos migratórios para este rio, sendo a etnia Miranha uma das submetidas a um sistema de exploração do trabalho para a extração da borracha até o início do século XX.

Desse modo, com seus territórios ancestrais situados na região dos rios Cahuinari e Caquetá na Colômbia (Japurá no Brasil), os Miranha habitantes no Médio Rio Solimões são os descendentes dos inúmeros processos de deslocamentos forçados da etnia ao Brasil, onde reconstruíram sua identidade e resistiram às tentativas  sistemáticas de invisibilizar sua cultura na região  , habitando atualmente quatro Terras Indígenas: Méria, Miratu, Igarapé Grande e Cuiú Cuiú.

Buscando reconhecer essas histórias, lideranças e gestores da aldeia São Pedro do Cuiú Cuiú, com aproximadamente 300 moradores, não mediram esforços para colocarem em prática um antigo sonho: o de promover o fortalecimento da cultura e da governança local e o resgate da língua materna. Desde dezembro de 2023, o grupo Miranha vem executando junto aos parceiros do Instituto Mamirauá, ACT – Amazon Conservation Team e CIMI – Conselho Indigenista Missionário, o projeto “Fortalecimento da História, cultura e resgate da língua materna”.

Para a equipe de apoiadores institucionais, o projeto emerge da premissa desses atores em buscar instrumentos que possibilitem ao grupo o amadurecimento das formas locais de governança do território e das práticas de gestão comunitárias. Para isso, o projeto foi proposto de modo que possibilitasse o engajamento diversificado de moradores, envolvendo crianças, jovens, adultos e anciões, com diferentes trajetos, experiências e conhecimentos, envolvendo lideranças, professores, agricultores, pescadores, estudantes, agentes de saúde indígenas, entre outros.

Nesse sentido, o projeto buscou gerar instrumentos didáticos e pedagógicos através dos quais o grupo da aldeia São Pedro possa ter contato e iniciar o processo de aprendizado da língua indígena, além da realização do Iº Intercâmbio Miranha Brasil-Colômbia. Para isso, ao longo do ano, o Instituto Mamirauá e ACT-Brasil apoiaram a organização de uma oficina de audiovisual com os moradores da aldeia São Pedro para que o grupo obtivesse autonomia para realizar seus próprios registros. Dessa forma, os moradores da aldeia produziram um conjunto de registros audiovisuais, compostos de narrativas de vida, histórias de formação do território, no passado e no presente. Estas ações somaram-se às atividades de pesquisa documental sobre a história do povo e formação de seu território. Estas atividades preparatórias, incluindo a construção de uma maloca, caminhadas pelo território, reuniões para elaboração de roteiros para conteúdos didáticos e pedagógicos, mobilizou crianças, jovens, adultos e anciãos em um processo de aprendizado e produção coletivos de reconexão com suas próprias histórias e modos de vida Miranha. Em paralelo, a equipe organizadora Miranha do Cuiú Cuiú reunia-se virtualmente com os parentes colombianos para discussões e planejamentos do encontro, iniciando a realização do sonho do reencontro entre parentes.

Em novembro, entre os dias 23 e 28, a segunda etapa do projeto promoveu o intercâmbio que envolveu o grupo Miranha da aldeia São Pedro do Cuiú Cuiú e os parentes Miranha colombianos, da região do Rio Caquetá/Cahuinari. Do território colombiano, vieram quatro indígenas Miranha, um casal de anciões, Gregório Miranha e Angelina Bora-Miranha, um professor e pesquisador, Elio Miranha, e o presidente da organização indígena Miranha e Bora PANI, Roque Miranha. A PANI, cujo significado em Miranha é “Deus do Centro e seus Netos” (Piine Ayveju Niimu’e Iaachimu’a) é uma associação de autoridades indígenas tradicionais Bora-Miranha.

O Encontro

Após meses de expectativa, o início do encontro foi marcado por uma recepção calorosa e trocas comoventes. Em um primeiro momento, o grupo como um todo decidiu como seria a dinâmica dos próximos dias do intercâmbio. Decidiu-se que atividades cotidianas orientariam os dias de encontro, de modo que os aprendizados da língua estivessem relacionados com atividades práticas e culturais como a importância dos bailes tradicionais, facilitando a sua apropriação. A partir de temáticas como alimentação tradicional, pintura corporal, cantos e danças; aulas-vivências geraram trocas de conhecimentos sobre os principais elementos da cultura Miranha. Também ocorreram momentos de trocas de conhecimentos e informações sobre a história dos grupos e dos territórios do Brasil e da Colômbia na maloca, que foram mesclados com atividades de aprendizagem práticas no território.

O fio condutor do encontro foi a proposta de que o coletivo estaria aprendendo a preparar um “baile” tradicional Miranha na maloca. Para isso, ao longo dos dias, os anciões Miranha, Gregório e Angelina, conduziram e ensinaram sobre os costumes e rituais de sua tradição, o significado dos cantos e danças e os grafismos e a  pintura tradicional de jenipapo e urucum. Também ensinaram a preparar bebidas e alimentos tradicionais, como o “maao” – beiju, e o “ca`guunuko” – bebida de goma de tapioca e abacaxi. Com auxílio dos netos, Roque e Elio Miranha, os aprendizados transmitidos pelos anciões em atividades específicas transformavam-se em momentos de contato e conhecimento da língua materna, exercendo os aprendizados conjuntamente.

O encontro foi intensamente produtivo e emocionalmente forte aos participantes indígenas de ambos os países. Por um lado, o intercâmbio oportunizou cumprir com os objetivos centrais do projeto, relacionados com gerar instrumentos para o resgate da língua, fortalecimento da cultura e história indígena Miranha. Ao mesmo tempo, durante o encontro, os Miranha vivenciaram um momento histórico de reconexão entre os grupos, o reencontro de histórias políticas e trajetos de resistência deste povo, desta vez, reunidos não apenas para se conhecerem, mas com o anseio de traçarem juntos os caminhos futuros, envolvendo estratégias conjuntas de fortalecimento da língua materna e das formas de governança indígena em ambos os territórios.

Compromissos Futuros

A intensa troca de saberes e conhecimentos gerou um conjunto de materiais e conteúdos que serão subsídios para as ações do projeto em 2025, voltadas para a construção de materiais para uso na escola indígena e a realização do IIº Intercâmbio Miranha Brasil-Colômbia – em novembro de 2025, em território Miranha, na Colômbia.

Texto: Patrícia Rosa e Miguel Monteiro – (ver galeria de fotos em: INSTITUTO MAMIRAUÁ)

FONTE: INSTITUTO MAMIRAUÁ – Indígenas da Etnia Miranha Promovem Iº Intercâmbio Entre Parentes do Brasil e da Colômbia