Nova edição da revista Estudos Avançados aponta saídas para a crise planetária a partir do pensamento e da prática vindos da Amazônia

“O Antropoceno é a humanização (‘antropização’) excessiva do planeta ou o efeito de uma desumanização superlativa (uma sorte de ‘Desantropoceno’)?”, questionam os pesquisadores Miguel Aparicio, Claide de Paula Moraes, Anne Rapp Py-Daniel e Eduardo Góes Neves, num dos artigos publicados na nova edição da revista Estudos Avançados 

Antropoceno é o termo que ganha cada vez mais espaço no debate público para se referir aos impactos causados ao planeta pela atividade humana. Impactos esses que adquiriram magnitude tal que podem ser compreendidos como uma nova etapa geológica. Aquecimento global, extinção de frações consideráveis da biodiversidade, eventos climáticos extremos. Um conceito que coloca no centro de forças a humanidade como um todo. Mas que passa longe de ser consensual.

A nova edição da revista Estudos Avançados – publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP – discute o papel da Amazônia no combate ao Antropoceno. Não se trata, contudo, simplesmente de apontar as contribuições que suas árvores e rios poderiam oferecer, mas de levar a sério o que as populações indígenas habitantes da floresta pensam, dizem e fazem. Em outras palavras, prestar atenção às alternativas que oferecem ao modo dominante de lidar com o planeta.

Modo ocidental ou, mais especificamente, capitalista, surgido a partir da Idade Moderna, com a conquista das Américas pelos europeus, a escravização dos africanos e o estabelecimento das grandes monoculturas, o plantation. Para alguns autores, foi a partir desses movimentos que a intervenção humana no planeta seguiria para as proporções e preocupações atuais, com uma significativa aceleração no século 19, com a Revolução Industrial.

É por isso que termos alternativos como Capitaloceno ou Plantationoceno são invocados para precisar que as graves transformações no planeta não podem ser atribuídas a uma humanidade genérica. Se uma nova era geológica está posta, a responsabilidade residiria na mentalidade e nos processos capitalistas, que lidaram com o planeta como uma fonte inerte e inesgotável de recursos, à disposição do homem para ser explorado sem limites e consequências.

Além de responsabilizar quem de fato merece, a discussão sobre o melhor termo para dar conta dos problemas que já estamos vivendo – e dos outros mais a caminho – revela que uma boa parte da humanidade oferece formas diferentes de relação com a Terra. Maneiras mais sustentáveis e menos autocentradas no Homo sapiens, que não apenas tratam os outros seres vivos – e também os não vivos – com respeito, mas podem garantir a longevidade da espécie humana no planeta.

Essas são proposições trazidas pela nova edição – de número 112 – de Estudos Avançados. Nela, a coleção de dez artigos que compõem o dossiê A Amazônia contra o Antropoceno, escritos por antropólogos e arqueólogos, vários deles indígenas da Amazônia, concentra-se sobretudo nas cosmopolíticas dos povos da floresta, a visão e as condutas que questionam nossas ideias consagradas a respeito de natureza, cultura, humanos, não humanos, progresso e bem viver.

“O Antropoceno é a humanização (‘antropização’) excessiva do planeta ou o efeito de uma desumanização superlativa (uma sorte de ‘Desantropoceno’)?”, perguntam-se Miguel Aparicio, Claide de Paula Moraes, Anne Rapp Py-Daniel e Eduardo Góes Neves no artigo Amazônia em Simbiose: Marcas de Humanidades que Enfrentam o Antropoceno. Segundo os autores, para os ameríndios é “a quebra da socialidade, a falta de moderação com animais e plantas, o comportamento desmesurado, a raiva e a tristeza exacerbadas, o individualismo e a incapacidade de partilha” que configuram uma “condição desumana”.

Segundo os autores, para os ameríndios é “a quebra da socialidade, a falta de moderação com animais e plantas, o comportamento desmesurado, a raiva e a tristeza exacerbadas, o individualismo e a incapacidade de partilha” que configuram uma “condição desumana”.

Os modos indígenas, por sua vez, são uma das possibilidades humanas de existência mais harmônicas com o planeta. Os povos isolados da floresta, por exemplo, devem ser vistos não como remanescentes arcaicos de uma humanidade genérica, mas como populações atuais, do século 21, que se recusam aos fluxos antropocênicos de seu entorno. Essas populações habitam há séculos lugares nos quais há maior biodiversidade e onde atividades humanas, como a caça e a pesca, antes de reduzir a fauna, contribuem para a proliferação das espécies terrestres e aquáticas. O que também se vê na prática da agricultura, com o manejo do ciclo floresta-roça-capoeira-floresta atuando para o aumento da biodiversidade.

“Uma dinâmica diametralmente oposta aos sistemas de commodities baseados na conversão das florestas em plantations, na apropriação privada das terras públicas, na exclusão de populações tradicionais, na redução das paisagens multiespécies, na contaminação por agrotóxicos e na manipulação e controle genético de sementes e matrizes reprodutoras em função das demandas do mercado global”, escrevem os autores.

Um exemplo de combate às práticas do Antropoceno aparece também entre os tupinambás do Baixo Tapajós, conforme apontam Raquel Tupinambá e James A. Fraser. Para os autores, suas 20 mil pessoas, pertencentes a 14 grupos distintos, exercem o que chamam de “autonomia contracolonial”, através da agricultura familiar autônoma centrada na mandioca, práticas de autorreconhecimento e autogoverno e da cosmovisão indígena. “A luta do povo tupinambá por seu território é um modo de vida, uma cosmovisão, uma identidade, uma autonomia contracolonial e uma reivindicação de reparação histórica em face do genocídio”, escrevem.

Para Ana Gabriela Morim de Lima e Nicole Soares-Pinto, por sua vez, as formas de territorialidade e de manejo dos mundos indígenas envolvem uma cosmopolítica do cuidado, na qual os seres humanos estabelecem relações com espíritos “donos” de lugares, plantas e animais. É o que discutem no artigo Parentesco com a Terra e as Cosmopolíticas Indígenas do Cuidado.

As autoras destacam que um ponto importante no pensamento indígena passa pela questão do parentesco, implicado por sua vez na esfera do cuidado. O parentesco entre humanos e não humanos é a chave para entender a criação e a sustentabilidade da fertilidade do planeta. Trata-se de compreender que há uma relação entre as diversas entidades – vivas ou não – da Terra, não de propriedade ou dominação, mas de interdependência. Para as autoras, isso é importante de ser sublinhado porque não são apenas as técnicas indígenas, cuja eficácia vêm sendo, ainda que lentamente, cada vez mais reconhecidas, que devem ser consideradas no enfrentamento da crise ecológica planetária, mas também suas teorias.

“A ideia de uma ‘floresta antrópica’ aponta, assim, para a impossibilidade de pensar a biodiversidade amazônica sem a sua sociodiversidade e seus regimes de historicidades”, escrevem. “Ao contrário do que clamam os conservacionistas pessimistas, a ‘humanidade’ não é, portanto, incompatível com a geração e a conservação da biodiversidade.” Isso significa enxergar salvação na Amazônia não porque se trata de uma região imaculada, ainda longe da intervenção humana. É justamente o contrário. Suas espécies da fauna e da flora, seus cursos d’água, seu ar, resultam de uma presença humana antiga, que encarou e encara a Terra de um modo capaz de nos ensinar caminhos para desacelerar o ritmo de degradação causado pelo modo de vida ocidental.

Em diálogo com as discussões do dossiê, a revista Estudos Avançados traz ainda quatro artigos a respeito das mudanças climáticas, dois deles tratando da Amazônia. Um deles aborda como o desmatamento contribui para a diminuição dos refúgios climáticos na floresta, enquanto outro analisa os impactos das mudanças climáticas na sociobioeconomia da Amazônia.

“A amazônia tem presenciado mudanças climáticas significativas nas últimas cinco décadas. Atividades humanas que causam aquecimento global, secas extremas, incêndios florestais e desmatamento têm resultado em perda de biodiversidade e afetado o papel da floresta na regulação do clima global”, escrevem Diego Oliveira Brandão, Julia Arieira e Carlos A. Nobre em Impactos das Mudanças Climáticas na Sociobioeconomia da Amazônia. E continuam: “Consequentemente, os serviços ecossistêmicos, como a provisão de alimentos, fibras, óleos e madeira, têm sido reduzidos. Assim, as mudanças climáticas colocam em risco a subsistência de Povos Indígenas e Comunidades Locais (PICL), porque esses são altamente dependentes da floresta saudável e do manejo das espécies nativas para suprir suas necessidades básicas.”

 

Revista Estudos Avançados, número 112, publicação do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, 376 páginas.