Pela primeira vez, países signatários da CBD entram em consenso sobre a participação efetiva de povos indígenas para orientar acordos e negociações; países desenvolvidos seguem aquém de suas obrigações
A Conferência das Partes da Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica (CDB), COP-16, foi encerrada com uma decisão histórica para os povos indígenas. Pela primeira vez, a contribuição indígena e das comunidades locais e afrodescendentes para a conservação foi reconhecida por consenso e integrará o texto final da Conferência. Com isso, os povos indígenas passam a compor órgão subsidiário permanente e com status que garante protagonismo na participação e na tomada de decisões nas negociações relacionadas à biodiversidade global.
A conferência foi realizada entre os dias 21 de outubro e 1 de novembro em Cali, na Colômbia, e reuniu representantes de quase 200 países para discutir as metas globais para a conservação da biodiversidade até 2030. O Brasil teve a maior delegação de sua história, com quase 600 pessoas, entre representantes do governo e da sociedade civil. O principal objetivo da COP-16 da Biodiversidade era a regulamentação do Marco Global Kunming-Montreal, aprovado em 2022 no Canadá, que estabeleceu as metas e objetivos para a salvaguarda e uso sustentável da biodiversidade.
A COP da Biodiversidade é considerada, no sistema das Nações Unidas, o principal espaço de cooperação internacional sobre o assunto. A CDB é um dos mais importantes instrumentos internacionais de alinhamento dos esforços globais pela conservação. É um tratado internacional estabelecido em 1992, durante a ECO-92, Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento realizada no Rio de Janeiro.
De acordo com a ministra Sonia Guajajara, o resultado dos acordos do último dia de negociações, sexta-feira, 1 de novembro, garante a participação qualificada de povos indígenas nos processos de tomada de decisão. “Estamos celebrando os acordos firmados. A criação do grupo subsidiário, que substitui o grupo de trabalho temporário, cria esse espaço de participação e protagonismo indígena, diretamente e no mesmo nível do SBSTTA, para orientar tecnicamente os acordos e as negociações sobre a biodiversidade”, disse.
O SBSTTA (sigla em inglês) é o Órgão Subsidiário de Assessoramento Técnico, Científico e Tecnológico da Convenção das Nações Unidas, que tem a responsabilidade de aconselhar e fornecer avaliações técnicas e científicas relacionadas aos temas contemplados pela COP e sobre os impactos das medidas acordadas. Com o grupo recém-criado, a COP da Biodiversidade passa a ter três órgãos técnicos orientadores das decisões, espaço que antes era ocupado exclusivamente pelo SBSTTA e pelo comitê focado na implementação das decisões. A criação do Órgão Subsidiário permanente para Povos Indígenas, Comunidades Locais e Afrodescendentes representa o reconhecimento dos distintos sistemas de conhecimento e epistemologias destas populações em nível equivalente de contribuição para a humanidade que a Ciência. Além da implementação do órgão, também foi aprovada a criação de um plano de trabalho para essas comunidades até 2030.
O tema está contemplado no artigo 8j do Marco Global. No seu texto, o artigo reconhece explicitamente a contribuição dos povos indígenas, comunidades locais e afrodescendentes como guardiões da diversidade biológica e a sua função na restauração e conservação de ecossistemas. Além disso, o texto também defende os direitos à proteção dos conhecimentos tradicionais relacionados à biodiversidade e às culturas e sistemas de valores diferenciados destes povos e comunidades. O texto também reforça que o consentimento livre e fundamentado desses povos sobre estes temas só é viável a partir da sua participação plena e efetiva nas negociações e tomadas de decisão a respeito.
A ministra reforçou a importância do papel da delegação brasileira para o progresso das negociações. “O Brasil foi fundamental na articulação com os países que estavam contra a criação do grupo subsidiário. Estamos avançando, com diálogo e com toda essa interação entre os povos indígenas, as comunidades locais e os afrodescendentes. Juntos, para aumentar a participação de quem realmente está no dia a dia, fazendo essa luta para proteger o meio ambiente e a biodiversidade”, comentou Sonia Guajajara.
Além da aprovação do 8j, o Brasil protagonizou junto com a Colômbia a defesa pelo reconhecimento da contribuição e importância dos povos afrodescendentes no contexto da conservação e usufruto sustentável da biodiversidade, resultando na alteração do texto do artigo. De acordo com Francisco De Filippo, chefe da Assessoria Internacional do MPI, outra conquista foi a confirmação de que as políticas para demarcação, regularização e gestão dos territórios indígenas são indicadores importantes para as metas 2 e 3 do Marco Global. “Essas metas determinam que ao menos 30% da biodiversidade mundial precisa ser protegida até 2030, e que 30% da biodiversidade já degradada precisa ser restaurada neste mesmo período. Ainda no contexto dos indicadores, o Brasil também foi decisivo para a aprovação da construção de um indicador sobre posse e uso da terra, na meta 22, e se comprometeu a fazer um seminário para, a partir das contribuições indígenas, dar mais robustez para a consolidação deste indicador”, explicou.
A delegação brasileira contou com a liderança das ministras Sonia Guajajara e Marina Silva, conduzida tecnicamente pelo Ministério das Relações Exteriores (MRE), com apoio de representantes dos Ministérios dos Povos Indígenas, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, de Igualdade Racial e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, dentre outros órgãos.
Também compuseram a delegação brasileira, quatro jovens indígenas do programa “Kuntari Katu: Líderes Indígenas na Política Global”, iniciativa do MPI em conjunto com o MRE e com o MMA, que visa a formação de indígenas sobre a governança global do meio ambiente, clima, direitos humanos e em outros temas de interesse. Os jovens acompanharam as negociações e participaram de “side events”, se qualificando para a COP-30 sobre mudanças climáticas, que será no Brasil em 2025.
O primeiro seminário de formação do programa foi realizado em setembro no Instituto Rio Branco, em Brasília, para uma turma de 30 participantes, em preparação para a COP de Cali. Ao todo, até a COP-30, estão previstos mais quatro seminários pelo Kuntari Katu, além de curso de inglês, mentoria e participação em outras agendas internacionais. O programa faz parte de um esforço do governo para ampliar a participação indígena em espaços no âmbito das relações internacionais.
Repartição de benefícios e o compromisso dos países desenvolvidos
Apesar da decisão histórica que é celebrada, nem todas as demandas dos povos indígenas e dos países em desenvolvimento foram contempladas. Os países desenvolvidos seguem com posições recuadas nos seus compromissos com a biodiversidade global, especialmente no que se refere à mobilização de recursos financeiros.
No Marco Global de Kunming Montreal, foi estabelecida a meta de financiamento de US$25 bilhões por ano para a conservação e usufruto sustentável da biodiversidade. No entanto, entre valores aprovados e prometidos, o montante não chegou a US$500 milhões, o que representa menos de 2% da meta acordada anteriormente, com pouco comprometimento dos países do Norte Global. A negociação foi suspensa durante a última plenária da COP-16, por falta de quórum, após o veto da União Europeia, Noruega, Japão e Canadá. “O resultado é frustrante frente ao avanço dos eventos extremos das mudanças climáticas sobre os biomas e as pessoas”, comenta Francisco De Filippo.
Outro tema de destaque nos debates da COP-16, foi a repartição dos benefícios, para os povos e comunidades, da exploração econômica de recursos genéticos da biodiversidade e do uso dos seus conhecimentos tradicionais associados a eles. “Ainda não tivemos muitos acordos em relação à repartição de benefícios para aqueles que detêm os conhecimentos e, historicamente, tiveram seus direitos roubados e violados”, disse a ministra Sonia Guajajara.
Em coletiva de imprensa na COP de Cali, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, falou sobre a necessidade de criação de mecanismos alternativos para o fluxo financeiro relacionado à conservação e uso da biodiversidade e conhecimentos tradicionais e argumentou sobre a importância de regulamentação da repartição de benefícios. “Em relação ao DSI, nós queremos um mecanismo novo, já que se tratam de recursos privados. O dinheiro que vem das empresas para o pagamento pelo uso dos recursos genéticos da biodiversidade e dos conhecimentos tradicionais associados não é uma doação, é um pagamento legítimo. O DSI é, de fato, um tema técnico muito complexo, mas é também um tema imperativamente ético, pela obrigação de se reconhecer os conhecimentos e o domínio das populações tradicionais. Quando temos um compromisso ético, a resposta técnica a gente encontra e é isso que os negociadores estão fazendo”, comentou.
A Informação de Sequência Genética Digital, chamada de DSI (sigla em inglês), é um termo que se refere aos dados de sequenciamento genético presentes em banco de dados digitais de acesso aberto. Essas informações são relativas a componentes biológicos de plantas e animais, por exemplo, disponíveis para uso em pesquisas científicas ou para o desenvolvimento tecnológico e de produtos para exploração comercial, que originalmente foram adquiridos a partir dos conhecimentos tradicionais de povos e comunidades tradicionais. O assunto tem gerado controvérsia entre os países signatários da CBD há décadas.
No Brasil, especificamente, a proteção aos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético é resguardada pela Lei da Biodiversidade (Lei nº 13.123/2015), em vigência há quase uma década. A legislação dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético de fauna e flora e ao conhecimento tradicional associado a ele e sobre a obrigatoriedade da repartição justa e equitativa de benefícios derivados da sua exploração econômica.
Já ao fim da COP-16, foi criado o novo fundo global, exclusivo para a proteção da biodiversidade e fora do Global Enviroment Faicily (GEF), do Banco Mundial. Denominado Fundo Cáli, o novo mecanismo permaneceu, no entanto, pendente de regulamentação, o que deve seguir até a COP-17. Com ampla participação do Brasil e do movimento indígena, foi definido que 50% dos recursos deste novo fundo devem ser destinados a políticas e projetos de conservação da biodiversidades com ampla participação, ou mesmo via financiamento direto, de povos indígenas, afrodescendentes e comunidades locais, como medida efetiva de reparação histórica. Esta referência é importante e inédita para um documento oficial do sistema ONU.
De acordo com Francisco, “por pressão dos países desenvolvidos, que defenderam a não obrigatoriedade da contribuição de suas empresas que utilizam DSI sem repartição de benefícios ao Fundo Cali, ainda está incerto como se dará a modalidade de contribuição, se obrigatória ou voluntária, e a definição das alíquotas e da própria estruturação do Fundo”. Os principais setores envolvidos neste usufruto são o setor de fármacos, suplementos alimentares e de saúde, cosméticos, sementes transgênicas, dentre outros.
O MPI defende e seguirá atuando para que existam avanços concretos nestes debates. O compromisso dos governos e empresas de países desenvolvidos para com os acordos internacionais é fundamental, além da conservação, o usufruto sustentável da biodiversidade e a responsabilidade frente à reparação histórica das violações de direitos cometidas contra os povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais.
FONTE: MPI – COP-16 é encerrada com avanços históricos para os povos indígenas — Ministério dos Povos Indígenas
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