A flor das cinzas

Foto – Marquelino Santana.

Na maledicência da desonra pública, a floresta continua exposta à lamúria e ao martírio incontrolável do fogo criminoso e da insaciável mente devastadora da vida em mendicância. No labéu da mendacidade humana como resultado opróbrio da globalização em ascensão, os povos originários são cotidianamente submetidos à insolência e perniciosidade de uma sociedade envolvente que nocivamente vai obliterando os seus tradicionais modos de vida.

Na Amazônia peculiar e plural, Huni Kaxarari passeava em sua mahe (aldeia) admirando a suntuosa e fulgente natureza divinal. Sorridente, a criança brincava sempre ao lado de Isuma, o seu querido macaco de estimação. Na espiritualidade da mata transcendental, os dois nunca se separavam, e conviviam imbricados na simbólica e heterotópica liberdade do espaço vivido poético-estetizante.

Cansado de passear ao lado do seu Isumaka Txixi (Macaco-aranha), Huni sentou-se na sombra de uma hiwi (árvore) de Anu (Jatobá), e ao longe avistou uma imensa nuvem de kwani (fumaça) próximo à sua xumitxaki (casa). Preocupado, ele correu velozmente igual a uma (Inawaka Iraki) Onça-Pintada num varadouro que o levava até a maloca onde morava.

Ao chegar à maloca, Huni a encontrou toda queimada e um Kariwa (homem branco) portando uma kanatahi (espingarda). O txi’i (fogo) se espalhou ao redor de toda a sua mahy (aldeia), e Huni não teve como escapar das fortes chamas e caiu sobre o mawi (chão). O chão começou a shalwahi (queimar) e o himi (sangue) de Huni espalhou-se sobre a mapu’u (cinza). Naquele momento o batxi (sol) correu para avisar a Tsurá (Deus) da morte de Huni, e tudo ficou escuro na mawi (terra). Tsurá ordenou que o sol voltasse para iluminar a mawi e chamou a waka (água) para encher uma grande neitxi (nuvem) e a soprou a até a maloca de Huni.

Tsurá atirou uma lança na nuvem que a atravessou de um lado ao outro, e a água caiu sem parar durante três dias. A mawi (terra) bebeu toda a água da nuvem, e das cinzas nasceu uma linda hihuwa (flor). A flor se transformou em Huni, e ele voltou a viver. O guerreiro da ninamytsha (floresta) voltou a ser um bypy hawyiama (homem livre): possui pushkata (arco), pyia (flecha), tsakatahi (lança) e hiatu (machado). Finalmente Huni conseguiu neamahi (defender) a sua mahy (aldeia) e conquistar a grande pimaky (vitória) sobre o Kariwa (homem branco).

Para o pesquisador João de Jesus Paes Loureiro, na Amazônia as pessoas ainda veem seus deuses, convivem com seus mitos, personificam suas ideias e as coisas que admiram. Para o mesmo autor na vida amazônica a mitologia reaparece como a linguagem própria da fábula que flui como produto de uma faculdade natural, levada pelos sentidos, pela imaginação e pela descoberta das coisas.

Por: Marquelino Santana

FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor

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