Batelão, casa e vida – Parte II

Batelão, casa e vida

Foto – Marquelino Santana

O batelão é um exímio marcador histórico da fronteira Brasil – Bolívia. Ele é também um marcador fabricado, e mantém um convívio imbricado e harmonioso com as águas da Amazônia Sul – Ocidental, e sem o tradicional percurso aquático o batelão se estabelece imóvel às margens dos rios como que pedindo socorro a humanidade.

Os marcadores “fabricados” são mencionados pela historiadora portuguesa, Isabel Henriques, como espaços de habitação dos homens. Esses espaços de habitação, são segundo ela também o lugar dos produtores, que possuem a obrigação de assegurar a constituição, a conservação e a distribuição das reservas em territórios africanos. A autora expõe que tais escolhas levaram sempre à elaboração de complexas redes de circulação – os caminhos, construídos pelos homens, que não podem deixar de integrar esta categoria dos marcadores fabricados que sinalizam os territórios.

Além de relevante marcador histórico dos rios amazônicos, o batelão também se tornou um monumento de adoração, de respeito e fé. Por isso ele também é casa e vida, e sem a existência da água, o batelão morre junto com ela na agonia estampada como que a solidão o deteriorasse aos poucos no espaço e tempo.

Sobre os marcadores “históricos” no continente africano, Isabel Henriques nos diz que é possível salientar a importância de alguns tipos de monumentos africanos que podem articular elementos naturais e fabricados e cuja interpretação implica a mobilização da história do grupo.

Dessa forma, o seringueiro em seu espaço de ação foi se constituindo o “ser – aí” numa temporalidade em que foi cotidianamente aprimorando sua essência humana. O ser humano passava a ser seringueiro em sua espacialidade, que por sua vez passava também através do “ser – com”, na sua relação com os demais seringueiros e com a floresta, a extravasar a descoberta da existência do ser.

O batelão preenche o ente, e assim, o ente vai descobrindo novos saberes e fazeres que cotidianamente vai modelando os seus tradicionais modos de vida. Sobre a cotidianidade, Martin Heidegger nos fala que não se deve extrair estruturas ocasionais e acidentais, mas sim estruturas essenciais. Essenciais são as estruturas que se mantêm ontologicamente determinantes em todo modo de ser de fato da pre-sença.

O batelão se tornou um essencial marcador funcional dos antigos seringais amazônicos, proporcionando um convívio de harmonia entre os ribeirinhos e a natureza. No estudo desses marcadores, Isabel Henriques faz referência em particular àqueles ligados à atividade comercial, que, naquela região, desempenhou importante papel na organização das sociedades da África Ocidental e Central, à Sul do Equador. Os caminhos comerciais são considerados pela autora como importantes marcadores funcionais.

O batelão é um elo de forte ligação entre as estradas de seringa, o tapiri e os rios. Esse elo foi a marca primordial responsável pelo escoamento da famosa borracha natural para atender aos caprichos do capitalismo internacional. Os caminhos constitutivos das estradas de seringa tornam-se peculiaridades tradicionais de espacialidades e territorialidades imbricadas nos modos de vida dos seringais. Segundo nos diz Martin Heidegger, ao atribuirmos espacialidade à presença, temos evidentemente de conceber este ‘ser-no-espaço’ a partir de seu modo de ser.

O batelão continua entrelaçado à alma ribeirinha dos rios Mamu e Abunã numa espacialidade fronteiriça que marcou profundamente a região amazônica. Nesse sentido, conforme nos diz o geógrafo Eric Dardel, é importante ressaltar que toda espacialização geográfica, porque é concreta e atualiza o próprio homem em sua existência e porque nela o homem se supera e se evade, comporta também uma temporalização, uma história, um acontecimento.

O batelão está aos poucos caindo na inviabilidade social dos povos da floresta. O batelão está caindo no esquecimento, e talvez quando as águas dos rios retornarem, o batelão poderá navegar como um tradicional símbolo da liberdade ribeirinha da Amazônia brasileiro – boliviana. O batelão vai sim sair da estagnação das dunas e certamente voltará a abraçar a quem tanto ele ama: as águas amazônicas. Só depende de nós!

Por: Marquelino Santana

FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor

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