Publicamos uma comunicação na prestigiada revista científica npj Biodiversity sobre a falta de ações necessárias do governo brasileira na batalha contra a crise global de clima e biodiversidade, disponível em inglês aqui. Este texto traz essas reflexões em português.
Eventos climáticos extremos tornaram 2023 [1] praticamente certo de ser o ano mais quente já registrado. Secas globais, inundações e ondas de calor confirmam que estamos enfrentando uma crise climática[2], e a crise de biodiversidade do Antropoceno representa ameaças sem precedentes aos ecossistemas e sociedades. Apesar de ser o país com maior biodiversidade do mundo, com dois hotspots [3], o Brasil tem experimentado uma degradação ambiental crescente nos últimos anos (Figura 1), exigindo engajamento e comprometimento nacional para conter as crises climática e de biodiversidade. O início do terceiro mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva significou uma melhora marcante nas perspectivas ambientais do Brasil. O Brasil precisa assumir a liderança global no enfrentamento das crises climática e de biodiversidade, mas um abismo entre o discurso do País no cenário internacional e as suas ações concretas em casa tem impedido isso[4].
Embora as emissões de gases de efeito estufa do Brasil tenham diminuído 8% em 2022, totalizando 2,3 bilhões de toneladas métricas de CO2, foi o terceiro ano com maiores emissões desde 2005, mantendo o Brasil entre os 10 maiores emissores globais [5]. A mudança no uso e cobertura da terra (responsável por 48% das emissões) diminuiu devido às menores taxas de desmatamento em 2023 nas florestas da Amazônia (50%) e da Mata Atlântica (59%)[6]. No entanto, a perda de vegetação não florestal, particularmente o Cerrado, recebeu menos atenção pública [7]. A perda anual do Cerrado aumentou 65,9% [6]. de 2018 a 2023. No mesmo período, a cobertura vegetal diminuiu 58,4% no Pantanal, 19,7% no Pampa brasileiro e 18,2% na Caatinga[6].
Nos últimos 38 anos, o Brasil perdeu 33% [8] de sua vegetação nativa, e a vegetação natural não florestal encolheu em 9,6 milhões de hectares (um declínio de 16%) [9]. Incêndios florestais são outra preocupação: apesar de uma redução de 1% [10] em todo o País no primeiro semestre de 2023, os incêndios florestais aumentaram na Amazônia em 14% e no Cerrado em 2%. Juntos, eles representaram 98% [11] da área queimada do Brasil, dos quais alarmantes 84% estavam em vegetação nativa. Todos os ecossistemas — marinhos, terrestres, de água doce e subterrâneos — foram afetados negativamente pelas atividades humanas no Brasil1. Em todo o País, a perda de vegetação causada pela expansão da pecuária e do agronegócio moderno agravou o impacto de enchentes e secas extremas causadas pelo El Niño [12, 13], intensificadas pelas mudanças climáticas. A Amazônia tem enfrentado secas e ondas de calor severas, enquanto secas prolongadas no Cerrado impactaram negativamente o abastecimento de água para as principais bacias hidrográficas brasileiras [14]. Além das mudanças climáticas e da perda de habitat, outros estressores ameaçam os ecossistemas brasileiros [2], incluindo poluição, espécies invasoras, superexploração, epidemias e doenças emergentes.
Em novembro de 2023 na Conferência das Partes da Convenção do Clima da ONU (COP28), o Brasil liderou as promessas de mitigação climática, prometendo uma redução de 48% nas emissões de gases de efeito estufa até 2025 e 53% até 2030. Além da meta de 1,5ºC da COP28, o Brasil faz parte do Quadro de Biodiversidade 30×30 e da Década da ONU para Restauração de Ecossistemas. No entanto, apesar do restabelecimento da agenda ambiental pelo atual Ministério do Meio Ambiente e das Mudanças Climáticas, vários órgãos governamentais, como o Ministério dos Transportes e o Ministério de Minas e Energia, promovem projetos com enormes impactos na biodiversidade e no clima.
Apesar do desejo do atual presidente de reabilitar a liderança ambiental do Brasil, as contradições de sua administração e um Congresso de direita abertamente antiambiental representam riscos aos compromissos socioecológicos brasileiros. Por exemplo, em dezembro de 2023, o Brasil se juntou ao grupo OPEP+ de países produtores de petróleo e gás e leiloou 602 blocos de perfuração [16] abrangendo nove bacias sedimentares (21 na Amazônia), ameaçando 20 Terras Indígenas, zonas de amortecimento e 15 Unidades de Conservação. Simultaneamente, o Congresso Nacional aprovou um “marco temporal” [16] que dificulta a demarcação de Terras Indígenas, afetando a biodiversidade e a persistência de 266 [17] grupos étnicos, violando os direitos humanos descritos na Constituição brasileira de 1988. No Congresso Nacional, onde a Frente Parliamentar Agropecuária tem mais de 60% das cadeiras em ambas as casas, vários projetos de lei estão avançando para aprovação que teriam consequências desastrosas para a sustentabilidade (por exemplo, PL 364/19 [18], que deixaria 48 milhões de hectares desprotegidos).
As necessidades urgentes para combater as crises do clima e da biodiversidade e melhorar a justiça social incluem restaurar ecossistemas degradados, implementar mais áreas protegidas, incentivar boas práticas agrícolas e atingir perda zero de vegetação nativa em todo o Brasil. As ações de restauração precisam ser implementadas também em ecossistemas mais secos, que também têm grande potencial de sequestro de carbono [7]. O ritmo atual de degradação e perdas exige políticas para salvaguardar a vegetação remanescente em comunidades privadas, públicas, tradicionais e Terras Indígenas [19]. Isso é obrigatório para que o Brasil alcance a neutralidade de carbono e assuma a liderança ambiental global.
O desenvolvimento do Brasil precisa estar alinhado com iniciativas em andamento, como a Plataforma Intergovernamental de Política Científica sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES), enfatizando o fortalecimento de agendas “de baixo para cima”, reconectando a justiça ambiental e social, respeitando povos e comunidades tradicionais e apoiando movimentos socioambientais de base para um estado vinculado à natureza. A COP30, que será realizada no Brasil, seria um momento oportuno para consolidar essas ações. O compromisso do presidente brasileiro em acabar com a pobreza e abordar as desigualdades sociais por meio da integração de políticas climáticas em 23 ministérios enfatiza a necessidade de uma abordagem integrada, articulada e interdisciplinar para lidar com ambas as crises, e exige o alinhamento do discurso com a prática. Falhar nessa tarefa corre o risco de perpetuar a sexta extinção em massa, impactando ecossistemas e sociedades humanas globalmente. [20]
Por Flávia de Figueiredo Machado, Marcela C. N. S. Terra, André Ferreira Rodrigues, Philip M. Fearnside, Luís Fernando Guedes Pinto, Polyanna da Conceição Bispo,, Frederico V. Faleiro, André G. Coutinho, André Luis Regolin, Carolina Jaramillo-Giraldo, Fabiano R. Melo, Felipe P. L. Melo, Ima C. G. Vieira, Lara M. Monteiro, Luís G. A. Barboza, Madelaine Venzon, Raísa R. S. Vieira, Rosângela Corrêa, Sheila M. Pessoa e Fernando M. Pelicice
ÍNTEGRA DISPONÍVEL EM: Amazônia Real – Além da COP28: o Brasil deve agir para enfrentar a crise global do clima e da biodiversidade – Amazônia Real (amazoniareal.com.br)
Relacionada: Beyond COP28: Brazil must act to tackle the global climate and biodiversity crisis | npj Biodiversity (nature.com)
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