Pesquisadores do grupo Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento (PPDH) da Fiocruz Minas estão contribuindo para a elaboração do Programa Nacional de Saneamento Indígena. Por meio de reuniões quinzenais, o grupo oferece assessoria para a equipe técnica da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde responsável pela criação do programa, ajudando no desenvolvimento da metodologia. O grupo também trabalha em dois projetos de pesquisa, ambos financiados pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que vão trazer contribuições valiosas diante do desafio de se formular um programa específico para o saneamento indígena.

O projeto tem como marco temporal a Constituição de 1988, quando se inicia a garantia de direitos indígenas (Foto: Leopoldo Silva/Agência Senado) – Postada em: FIOCRUZ

Um dos trabalhos, intitulado O estado da arte do saneamento indígena no Brasil: iniciativas institucionais e experiências de intervenção, tem por objetivo fazer um mapeamento de ações já realizadas, de forma a recuperar as formulações, reflexões e avaliações existentes. Tendo como marco temporal a Constituição de 1988, quando se inicia a garantia de alguns direitos indígenas, como a demarcação de terras, a pesquisa inclui o levantamento de ações executadas por órgãos competentes e, também, de estudos que se referem ao tema.

“A ciência política diz que as decisões futuras dependem dos constrangimentos do passado. Então, ao se desenvolver um Programa Nacional de Saneamento Indígena, é preciso considerar isso. Precisamos averiguar as boas e más práticas que se perderam no tempo, de forma a ajudar a construir a visão de futuro”, destaca o pesquisador Léo Heller, líder do PPDH e coordenador dos estudos em saneamento indígena.

Para conhecer o estado da arte, os pesquisadores estão atuando em duas frentes de trabalho: revisão de literatura e elaboração de uma linha do tempo. A revisão inclui estudos publicados e, também, aqueles que constituem a chamada ‘literatura cinzenta’, abrangendo trabalhos não indexados, como, por exemplo, relatórios. Já a linha do tempo está sendo construída com base em análise documental e em depoimentos de pessoas que tiveram protagonismo em questões relacionadas ao saneamento indígena, como profissionais de órgãos públicos, lideranças indígenas, entre outras. As entrevistas já começaram a ser feitas e revelam questões importantes.

“Aparecem nos depoimentos as tensões institucionais, as relações conflituosas, a ausência de servidores em órgãos públicos envolvidos com o tema e a consequente rotatividade de profissionais, a descontinuidade das ações e de sistemas de informação, entre outros aspectos que mostram um legado sendo ignorado”, afirma o pesquisador do PPDH, Bernardo Aleixo, que é coordenador adjunto dos estudos em saneamento indígena. Iniciada em fevereiro deste ano, a previsão é que a pesquisa seja concluída em meados do ano que vem.

Avaliabilidade

O outro projeto do grupo é um estudo de avaliabilidade (EA), que visa verificar se as ações desenvolvidas e em desenvolvimento no campo do saneamento indígena poderão ser avaliadas futuramente. “Um programa, para ser avaliado, precisa ter um modelo que permita essa avaliação. É necessário que ele gere dados mensuráveis, possibilitando averiguar se está cumprindo os objetivos a que se propõe”, explica Aleixo. Como o Programa de Saneamento Indígena ainda está em desenvolvimento, mais que verificar a avaliabilidade das atuais ações, o estudo do PPDH também propõe adequações ao modelo que está sendo desenhado, além de fornecer informações a serem usadas na avaliação. A ideia é que, ao ser concluído, o EA apresente uma descrição completa do programa, contendo críticas e avaliações, de forma a contribuir para a formulação de um programa coerente e lógico.

“Estamos considerando conceitos importantes relacionados aos direitos humanos à água e ao saneamento, como disponibilidade, acessibilidade física e qualidade. E, principalmente, estamos considerando o conceito de cosmovisão, de forma a respeitar o modo como os indígenas percebem o mundo. Um bom exemplo da importância disso é a questão da cloração da água: a legislação determina que a água para consumo humano passe por uma desinfecção com cloro. Entretanto, muitos povos indígenas rejeitam esse procedimento porque têm uma relação diferente com a água. Tudo isso precisa ser levado em consideração ao se desenvolver um Programa de Saneamento Indígena”, explica Heller.

Tendo em vista a importância das questões culturais, ambos os projetos contam com a participação de dois bolsistas de Iniciação Científica indígenas. Um deles é Adreano Pinheiro dos Santos, da etnia pataxó na Terra Indígena Fazenda Guarani, no município de Carmésia (MG), que estuda engenharia ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Segundo Santos, é muito gratificante fazer parte desses projetos da Fiocruz, pelo nome que a instituição carrega, e por contribuir a comunidade pataxó. “É uma honra para mim como indígena levar esse projeto para nossas comunidades. Sempre me preocupei muito com a questão do saneamento na minha aldeia e em outras que sofrem com o mesmo problema e acredito que essas pesquisas vão ajudar bastante”, diz. O outro bolsista é Wanilson Honorato Cruz, da comunidade tikuna, da aldeia Umariaçu II, no município de Tabatinga, na região do Alto Solimões (AM), estudante de Ciências Sociais, na UFMG, que destaca sua satisfação em participar dos projetos. “Nunca tinha pensado em trabalhar com saneamento e estou gostando muito. Minha comunidade tem muitos problemas com saneamento, água e lixo e espero poder contribuir”, afirma.

Saúde mental

Além dos estudos voltados para o saneamento, outro importante trabalho do PPDH com povos indígenas tem como foco a saúde mental. Ainda em fase inicial, o projeto, coordenado pela pesquisadora Celina Modena, visa investigar o bem-viver e a atenção psicossocial na comunidade indígena xakriabá, que reúne uma população de cerca de 12 mil indígenas, distribuídos em 35 aldeias, no município de São João das Missões (MG).

“Para essa investigação, vamos trabalhar com dados da Sesai, por meio do Distrito Sanitário Indígena Especial Indígena, e também com as demandas apontadas pelos representantes da comunidade, que indicam como prioridade a atenção ao elevado índice de sofrimento mental, principalmente entre os jovens”, explica a coordenadora.

Conforme o projeto, a investigação será conduzida em quatro etapas realizadas simultaneamente: levantamento de indicadores de vigilância epidemiológica em saúde mental e de acesso e utilização dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial da população indígena xakriabá; identificação de necessidades e soluções em saúde mental sentidas pela população; diagnóstico das redes de serviços da Atenção Psicossocial, da Rede de Atenção à Saúde Mental e Atenção Psicossocial e da proteção social; e construção coletiva de ações comunitárias voltadas à promoção do bem-viver e da atenção psicossocial.

Todas as etapas do estudo serão desenvolvidas em diálogo com a população indígena xakriabá, levando em consideração suas práticas próprias de cuidado e/ou autoatenção e respeitando suas organizações sociais e culturais. Além da coordenadora Celina Modena, a equipe de pesquisa multidisciplinar conta com o filósofo e psicólogo Alberto Mesaque Martins; com a antropóloga Bianca Retes Carvalho; e com três acadêmicas pertencentes à comunidade xakriabá: Adriana Santiago Oliveira (Drika Xakriabá); Artemisa Barbosa Ribeiro (Artemisa Xakriabá); e Jucyrema Gonçalves de Araújo (Jucyrema Xakriabá). Entre as três pesquisadoras indígenas, um desejo em comum: contribuir para a compreensão do sofrimento mental entre os povos indígenas e para a construção de ações voltadas ao bem-viver nas aldeias.

“Há algum tempo, temos percebido que o índice de suicídio e de casos de depressão entre os indígenas é bastante alto. São temas sensíveis, que precisam ser olhados. E eu, desde que entrei para a universidade, sempre quis dar um retorno para o meu povo, ajudando a compreender o que acontece na aldeia”, destaca Artemisa Xakriabá, da aldeia Barreiro Preto, que cursa o 9º período de psicologia.

Para a psicóloga Drika Xakriabá, da aldeia Imbaúba, o estudo é uma oportunidade para contribuir e ampliar o conhecimento sobre temas importantes que afetam as aldeias. “Pesquiso suicídio indígena desde a minha graduação. É um tema cada vez mais importante, pois o número de casos tem crescido. Estou com grande expectativa para este projeto e creio que será uma oportunidade para contribuir com as comunidades indígenas”, disse.

A psicóloga Jucyrema Xakriabá, da aldeia Brejo Mata Fome, também pesquisa atenção psicossocial entre os indígenas desde que entrou para a universidade. Para ela, o estudo que está começando agora é muito mais do que um projeto de pesquisa científica. “Para mim, é um projeto de vida. Toda a minha trajetória acadêmica é voltada para esse tema. Sou uma mulher indígena que faz pesquisa; é diferente de quando você é um agente externo. Durante muito tempo, nós, indígenas, fomos objeto de pesquisa, mas, agora, a gente também pode contribuir. Tem a contribuição acadêmica, mas também tem a contribuição por fazer parte desse povo”, destacou.

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