Artigo científico apresenta estratégias para conservação ambiental e desenvolvimento no bioma amazônico, articulando ciência, tecnologia, o conhecimento dos povos originários, quilombolas e comunidades tradicionais em sistemas de inovação, que fomentem áreas onde a integridade ecológica e a prosperidade humana possam ser preservadas por gerações.
Agência Museu Goeldi – O agravamento das mudanças climáticas coloca em evidência a vulnerabilidade das populações e dos diferentes biomas a eventos como o registro de temperaturas recordes, a ocorrência de desastres naturais e de fenômenos climáticos, a exemplo da seca extrema registrada na Amazônia em 2023 e das enchentes no Rio Grande do Sul neste ano. É nesse cenário perigoso, com o país acompanhando cada vez mais as consequências da fragilização dos biomas, que o Brasil se comprometeu em zerar o desmatamento e a degradação da floresta amazônica até 2030, uma meta ousada defendida pela ciência há cerca de 20 anos e que precisa de uma política estratégica para ser alcançada.
Em artigo publicado na revista Trends in Ecology & Evolution, a doutora em Ecologia e pesquisadora do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ima Célia Guimarães Vieira; e o doutor em Zoologia e professor titular do Departamento de Geografia e Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Miami, José Maria Cardoso da Silva, retomam a proposta do desmatamento zero apresentada por eles em artigo de 2005, mas agora em um contexto ainda mais alarmante.
Há quase duas décadas, a taxa oficial de desmatamento da Amazônia calculada pelo sistema Prodes do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) foi de 27,772 km² no ano de 2004. Em 2022, o mesmo sistema detectou uma devastação de 11.594 km², contudo o índice acumulado nesse intervalo de tempo chegou a 168,413 km², o que contribuiu para o aumento das emissões de carbono na região e uma perda intangível de biodiversidade.
Os números citados no parágrafo anterior tendem a crescer drasticamente caso seja aprovada o PL 3.334/2023, que propõe a redução da reserva legal na Amazônia, tornando disponível para a desflorestação 28,17 milhões de hectares. O projeto de lei é uma licença para derrubar que anula o êxito conquistado com medidas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm), tornando o Brasil um campeão em emissões de gás carbônico no mundo e alvo de boicotes comerciais aos seus produtos.
Zerando a perda – Na avaliação dos pesquisadores, para atingir a meta de desmatamento e degradação zero o Brasil deve integrar as políticas públicas setoriais que estabeleçam um novo modelo de desenvolvimento na região amazônica, baseado na implantação de territórios sustentáveis. Concebidos como áreas onde a integridade ecológica e a prosperidade humana podem ser preservadas por gerações, esses territórios seriam adotados em 85 subsistemas distintos já identificados pelo governo na Amazônia brasileira.
“Consideramos que o desmatamento e degradação zero só pode ser alcançado se for concebido como o resultado de um novo modelo de desenvolvimento que se concentre no estabelecimento de territórios sustentáveis em toda a região, em vez de ser simplesmente um objetivo ambiental a ser perseguido sem considerar a heterogeneidade social e ecológica da região”, afirmam Ima Vieira e José Maria Cardoso.
Estratégias – Tendo em vista a promoção da conservação ambiental e a garantia do bem estar social a longo prazo, os cientistas elencam seis estratégias que podem ser adotadas com diferentes escalas de importância nos territórios sustentáveis. São elas: expansão e descentralização do sistema regional de ciência, tecnologia e inovação; gestão eficaz das áreas protegidas e Terras Indígenas (TIs); conversão de terras públicas não destinadas em Unidades de Conservação (UC) e TIs; aumentar a proteção da floresta em áreas privadas; recuperação e uso eficiente de áreas degradadas; e a melhoria dos mecanismos de governança.
Um dos objetivos desse conjunto de medidas é a integração das diferentes categorias de áreas protegidas, envolvendo as UCs existentes, as novas que podem ser criadas nos cerca de 600 mil km² de terras públicas ainda sem destinação e os 1,6 milhão de km² de propriedades privadas onde Reservas Legais (RLs) e Áreas de Proteção Permanente (APPs) devem ser preservadas em acordo com regras do Código Florestal Brasileiro.
A proposta enfatiza também a importância da geração de renda por meio de atividades produtivas que agreguem tecnologia e valor ao uso da terra, ampliando assim seus benefícios socioeconômicos.
“Os territórios sustentáveis exigem a conversão das pastagens em sistemas de produção alimentar mais diversificados para reduzir a pobreza, aumentar a eficiência económica e social, absorver carbono, melhorar a conservação dos solos, conservar a biodiversidade e apoiar vários produtos com um elevado valor agregado”, ressalta o artigo de Vieira e Cardoso.
Os pesquisadores chamam atenção para o papel que as instituições de ciência, tecnologia e inovação podem desempenhar na orientação de políticas públicas e no fortalecimento de estratégias de desenvolvimento sustentável ao realizar pesquisas inspiradas nas demandas locais.
Aliado a isso, colocam em evidência a necessidade de articulação dos modelos de desenvolvimento com povos indígenas, populações quilombolas e comunidades tradicionais, visto que as decisões sobre a região ainda são pautadas nos interesses de grupos de fora, que acabam perpetuando nos projetos a ideia da Amazônia como uma fronteira do desenvolvimento.
“Estabelecer territórios sustentáveis e alcançar o desmatamento e a degradação zero na Amazônia brasileira continua sendo possível, mas exigirá um esforço sustentado, de longo prazo e globalmente colaborativo. Esse esforço deve ser impulsionado por um sistema de ciência, tecnologia e inovação, mas ainda assim deve estar fundamentado no conhecimento, nas visões de mundo e nas aspirações da população regional. Se tal não acontecer, poderão surgir graves riscos sociais e ambientais, com consequências globais imprevisíveis”, frisam os cientistas.
Referências: VIEIRA, Ima Célia Guimarães; SILVA, José Maria Cardoso da; TOLEDO, Peter Mann de. Estratégias para evitar a perda de biodiversidade na Amazônia. Dossiê Amazônia Brasileira II. Estud. av. 19 (54), ago. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ea/a/yf6MQVWvKWGD33jN3jqw47n/?lang=pt.
VIEIRA, Ima Célia Guimarães; SILVA, José Maria Cardoso da. Zero deforestation and degradation in the Brazilian Amazon. Trends in Ecology & Evolution. Volume 39, ed. 5, p. 413-416, mai. 2024. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.tree.2024.03.004.
Conheça as 6 estratégias para alcançar o desmatamento zero na Amazônia
1 – Expansão e descentralização do sistema regional de CT&I – Os territórios sustentáveis devem ser orientados pela ciência. Para isso, é necessário que as instituições de ciência, tecnologia e inovação existentes sejam expandidas e descentralizadas em sistemas sub-regionais para o fortalecimento e maior conexão da produção de conhecimento.
2 – Gestão eficaz das áreas protegidas e Terras Indígenas – As unidades de conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs) são fundamentais para o controle do desmatamento e da degradação florestal. Porém, é preciso que elas sejam melhor distribuídas no bioma, tenham acesso regular a recursos, infraestrutura e recursos humanos para serem plenamente funcionais e contenham os ilícitos ambientais.
3 – Conversão de terras públicas não destinadas em UCs e Tis – Cerca de 600 mil km² de áreas públicas na Amazônia permanecem sem designação. A transformação dessas áreas em UCs e Tis ajuda a reduzir os riscos de apropriação ilegal, especulação, desmatamento e degradação, contribuindo para uma menor taxa de conflitos socioambientais.
4 – Aumentar a proteção da floresta em áreas privadas – O Brasil tem aproximadamente 1,6 milhão de km² da floresta amazônica em áreas privadas, sendo que 45% das propriedades têm passivos ambientais. O governo deve incentivar programas baseados no mercado para encorajar o cumprimento do Código Florestal e a transformação das reservas legais e áreas de proteção permanente em reservas privadas de património natural, que podem ser usadas para pesquisa, educação e ecoturismo.
5 – Recuperação e uso eficiente de áreas degradadas – Os territórios sustentáveis requerem maior aglomeração espacial econômica e melhores estratégias de uso da terra. Projetos piloto já tiveram bons resultados combinando a produção de alimentos, a agregação de valor à produção, a conservação da biodiversidade e a redução da pobreza. É preciso dar escala a projetos com essa perspectiva.
6 – Melhoria dos mecanismos de governança – Os déficits de financiamento para a região e as lacunas de integração entre políticas setoriais básicas são desafios para o Brasil atingir a meta do desmatamento zero. O país deve criar sistemas de governança para facilitar o diálogo e a negociação entre os diferentes níveis de governo e as sociedades sub-regionais, sobretudo povos indígenas e comunidades tradicionais, o que traria ganhos em termos de legitimidade e eficiência para os territórios sustentáveis.
Texto: Fabrício Queiroz – Edição: Joice Santos – Agência Museu Goeldi – Cientistas defendem criação de territórios sustentáveis para zerar o desmatamento na Amazônia — Museu Paraense Emílio Goeldi (www.gov.br)