Jornada Patriótica ‒ 4ª Perna

Hiram Reis e Silva – O canoeiro

Fz Flor da Praia – Arambaré (07 a 08.04.2016) 

GALETTO: Tempos depois, decidi deixar a Força Aérea e montar uma empresa de táxi aéreo, no Paraná, após ter a aprovação de minha “superior hierárquica”, como as esposas eram carinhosamente chamadas no meio militar. Resolvemos, então, mudar para lá. Mas, e o barco? Como levá-lo? Decidi ir navegando com ele até Guaratuba, no litoral paranaense, que passaria a ser a nova “base” do bravo Jambock III. Mas minha mulher se recusava a ir junto a bordo. O mar a assustava, especialmente a costa gaúcha, famosa pelo mau humor dos seus ventos fortes e pelo cemitério de barcos que eles já geraram. Onde encontrar um tripulante para me acompanhar naquela travessia? Nos clubes náuticos de Porto Alegre, os marinheiros pediam o equivalente a um dólar por milha navegada, o que, para mim, na época, representava um gasto considerável.

Resolvi dividir minha angústia com o colega aviador Rossato, que, para minha surpresa, não pensou duas vezes e disparou: “Tô nessa, tchê!” – mesmo sem jamais ter ido além do Guaíba nos seus passeios de barco como convidado. Começamos, na hora, a fazer os planos de navegação, que, obviamente, compre­endiam a travessia da nem sempre tranquila Lagoa dos Patos, em direção a Rio Grande, onde aguar­daríamos a passagem de uma frente fria para termos ventos favoráveis na travessia até Florianópolis. Lá, ele desembarcaria e eu faria o restante da viagem em solitário. E assim ficou combinado.

O comportamento sólido nas decisões sempre foi uma das características que eu mais admirava no Capitão Rossato e, ao decidir, de imediato, ir junto naquela travessia, ele mais uma vez comprovou isso.

Na data marcada, uma ensolarada manhã de abril, desatracamos do Veleiros do Sul e partimos. Para o amigo Rossato era uma espécie de batismo náutico. O trecho até Rio Grande exigiu bastante de nós dois. Logo que entramos na Lagoa dos Patos, anoiteceu e começou a chover e ventar forte. Naquela época, GPS ainda era sonho e a nossa navegação era feita na base da estimada, mas conferida com um rádio navegador ADF e um sextante para navegação astronômica.

Para ficar ainda mais emocionante a velejada, fomos brindados com muitas boias luminosas apagadas e faroletes da lagoa inoperantes, sem falar que eles ainda estavam fora da posição marcada nas cartas náuticas! Para Rossato, um aviador acostumado às precisões da Aeronáutica, navegar daquele jeito não estava sendo nada fácil. Mas, com inteligência e atenção, ele se empenhava em entender, interpretar e aplicar corretamente as técnicas da navegação náutica, de forma que o nosso barco se mantivesse no rumo, apesar das adversidades.

Firme ao leme!” passou a ser o seu bordão, quando assumia o comando do barco. E ele repetiria isso a todo instante. No fundo, o Rossato estava [como eu descobriria mais tarde] desenvolvendo uma nova e profunda paixão pelo mundo náutico. Em dois dias, muito cansados, chegamos a Rio Grande. Mas, como não havia nenhuma previsão de ventos favoráveis para o trecho seguinte, meu companheiro regressou a Porto Alegre e eu fiquei incumbido de monitorar o tempo e avisá-lo tão logo a previsão estivesse de acordo com o cenário que tínhamos planejado.

Alguns dias depois, uma frente fria se aproximou do Uruguai, e, avisado, o Rossato chegou rápido e entusiasmado, em plena madrugada. Na mesma hora, fizemos uma tentativa de sair para o mar, mas as condições na barra de Rio Grande ainda eram adversas demais.

Retornamos ao iate clube, mas fortalecidos pelo desafio, já que, como pilotos, adrenalina era algo que apreciávamos bastante. No dia seguinte, o vento acalmou e rondou para uma direção mais adequada. Partimos e tomamos o rumo nordeste, que nos afastaria rapidamente do tenso litoral gaúcho. No caminho, cruzamos com vários navios e fomos brindados com um pôr do sol magnífico.

Mas, em seguida, levamos um tremendo susto: uma inesperada rajada de vento colocou o nosso barco quase na horizontal em relação ao mar. Corremos para o convés, arriamos todas as velas e acionamos o motor, que passou a nos empurrar a não mais que 5 nós. Foi uma boa decisão, tomada de comum acordo, porque, em seguida, o vento voltou ainda mais forte. Por segurança, abrimos ainda mais o rumo, na direção do mar aberto, a fim de evitar qualquer risco de sermos atirados contra a costa.

Com o vento forte, as ondas se agigantaram e passaram a lançar espumas sobre nós. Como era noite, perdemos também a visibilidade. E para completar o cenário nada animador, começou uma chuva forte. Vestimos roupas impermeáveis, colete salva-vidas com cinto de segurança e estabelecemos turnos de quatro horas ao leme, que eram bem cansativos, porque o barco sempre teimava em sair do rumo. Mas nada disso tirava o empenho do Rossato, que seguia repetindo o mantra “Firme ao leme!”. E lá fomos nós.

Até que, de repente, uma onda anormal praticamente deitou o Jambock na água. Eu estava dentro da cabine e fui arremessado de encontro a uma antepara. Quase perdi os sentidos e ganhei um baita hematoma na cabeça. O Rossato, que viu tudo lá de fora, berrou [o barulho do vento impedia qualquer conversa em tom normal] para que eu ficasse na cabine e me recuperasse, enquanto ele conduzia o barco em mais um turno consecutivo. Zonzo pela pancada, concordei, embora preocupado com as horas extras que o meu amigo teria que fazer. Mas ele me tranquilizou, gritando: “Firme ao leme!”. Daí, apaguei.

Quando acordei, horas depois, o Rossato seguia firme na condução do barco, apesar do cansaço. Descobri, então, outras duas características positivas do meu parceiro: a persistência e a perfeita compreensão do necessário para a eficácia de uma atividade.

O mau tempo, que depois se transformou em um forte vento Carpinteiro [aquele que “prega os barcos na costa”], típico do litoral gaúcho, durou até a nossa chegada à entrada sul da ilha de Santa Catarina, assustadoramente chamada de Ponta dos Naufragados. Ali, as grandes ondulações não davam descanso ao timoneiro. Surfamos como se o nosso veleiro, de seis toneladas, fosse uma simples prancha, mas entramos com segurança.

Seguimos, então, para o trapiche do Veleiros da Ilha e, de lá, direto para o restaurante, onde pedimos um gigantesco filé e uma cerveja gelada. Por conta do mau tempo na travessia, que durara mais de três dias, comemos apenas biscoitos e laranjas com casca e tudo, porque ninguém arriscaria manusear uma faca naquele sobe e desce que nunca acabava. A sensação era que as ondas queriam partir o Jambock ao meio. Mas ele resistiu bravamente. Bem como o meu companheiro.

Mesmo assim, ao me despedir do Rossato e iniciar a perna final da viagem em solitário, como combinado, pensei: depois de uma estreia dessas, ele nunca mais pensará em velejar de novo. Que nada!

Pouquíssimo tempo depois, o Rossato já tinha o seu próprio barco e até se revelou um campeão de regatas, atividade que, agora, talvez, passe a desenvolver no lago Paranoá, em Brasília, pois acaba de ser nomeado, pela presidenta Dilma, Comandante Geral da Aeronáutica, cargo máximo da entidade. Nada mais merecido. Pelo que vi naquela pioneira travessia marítima dele, tenho certeza de que o comando da Aeronáutica brasileira está em boas mãos.

Firme ao leme, Comandante! Como sempre. (GALETTO)

À noite recebemos a visita do caro amigo e intrépido aventureiro e amigo de longa data Pedro Auso Cardoso, de Camaquã, e fomos brindados pelo Comodoro Gilberto com um belo churrasco. Nossa pretensão é, no dia 09.04.2016, pernoitar no Pontal de Tapes e no dia seguinte no acampamento dos pescadores da Ponta da Formiga.

Por: Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 14.06.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
  • E-mail: [email protected]

Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias