Uma Página Memorável – Parte I
Era o dia 30.06.1865. Os ânimos dos Brasileiros, e cumpre dizê-lo em abono da verdade, de todos os estrangeiros, que, como hóspedes amigos, muito se tem interessado por nós desde o princípio dessa guerra brutal que nos declarou o cacique do Paraguai; os ânimos de todos os habitantes desta muito leal e heroica cidade de S. Sebastião ([1]) esperavam ansiosos pelo vapor que nos devia trazer recentes notícias do Teatro da Guerra: cada minuto que passava parecia um ano, e cada hora que a pendula batia, um século! Uma eternidade! […]
[…] da invasão de S. Borja por uma força do exército paraguaio, e a enumeração das tropelias, saques, violências e toda a sorte de infâmias praticadas por uma horda de escravos em obediência ao seu cruel ditador.
A Província do Rio Grande precisava então, mais do que nunca, de união e concórdia: infelizmente achava-se por esse tempo retalhada em partidos que mutuamente se hostilizavam: nossos mais aguerridos e valentes Generais não se entendiam; e, por outro lado, a Presidência da Província segundo a notoriedade pública, testificada pela declaração que na câmara temporária fizeram os Deputados Rio-grandenses, não oferecia bastantes e seguras garantias para desvanecer essas desinteligências, ou cortar essas dificuldades, o que, todavia, era urgente se fizesse sem demora, incontinenti…
No meio desses acontecimentos, o brasileiro por excelência, o Magnânimo Senhor D. Pedro Segundo, no seu estremecido amor pelo Brasil, repassava em seu espírito uma ideia grandiosa, ideia que ele tinha assentado realizar, fossem quais fossem os obstáculos, os empecilhos que se lhe pudessem contrapor.
A Província de S. Pedro do Sul, dizia a sós consigo o Ínclito Monarca, a bela Província de S. Pedro do Sul está presa do inimigo: é preciso repeli-lo, e para isto, de antemão preparar todas as cousas.
Eu sou brasileiro, e maldito fosse eu, se, tendo jurado a Constituição do Império, Arca Santa dos direitos dos meus caros súditos e patrícios, me deixasse conservar entre as delícias e os gozos da Corte, esquecendo os deveres de Defensor Perpétuo do Brasil!!! Não, é preciso que eu parta e partirei. […]
Como Monarca amigo da sua Pátria, pensava no futuro, dela, cujos destinos um dia (afaste-o a providência para bem longe) terão de ser confiados à senhora D. Isabel. Então se comprazia de ver que no esforçado e valente mancebo, seu genro, terá o Brasil senão um Imperador, certamente mais um Defensor Perpétuo!
Entretanto a alegria que Sua Majestade experimentava com o encontro do senhor Conde d’Eu não foi duradoura. Uma notícia cruel veio fazer sangrar o coração do Imperador, quando se deleitava ele com a presença do seu querido recém-chegado!
O Primeiro Voluntário da Pátria, aquele Imortal Brasileiro que tudo seria capaz de sacrificar em benefício do seu país, não podia conservar-se tranquilo, nem de ânimo sereno ao receber a desagradável nova de que uma força paraguaia havia invadido a importante e florescente Vila de Uruguaiana: seu coração magnânimo não podia deixar de profundamente contristar-se. Não é que se arreceasse Ele que os bárbaros saíssem vitoriosos de sua ousadia, mas porque, primeiro que a bravura das armas brasileiras os expelissem do território pátrio, milhares de depredações, de roubos, e de assassinatos teriam eles praticado, e assim a florescente Vila ficaria reduzida a um montão de ruínas. Era isto o que previa Sua Majestade, e o que, magoava o seu paternal coração.
E, sem passarmos adiante, releva consignarmos aqui que foi em Caçapava que se deu nova organização ao Exército, terminando o Imperador, graças ao seu prestígio e às suas eficazes providências, com as dissidências entre os diversos Generais, chamando-os à concórdia para que todos se unissem em defesa da causa comum. Deste modo prestou Sua Majestade um importantíssimo serviço ao país. Continuava amargurado o coração do Ínclito Monarca pela notícia, como já vimos, da invasão da Vila de Uruguaiana por selvagens paraguaios; mas bem depressa aprouve à Providência que sua amargura encontrasse um lenitivo, no completo triunfo que obtiveram as armas brasileiras em Jataí ([2]).
O coração magnânimo do Imperador sentiu alívio, e sua fisionomia radiou de prazer. Foi, na verdade, assinalado o triunfo, pois que havia sido derrotada uma força de 4.000 paraguaios, que teve o arrojo de querer medir com as nossas as suas armas!
No dia 24.08.1865, dirigiu-se Sua Majestade com seus Augustos Genros e mais comitiva para S. Gabriel, e às 16h30 acampou na localidade conhecida por Tapera de Rodrigues Chaves. Foi um dia realmente aziago ([3]), e no qual o Imperador sofreu os maiores incômodos. À noite desabou um medonho temporal. A pena não pode descrever esta noite infernal, em que os elementos da natureza estiveram em completa luta.
Não era só a chuva que caía copiosamente, era também um tremendo furacão, que levara de vencida, arrasando tudo quanto estava de pé: ao furor do vento quase todas as barracas voaram, conservando-se muito pouca e insuficientes para darem guarida à comitiva imperial! Que horrível vendaval! Ao furacão destruidor, viera ajuntar-se a trovoada e os relâmpagos: os raios caiam perto, tudo era confusão! No meio disto notava-se, porém, a resignação e a serenidade de Sua Majestade: era Ele o primeiro a animar a todos, e sem que o perigo o pudesse amedrontar, não deixava um só instante de dar suas ordens e providências. Dir-se-ia que antes queria Ele sofrer todos os incômodos, do que os sofressem aqueles que o acompanhavam!
No dia posterior, 25.08.1865, viam-se os vestígios da tormenta: o campo estava todo alagado, vários soldados em estado inteiramente álgido ([4]) tiritavam, e estavam a ponto de morrer de frio, e um considerável número de cavalos do piquete imperial mortos no chão, vítimas da procela.
O Imperador não descontinuava nunca de consolar seus soldados, envidando todos os esforços para que os seus sofrimentos, se não desaparecessem, ao menos se atenuassem. A tormenta obstinada e teimosa, entretanto, não diminuía, antes, pelo contrário, cada vez mais crescia e se alongava… Neste estado de cousas era temeridade demais prosseguir na viagem, e ninguém, a não ser o Imperador que arrosta com a mais espantosa e surpreendente coragem todos os perigos, o teria feito. O Monarca resolveu, não obstante a borrasca, continuar o seu itinerário. […]
Por: Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.04.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CRUZ, Gervásio José da (Segundo Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha). Gratidão dos Brasileiros ao seu Excelso Imperador: Uma Página Memorável da História do Reinado do Senhor Dom Pedro II Defensor Perpétuo do Brasil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Tipografia Perseverança, 1865.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected]
[1] S. Sebastião: São Sebastião do Rio de Janeiro.
[2] Jataí: Batalha de Jataí (17.08.1865).
[3] Aziago: nefasto.
[4] Inteiramente álgido: de hipotermia.
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