O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte III
Defesa Feita Pelo Sr. Dr. Pereira da Silva ao
Brigue Brasileiro “Nova Aurora” – Apresado
na Bahia Pela Corveta Inglesa “Rose”
Joaquim José dos Santos Malhado e Irmãos, súditos brasileiros, negociantes muito conhecidos e reputados da cidade da Bahia, não só por sua fortuna, honra e probidade, como também pelos relevantes serviços que tem prestado ao trono imperial do Senhor D. Pedro II e à integridade do Império, serviços de natureza e de transcendência tal, que o governo do Brasil tem altamente considerado, são senhores e possuidores, por herança de seu pai Manoel José dos Santos, além de outros bens, do brigue nacional “Nova Aurora”, como se prova pelo documento do apenso de fls. 13, sob n° 1.
Pretendendo eles mandar o brigue para a Costa de África a negócio licito, abriram-lhe carga na praça, e com efeito a conseguiram obter, como se evidencia do manifesto de fls. 15 do apenso, com o qual harmonizam os diversos conhecimentos unidos aos autos, o livro da carga de fls. 27, e várias faturas que decorrem de fls. 41 a 61, sendo que todo esse carregamento, em vista do documento da alfandega de fls. 37, foi legalmente despachado, seguiu todos os tramites da lei, e pagou os competentes direitos à nação brasileira. Com efeito, alcançando os despachos necessários que lhe permitiam o seguimento de sua viagem, o seu passaporte, a matrícula e manifesto da carga, o documento do correio, o certificado da inspeção da saúde pública, a conta da ancoragem, a certidão da polícia, a carta de ordens, a declaração autentica de estar em ordem subscrita pelas autoridades legais, e o rol da equipagem, que tudo se encontrou a seu bordo, e existe ligado aos autos, e que para maior legalidade fizeram eles rubricar no consulado inglês naquela cidade; prestando enfim a fiança ou termo de responsabilidade exigido pelo Governo da Província de se não empregar em comércio ilícito, como se prova pelo mesmo apenso, pode o brigue, capitaneado pelo cidadão brasileiro João José Peixoto, sair da Bahia em 22 de fevereiro do corrente ano, depois de se sujeitar aos registos das autoridades do mar, e em tudo e por tudo conformar-se com a lei.
Eis que no dia 27 porém, em vez de continuar sua viagem, entra de novo o brigue no porto de onde saíra, pendendo do penol ([1]) de sua mezena ([2]), em vez das armas brasileiras com que se cobria, as cores da Grã-Bretanha.
A corveta de guerra inglesa “Rose”, de que é comandante P. Christie, saindo da Bahia a 2, e no seguinte dia avistando o brigue, deu-lhe caça, deteve-o, e o fizera regressar. Apenas ancorado, o captor tirou de bordo do brigue toda a tripulação e passageiros, e os passou para a corveta de seu comando, como se prova das declarações do apenso já mencionado, de propósito talvez para não assistirem ao exame e averiguações a que pretendia proceder, e sem mostrar ao menos ao seu Capitão as instruções de que se achasse munido, e que o autorizassem a cruzar e deter, instruções exigidas pela Convenção adicional de 1817, e que nem a este tribunal da comissão mista foram presentes, apesar de serem exigidas pelo membro juiz brasileiro, que teve por resposta do encarregado da presa, Edwin Morgan, que cuidava que o comandante Christie as tinha.
Então, em desrespeito às representações do Exm° Sr. Presidente da Província da Bahia, representações que, por muito valiosas e legais, se unem a estas razões, mandou o captor descarregar o brigue, em procura, como dizia, de indícios de seu emprego em comércio ilícito, e para proceder a um minucioso exame, passando parte do carregamento para a corveta, e parte depositando no convés do mesmo brigue, com grave prejuízo tanto dos gêneros que levava, e que consistiam em fumos, fazendas, aguardente, &c., como do próprio casco. Note-se que a ato nenhum deste exame assistiu o Capitão Peixoto, ou quem quer que fosse de bordo do brigue; e depois dele feito, ordenou o comandante Christie se repusesse de novo e em ordem o carregamento, o que também se fez pelo mesmo modo.
No dia 4 de Março, quando era opinião corrente na Bahia, pelas vozes escapadas de bordo, apesar da incomunicabilidade com que se achavam presos a tripulação e os passageiros, e do sigilo e mistério que por ordem ali reinavam, que, não se havendo encontrado no brigue nenhuns indícios dos que procurava com tanto cuidado e afã o comandante captor, deveria ele ser relaxado, e continuar sua viagem. Com grande espanto de todos os habitantes e das autoridades brasileiras, principalmente do Exm° Presidente, que a esse respeito representou ao Governo de S.M. o Imperador; depois de mandar o captor soltar todos os passageiros e tripulação, à exceção do capitão, piloto, contramestre e cozinheiro, fez levantar o ferro ao brigue, e, embarcando um encarregado de sua guarda, seguir para o Rio de Janeiro, aonde, chegando no dia 18, foi submetido ao julgamento do tribunal da Comissão Mista Brasileira e Inglesa, perante quem, e com todo o respeito devido, passamos a desenvolver nossas razões.
Cumpre, antes de tudo, discutir a legalidade não só da visita, como da detenção do brigue, encarada debaixo do ponto de vista geral, em relação aos tratados estipulados entre a Coroa brasileira, a quem pertence o navio apresado, e a nação britânica, a cuja armada pertence a corveta captora. Os fatos que deixamos referidos com toda a fidelidade, e comprovados pelos documentos entranhados no processo, nos serviram de base, sem que por agora nos diga respeito o motivo porque o comandante Christie cometeu o ato de detenção, e que mais abaixo discutiremos em lugar competente.
Pelo Tratado de 23.11.1826 se estipulou que, para findar o tráfico de escravos entre o Brasil e os portos d’Arica, as duas nações convinham em aceitar, como próprios, o Tratado existente entre Portugal e a Grã-Bretanha, de 22.01.1815, e a Convenção adicional de 28.07.1817. Ora, no artigo 5 dessa Convenção lê-se o seguinte:
Os navios de guerra de ambas as marinhas reais, que para esse fim se acharem munidos das instruções especiais anexas a esta Convenção, podem visitar os navios mercantes de ambas as nações em que houver motivo razoável de se suspeitar terem a bordo escravos adquiridos por um comércio ilícito: os mesmos navios de guerra poderão, mas somente no caso em que de fato se acharem escravos a bordo, deter e levar os ditos navios, a fim de os julgar.
Lê-se também no artigo 1° das instruções anexas a essa Convenção, e dirigidas aos comandantes dos navios de guerra:
Todo o navio de guerra, &c., terá o direito de visitar os navios mercantes de uma e outra potência que fizerem realmente, ou forem suspeitos de fazer o comércio de negros, &c.
Tendo no entretanto saído da Bahia no dia 22 de fevereiro o brigue em questão, tendo sido visto a carregar naquele porto, tendo-se despachado legalmente, e tendo de mais a mais, para maior prova, sido seus despachos presentes ao consulado inglês, e logo no dia 24, saindo, ao que parece de propósito a corveta, e detendo-o no dia 26, é fora de toda a dúvida que não podia haver motivo razoável de suspeita de fazer ele o comércio de escravos, sendo tão curto esse prazo de 3 dias, e conseguintemente é evidentíssimo que o comandante Christie, visitando-o, violara o Tratado nos artigos que deixamos acima transcritos; e não se pode chamar à ignorância, em presença do artigo 7 da mencionada Convenção, que ordena sejam os cruzadores munidos pelo seu próprio governo de uma cópia das instruções de que citamos também o artigo 1°, que fora pelo mesmo fato infringido.
E note-se aqui que este motivo razoável de suspeita, de que fala o Tratado, não pode aparecer e ter lugar senão em um navio que venha dos portos d’África para o Brasil, por que são os únicos que podem ter feito ou fazer o tráfico, e de nenhum modo em um navio que sai com carga lícita e despachos legais, ainda que se dirija para a Costa d’África, ou para outra qualquer parte. Se esse direito de visita fosse discricionário dos cruzadores, graves danos poderiam resultar ao comércio lícito, e tal não podia ser jamais a mente dos autores do Tratado. Além desta ilegal visita, outros atos foram também praticados em contravenção ao mesmo Tratado, e que são de mais grave consequência e de maior importância.
Havendo o comandante Christie visitado o brigue, 62 não tendo encontrado a seu bordo escravos para o tráfico, como, com que direito o deteve? Já transcreveu-se o final do artigo 5 da Convenção, agora transcreveremos outros a tal respeito.
Art. 1° das instruções aos cruzadores. – Os navios a bordo dos quais “se não acharem escravos destinados para o tráfico não poderão ser detidos debaixo de nenhum pretexto, ou motivo qualquer”.
Art. 6° Os cruzadores, &c., não poderão deter navio algum de escravatura em que “atualmente se não acharem escravos a bordo”; será preciso para legalizar a detenção de qualquer navio que os escravos que se acharem a seu bordo sejam efetivamente conduzidos para o tráfico, &c.
Claro e evidente se torna, pela leitura destes artigos, que o ato da detenção foi arbitrário inteiramente, e, o que é mais, ofensivo ao direito das gentes, que cumpre respeitar, e à letra dos Tratados existentes entre S.M.I. e S.M.B., que são obrigados a cumprir e a fazer cumprir estritamente não só ambos os governos, como também os comandantes de navios de guerra, quer brasileiros, quer ingleses, como expressamente determina o artigo 5° quando diz:
Deverão observar estrita e exatamente as instruções que acompanham a Convenção.
Observe-se também que, ainda depois dos atos ilegais de visita e detenção, violou o comandante captor o artigo 2° dessas mesmas instruções de que ele devia estar munido: aí se recomenda que:
Apenas detidos os navios, deverá conduzi-los o mais prontamente que for possível, para serem julgados pela Comissão Mista. […] (REGNAULT)
Por Hiram Reis e Silva [*], Bagé, 01.04.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
REGNAULT, Elias. História Criminal do Governo Inglês Desde as Primeiras Matanças da Irlanda até o Envenenamento dos Chinas… – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Typ. Universal de Laemmert, 1842.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected]
[1] Penol: a ponta da verga (Longa peça de madeira que se coloca horizontalmente sobre os mastros, para nela se prenderem as velas).
[2] Mezena: mastro mais próximo à popa do navio.
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