O Imbróglio do “Prince of Wales” – Parte II
Vamos repassar, a seguir, alguns dos precedentes da “Questão Christie”, reportando artigos e manifestações de toda ordem que mostram, sem sombra de dúvida, a arrogância dos súditos ingleses e seu desprezo pelas leis das “nações amigas”.
O “Bill” do Lorde Aberdeen (08.08.1845)
História Criminal do Governo Inglês Desde as Primeiras Matanças da Irlanda até o Envenenamento dos Chinas, Anotada e Aumentada com A História de Muitos Fatos Modernos Tanto no Brasil
Como em Domínios de Portugal
Apresamento da Galeota – Alexandre
Requerimento de Defesa Dirigido
ao Trono Imperial
Senhor. – Um imprevisto acontecimento, ofensivo aos direitos da nação brasileira, e desairoso à glória e dignidade de seu jovem e adorado monarca, obriga-me hoje a comparecer perante o augusto trono de V.M.I. A galeota brasileira “Alexandre” acaba de ser apresada pelo brigue de guerra inglês “Grecian”, de que é comandante William Smyth. Este ato é uma violação flagrante dos direitos do Império, como nação Independente e livre; é um atentado contra os Tratados existentes entre o Brasil e a Grã-Bretanha; é um insulto às armas de V. M. I., com que se cobria a galeota; é uma nódoa que recebe sobre sua gloriosa coroa.
Cumpre que o Governo Imperial empregue todos os seus esforços afim de vindicar ([1]) a honra nacional indignamente aviltada; é precisa uma pronta, completa e solene satisfação ao País.
E não é esta a primeira vez que à nossa dignidade de nação livre arrogam os súditos da S.M.B. graves insultos.
Ainda nesta capital, no Império todo, se não riscou da lembrança o apresamento do brigue português “Saudade” debaixo do fogo das baterias das Fortalezas do Império. Ainda não se lançou o véu do olvido sobre as hostilidades praticadas de bordo dos navios de guerra ingleses surtos neste porto contra os pequenos barcos que navegam na Baía de Niterói, hostilidades praticadas até contra os escaleres de visita empregados no serviço Imperial.
Ainda não pode o povo esquecer o assassinato bárbaro, cruel e violento, cometido na pessoa do infeliz brasileiro Bulhões, fazendo fogo a corveta inglesa sobre a barca de vapor “Especuladora”.
A nova arbitrariedade que passo a relatar a V.M.I., aumentando o número daquelas que já temos sofrido e a que nos havemos resignado, deve fechar a lista das afrontas e abrir o caminho dos desagravos. A galeota brasileira “Alexandre”, comprada em 1826 por Antônio José Marques à Platt e Reid, negociantes desta praça, emprega-se desde essa época no comércio de cabotagem da cidade de Campos.
Saindo no 1° de setembro deste porto, seguia tranquilamente sua viagem, quando no dia seguinte encontrou-se com o brigue de guerra “Grecian”, em distância de seis léguas do Rio de Janeiro, ao mar da Ponta Negra. Foi grande a admiração do Mestre João Gonçalves Leite, quando de bordo do brigue se lhe fez sinal de parar. Obedeceu o Mestre; veio de bordo do brigue um escaler carregado de gente, que atracou à galeota. Um exame minucioso e severo foi feito pelos ingleses em todos os cantos, desceram com luzes acesas ao porão em procura de africanos, segundo diziam; aí apenas acharam setecentas e cinquenta arrobas de carne seca, pertencentes a diversas remessas de negociantes desta praça; algumas pequenas miudezas, e quarenta e cinco pipas , de que algumas estavam cheias de água salgada para lastro da galeota, e as demais várias, enviadas todas para Campos, afim de trazerem aguardente, como é uso e costume imemorial do comércio entre o Rio de Janeiro e aquela cidade.
Passaram depois os ingleses ao exame de todos os papéis que encontraram. Revisitaram os despachos abertos, e rasgaram sem cerimônia alguma aqueles documentos que, como o manifesto, se remetem lacrados e fechados às autoridades competentes. Procederam logo à uma busca nas caixas e baús particulares do Mestre e Contramestre, a quem por vezes dirigiam palavras insultantes. Acabado este trabalho, ordenaram se arreasse o estandarte imperial de V.M., para substituí-lo pela flâmula inglesa; e declarando apresada a galeota, a transportaram de novo ao Rio de Janeiro sob o especioso ([2]) pretexto de a considerarem envolvida no tráfico de africanos proibido pela Convenção de 19.11.1826, estipulada entre a Coroa Brasileira e a coroa britânica.
Examinando essa Convenção que se toma por base do apresamento, reconhece-se que ela, restabelecendo para os dois governos o Tratado de 22.01.1815, e a Convenção e seus adicionamentos de 28.07.1817, que haviam sido estipulados entre Portugal e a Grã-Bretanha, não autoriza a detenção e apresamento de navios das duas nações [artigo 6° da Convenção] senão no caso de se encontrarem a bordo africanos para o tráfico, sem que mesmo a suposição de que eles já tivessem sido descarregados em qualquer costa possa transferir-lhes tal direito [Instruções anexas].
E ainda o direito de visita, concedido pela mencionada Convenção, o foi unicamente para aqueles navios seriamente suspeitos de tráfico, e não podia ser aplicado de maneira nenhuma à galeota, que, muito conhecida na carreira de Campos, sem o velame e energias necessárias a uma viagem d’África, de uma construção e aparelhos impróprios a longa navegação, afastava de si toda e qualquer presunção de se empregar em outro comércio que não fosse o de cabotagem.
E logo que a seu bordo se não encontraram africanos, não por foi acaso violada tão claramente a Convenção de 1826, em virtude da qual declaram os captores haverem praticado o ato do apresamento? E logo que os Tratados existentes entre os dois Impérios não foram respeitados, não se ofendeu acaso e gravemente a dignidade da nação Brasileira? Fazendo-se arrear a bandeira Imperial e içar a flâmula inglesa, não se cometeu um insulto contra a Coroa de S.M.I.? Quando mesmo razões plausíveis houvessem para o apresamento, enquanto por uma sentença legal não fosse ele declarado válido, as armas Imperiais deveriam conservar-se no mastro da galeota, visto que até então guardava ela sua nacionalidade.
E nem podem os apresadores chamar em seu auxílio o último Bill de Lord Palmerston, aprovado pelo parlamento inglês, essa obra de despotismo, de ambição e de iniquidade, que calca aos pés os direitos e garantias da nação amiga de que é soberana a augusta irmã de V.M.I., a Senhora D. Maria II, porquanto ele só trata de navios portugueses.
O fim do governo inglês, na proposição desse Bill, foi obrigar o governo português a assignar um Tratado com a Grã-Bretanha acerca da cessação do comércio de africanos, e conseguintemente nele não foi envolvido o Brasil, e de modo nenhum se poderia hoje fazer sua aplicação à galeota Alexandre, a cujo bordo nem mesmo se encontraram os indícios nele mencionados, tais como ferros, grandes escotilhas, caldeirões e demasiada quantidade de água, que fizessem desconfiar de seu destino legal, visto que essas pipas e mais carga que levava foram completamente despachadas, e nem ali apareceram os instrumentos náuticos próprios a navegar em alto mar, o que evidentemente prova sua navegação costeira.
Em vista da narração fiel que levamos apontada, ninguém de boa-fé pode acreditar que outro fosse o motivo que levou o comandante Smyth a apresar a galeota “Alexandre” senão o desejo premeditado de insultar o País, senão o capricho infundado e bem repreensível daqueles que, julgando ser a força a rainha do universo, abusam da que possuem na quadra atual, para tratarem como escravos a povos livres e independentes.
Senhor, este negócio torna-se tanto mais importante, quanto, a não se obter completa satisfação da parte do governo britânico, e a passar semelhante precedente de visita e apresamento de barcos empregados no comércio de cabotagem, desaparecerá completamente a nossa navegação costeira, aliás de imensa importância e utilidade.
Torna o perigo mais dificultosa e cara a navegação; o comércio, que é a fonte das riquezas sociais, a base do engrandecimento de um País, o único fundamento da estabilidade e paz de uma nação; o comércio, perdendo a liberdade de que necessita para desenvolver-se, encontrando riscos, demoras, estorvos, obstáculos, necessariamente definha, enlanguesce ([3]) e morre; e o nosso País, Senhor, esse que nos bafejou no berço e nos saudou no limiar da vida, País novo também ainda, ainda não fabril, e apenas puramente agrícola, não pode progredir, não pode viver sem o comércio.
Secar-lhe as fontes aonde a largos tragos bebe ele sua existência é entorpecer-lhe a marcha, é opor-lhe obstáculos que equivalem a meios de combate e aniquilação, é dizer-lhe que recue e embruteça, quando é lei da natureza progredir e civilizar-se. Quando a dignidade de um povo é desprezada, e ele não sabe ou não pode desafronta-la, perde-se-lhe todo o respeito, toda a consideração; de concessões em concessões, vão os fortes consagrando em direito seus atos arbitrários; e quando de todo se tem tragado o cálice da amargura até a última gota, o mal é já sem remédio; passou o primeiro e o segundo precedente; eles servem para validar os fatos a se continuarem; o que no princípio facilmente se faria, torna-se as vezes impossível, atingido certo grau.
O Império do Oriente perdeu-se por se haver submetido a todos os insultos que lhe faziam os turcos nas suas fronteiras da Ásia; podia resistir-lhes no começo, combate-los vitoriosamente; teve medo de guerras, resignou-se, e depois soou a hora de sua queda, e nos muros de Constantinopla tremulou ovante ([4]) o estandarte de Mahomet ([5]). A suscetibilidade e honra de um povo deve estar sempre desassombrada. Tendo ele por si a justiça e a razão, embora pequeno, embora fraco, nada deve temer, se tem a exigir o que lhe pertence. A Irlanda, bem aniquilada, estava pela Inglaterra no fim do século passado: Guilherme, que muito lhe devia, sacrificou-a à igreja anglicana; seus sucessores continuaram o mesmo sistema. Um dia porém Grattam ([6]), o seu Demóstenes, lhe chamou do alto da tribuna:
A política inglesa é uma questão simplesmente de força aplicada aos fracos. É o direito do granadeiro, que despoja o soldado ferido e estendido por terra.
Se o soldado se levanta, e, forte com o direito que tem, reclama ao roubador o que lhe pertence, o granadeiro é que treme, porque lhe falta a razão. Levante-se a Irlanda, e justiça lhe será feita!”.
E a Irlanda hoje domina a política da Inglaterra, faz e desfaz seus governos, e pouco a pouco vai-se elevando ao primeiro lugar. Entretanto, ela era escrava. Não tema pois o governo de V.M.I. exigir, como lhe cumpre, aquilo a que tem direito o Brasil da parte da Grã-Bretanha. No mundo de hoje, o interesse comercial é quem domina; e a Inglaterra tem no Brasil interesses bem fortes, que a obrigarão a fazer-nos justiça. Se até aqui tem zombado de nós, é por nos ver resignados curvar-nos às suas pretensões ilimitadas.
O País porém já as não suporta, ele exclama, como Francisco I, em Pavia: “Perca-se tudo, menos a honra”.
Porquanto, Senhor, se os ingleses continuam suas arbitrariedades, se se lhes não impuser um freio que os sustente na carreira pelo que diz respeito ao Brasil, se lhes não bastam tantos direitos, tantas quantias, tantos privilégios, como eles possuem neste País, privilégios de comércio, privilégios de marinha, privilégios de minas, privilégios de tribunais excepcionais; se ainda querem destruir a nossa navegação costeira, apresando barcos conhecidos, opondo-lhes obstáculos, insultando nosso pavilhão, melhor é então declararmo-nos seus súbditos, deixar esse título vão de nação independente!
Temos um Tratado que, com o fim de firmar igualdade de direitos para os dois países contratantes , e de colocar seus súditos na posição dos mais favorecidos, dá aos Ingleses para todas as suas causas, um tribunal especial no Brasil, a Conservatória, cujo juiz é por eles nomeado, enquanto que os brasileiros são em Inglaterra julgados pela lei comum; dá-lhes o direito de interpretar sempre a seu favor qualquer dúvida que se ofereça, de modo que nós não podemos aumentar nossas pautas da alfândega acerca das mercadorias inglesas, e a Inglaterra sobrecarrega como lhe apraz de direitos os gêneros de produção brasileira.
Autoriza-os a opor protestos e ameaças contra nossas pretensões de revogar a fatal e desastrosa lei de 7 de novembro de 1831, quando nos não é permitido enunciar uma só ideia, quanto mais censurar um “Bill” do parlamento britânico, que se arroga o poder de fazer leis para si e para os outros: temos enfim um Tratado, pelo qual se julgam os ingleses autorizados a possuir dentro da Baía do Rio de Janeiro uma presiganga ([7]), um cárcere particular, aonde guardam presos quem lhes parece, para onde conduzem os infelizes que encontram a bordo dos barcos que apresam, conservando-os ali pelo tempo que lhes agrada, quando a Baía do Rio de Janeiro é polo direito das gentes considerado território brasileiro, e as nossas leis penais proíbem terminantemente a existência de cárceres privados; e qual é essa apregoada igualdade de direitos de que gozamos da parte da Grã-Bretanha?
É pois chegado o tempo de reivindicar nossos direitos. Assaz sofremos já. Cumpram-se à risca os Tratados, eles são leis do País; nem uma polegada de mais se conceda a quem tanto abusa de concessões e condescendências.
Um ato acaba de ser praticado que exige plena satisfação e justiça inteira. O povo assim o espera do governo de V.M.I., esse povo que adora o seu Jovem Monarca, que deposita nele toda a sua confiança, todo o seu futuro, que desejaria ver fortemente constituída a Monarquia no Brasil, para melhor o salvar das facções internas e dos atentados externos. Um exemplo, Senhor, é preciso. V.M.I. está hoje sentado no trono augusto de seu heroico pai, no gozo de todos os seus direitos majestáticos e constitucionais; em nome daqueles que me deram o mandato para representá-los, em nome do povo, suplico a V.M.I. justiça e satisfação pelo apresamento da Galeota “Alexandre”.
De V.M.I. o mais fiel, submisso, respeitador e atuante súdito, o advogado João Manoel Pereira da Silva.
Rio de Janeiro, 5 de setembro de 1810.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
REGNAULT, Elias. História criminal do governo inglês desde as primeiras matanças da Irlanda até o envenenamento das Chinas Anotada e Aumentada com A História de Muitos Fatos Modernos Tanto no Brasil Como em Domínios de Portugal – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Typographia Universal de Laemmert, 1842.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected].
[1] Vindicar: reivindicar.
[2] Especioso: enganoso.
[3] Enlanguesce: perde as forças.
[4] Ovante: vitorioso, triunfante.
[5] Mahomet II apoderou-se de Constantinopla em 1453.
[6] Henry Grattan: político irlandês e membro da Câmara dos Comuns da Irlanda, que defendia a liberdade legislativa para o parlamento irlandês no final do século XVIII.
[7] Presiganga: navio que serve de prisão ou recolhe prisioneiros.
Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias