A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte VI

Hiram Reis e Silva – O canoeiro

Revista Ilustrada, n° 463
Rio de Janeiro, RJ – Sexta-feira, 26.08.1887
O Naufrágio do “Rio Apa”

Os árabes dizem: “Bendita a desgraça, que vem só!

É esta uma verdade, de que nestes, últimos tempos, temos tido as mais pungentes e as mais inequívocas provas. Estava-nos destinado, ter de substituir, num curto lapso de tempo, a trágica impressão do naufrágio do Bahia, pelo pavoroso morticínio do “Rio Apa”!

– Revista Ilustrada, n° 463, 26.08.1887

Ao enfrentar com tal assunto, o coração cobre-se de luto, a pena vacila, as palavras empalidecem… Só as lagrimas poderiam ter alguma eloquência. Há, em todas as almas, um sulco de amarguras, aberta pela narração, reconstituída aos poucos, d’esse drama atroz, que teve por colaboradores, o mar possesso, o céu implacável e a indiferença criminosa de alguns homens…

Jamais, no Brasil, se passou um fato tão pungente e jamais tantas circunstâncias fatais se combinaram para arrancar a vida, com um maior luxo de horrores, a centenas de vítimas, homens cheios de esperanças, mulheres a quem a graça e a juventude sorriam, crianças em cujas róseas bocas os risos encantadores foram trocados pelos gritos inconscien­tes do pavor.

O “Rio Apa”, a cujo bordo embarcaram esses predestinados da desgraça, era um vapor mercante, de fundo chato, destinado à navegação mansa dos rios, cheio de obras vivas sobre o convés, de marcha insignificante e inteiramente impróprio a arrostar a navegação perigosa dos Mares do Sul.

Sobre o governo, que consentiu nessa viagem e sobre a companhia que premeditou, quase, esse múltiplo atentado, caem neste momento, as lágrimas do desespero, de todos em que ali perderam um ente querido!

O “Rio Apa” chegara à Barra do Rio Grande e fora avistado por outro vapor, que lhe devia levar o prático.

Caindo, porém, uma forte tempestade, acompanhada de cerração, fez-se ao largo, e só quando 8 dias depois, os destroços e os cadáveres mutilados come­çaram a dar nas praias, é que um grito de consterna­ção se levantou em todo o Brasil, o governo pôs-se a dar leves sinais de vida, e a fazer demorados preparativos de socorro, dizendo, também, que “ele não mandara afundar o Apa”.

No momento em que escrevemos, ainda a tragédia não está de todo reconstituída. O que se sabe, porém, é medonho!

A companhia, receosa das condições do Vapor, esco­lheu para comandá-lo o seu mais intrépido e experi­mentado comandante, recém chegado do uma outra viagem, o Capitão de Mar e Guerra Pereira Franco.

Em Santa Catarina, consta que esse valoroso homem do mar, aconselhou alguns passageiros, entre eles o cônsul austríaco, a que não seguissem, como que tomado por um pressentimento cruel. E acrescentou:

—   Eu, como comandante não posso deixar de embarcar, além de que, como Capitão de Mar e Guerra, tenho por dever não manifestar medo! 

A serena intrepidez dessas palavras, como que animou a todos esses infelizes a confiarem-se à guarda de tão bravo oficial. Desgraçados! A morte mais afrontosa esperava-os, daí a pouco!

O aparecimento de uma jangada, na praia e o fato de apresentar uma das vítimas diversas punhaladas, provam-nos que o suplício foi lento, que deu tempo a preparar-se aquele recurso de ocasião, e que pronta a jangada, os lugares, dela, foram disputados, a punhaladas!

Outro fato, que enche a imaginação de horror, é estarem todas as vítimas revestidas de salva-vidas, provando-se assim, que boiaram longas horas ou longos dias, sempre à espera de um socorro, que se a morte lhes levou, em meio de sofrimentos que ninguém pode calcular.

O desespero, a loucura, as maldições casaram-se, por Logo tempo, com a fúria indômita do mar; a fome, a sede, o frio, vieram, ainda, pungir mais os últimos alentos desses infelizes, para quem Deus nitri existia e para quem humanidade era uma palavra vã.

Homens, mulheres e crianças morreram, após uma cruciante expiação de faltas que não tinham, abandonados, em pleno Oceano, pela misericórdia divina e pela solidariedade e humana.

Seus corpos mutilados, serviram de pasto à voraci­dade dos peixes, nas águas, e à gula dos corvos, sobre a praia. Pode-se dizer, que, com esse medo­nho acontecimento, o luto cobre todo o Brasil, por­que contam-se por centenas as famílias, que ali per­deram algum, ente querido. Positivamente, a palavra é glacial, em certos momentos, para exprimir as an­gustias, que pungem o coração, como se um punhal o atravessasse.

Só o pensamento de cada um, evocando os horríveis pormenores dessa tragédia, poderá, pela extensão da sua dor servir de medida apro­ximada, da desgraça incomparável, que nos enluta, neste momento. (REVISTA ILUSTRADA, N° 463)

Relatório Apresentado ao Exm° Sr. Dr. Joaquim Jacintho de Mendonça, 3° Vice-Presidente,
Por S. Exª o Sr. Dr. Rodrigo de Azambuja Villanova, 2° Vice-Presidente,
ao Passar-lhe a Administração Da Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul
Rio Grande do Sul – Quinta-feira, 27.10.1887
Naufrágios 

Por telegrama de 14 de julho último participou-me a Capitania do Porto o naufrágio na costa do vapor “Cavour”, escuna nacional “Evora” e um “lúgar” ([1]) inglês, cujas tripulações salvaram-se à exceção da deste, cujo destino ignorava, bem assim que o Paquete nacional “Rio Apa” que havia aparecido na barra na tarde de 11 do dito mês, fizera-se ao mar e até aquela data não aparecera.

Ordenei então que o vapor “Lima Duarte” saísse a percorrer a costa. Daqueles naufrágios dei imediatamente conhecimento ao Ministério da Marinha.

Por telegrama de 15 do mesmo mês participou-me o administrador da Praticagem da Barra que o vapor “S. Leopoldo” percorrera a Costa do Norte e o “Lima Duarte”, sob seu comando, a do Sul, até vinte milhas da Barra, nada encontrando, mas que davam à praia objetos que, com certeza, pertenciam ao “Rio Apa”, pelo que era sua opinião que este Paquete tinha soçobrado procurando vencer o mar e o vento que o atiravam para a terra, corroborando isso o fato de ter-se avistado o navio pouco antes das 14h00, desaparecendo logo depois em espessa cerração, que obstou sua entrada, não tendo tempo de afastar-se da costa até às 21h00, ocasião em que caiu forte temporal.

No dia 16, participou-me ainda o mesmo administrador terem dado à costa volumes, beliches, portas de camarotes, que presumia serem do “Rio Apa”, bem como um volume rotulado para Corumbá, e que seguia a percorrer a Costa do Sul, tendo no dia anterior seguido o “Lima Duarte”.

Na mesma, data me comunicou o cônsul brasileiro em Montevidéu que o Paquete “Rio Jaguarão”, que dali saíra à procura do Apa, perdera-se em ponta Este do Maldonado, salvando-se a tripulação.

Constantemente recebia esta Presidência notícias do aparecimento de malas, fardamento de oficiais, etc., o que tudo fazia crer no naufrágio do “Rio Apa”, até que finalmente deram à costa cadáveres da tripulação e passageiros do mesmo Paquete. Tendo diversos cidadãos residentes na cidade do Rio Grande pedido autorização para, por sua conta, fazerem sair o vapor “Jaguarão” à procura do “Rio Apa”, telegrafei ao Capitão do Porto nesse sentido, e ele respondeu-me que aquele vapor não estava em condições de sair.

Os vapores “Lima Duarte” e “S. Leopoldo” constantemente percorriam as Costas Sul e Norte da Barra e nada encontraram. Tendo, por ordem do Governo, vindo até à Barra o cruzador “Almirante Barroso” que ali fundeou na noite de 2 de Agosto, nenhum vestígio encontrou do “Apa”.

Por telegrama, de 2 do citado mês de agosto, determinou o Exmº Sr. Conselheiro Presidente do Conselho que fosse aberto minucioso inquérito sobre tudo quanto ocorrera com referência ao sinistro do “Rio Apa”.

Expedi ordem ao Capitão do Porto nesse sentido e o resultado remeti ao Governo, ficando provado que o “Rio Apa” não entrou à Barra por motivo de força maior.

Logo que começaram a aparecer destroços do navio que se supunha ser do “Rio Apa”, o Inspetor da Alfândega do Rio Grande, mandou o guarda-mor Perry, com toda a força disponível, percorrer a costa com ordem de requisitar força da guarnição.

Mandei a força policial estacionada nas Torres percorrer também a costa, determinando igual serviço em Mostardas, onde o respectivo delegado de polícia procedia a inquérito sobre roubos havidos nos salvados.

A pedido do agente da Companhia Nacional no Rio Grande, mandei pôr à sua disposição as praças de que precisasse para com elas percorrer a costa, arrecadando o que fosse dando à praia.

Todas as providências possíveis foram dadas por esta Presidência não só com referência à procura do “Rio Apa”, como também à guarda dos salvados, auxiliando-me as autoridades competentes com dedicação e zelo.

A catástrofe do Paquete “Rio Apa”, que tanta consternação produziu, despertou os sentimentos generosos de algumas associações, e é assim que a sociedade dramática particular “Club União da Vila de Santa Cruz” remeteu-me a quantia de 211$000, produto de um espetáculo, para ser distribuído pelas famílias necessitadas das vítimas daquele naufrágio, quantia essa que se acha em poder do Sr. Secretário do Governo para oportunamente ter o conveniente destino; e a sociedade também particular “Progresso Dramático”, desta capital, participou-me haver recolhido ao Banco da Província a de 1:127$000 do mesmo modo alcançado para igual fim.

Solicitei ao Governo Imperial uma relação das famílias em condições de serem contempladas, a fim de ser realizada a distribuição. Para mais esclarecimentos insiro o telegrama seguinte que em 9 de agosto último dirigi ao Exm° Sr. Presidente do Conselho:

Respondo telegrama de V. Exª de ontem. Apenas tive notícia naufrágio “Cavour” e aparecimento des­troços de outros navios, foram expedidas as devidas ordens às autoridades policiais de Mostardas, Estrei­to e Torres para percorrerem Costa a fim de impedi­rem pilhagem salvados, sepultarem cadáveres, faze­rem inquérito e prenderem ladrões. 

Delegado Polícia de Torres com força policial e auxiliado pelo comandante polícia Conceição do Arroio, guarda mor da Alfândega com seus guardas têm exercido vigilância constante naquela parte da Costa. Subdelegado de Mostardas e Estreito com a seção policial de S. José do Norte e praças da do Rio Grande percorrem a Costa Sul, fazendo aqueles serviços.

Estas duas autoridades aproveitando a boa vontade dos moradores dos respectivos distritos organizaram um grupo de Corre-Costas, isso é, de particulares destinados a percorrer e policiar a Costa, tendo à sua testa o subdelegado Idalino Silveira e merecen­do todos gerais elogios pelo modo porque tal serviço se tem desempenhado. 

À um preposto da companhia nacional de paquetes mandei pela, guarnição do Rio Grande fornecer as praças de que necessitasse para efetuar a arrecadação dos salvados, procedendo ele em tudo de acordo com a autoridade policial; esta força comandada por um oficial ainda lá estacionado. Ao delegado de S. José do Norte mandei também dar pela mesma guarnição as praças necessárias para coadjuvar a polícia de Mostardas e Estreito. 

O Dr. Chefe de Polícia tem estado em ativa correspondência com todas as autoridades policiais daquela localidade, recebendo comunicações e dando instruções para o bom desempenho do serviço. Tem-se feito inquérito e autos de corpo de delito. 

Costa larga e inóspita torna impossível perfeita vigilância, pelo que pode-se ter dado algum abuso. 

Médico que foi examinar cadáveres, nenhum resultado positivo pode obter sobre causa imediata da morte, devido ao estado adiantado de decomposição; sendo, entretanto, opinião de muitos habitantes da Costa, habituados a verem cadáveres de náufragos, que a morte não se deu por efeito de frio ou fome, como a alguém parecia, e sim da violência do temporal. 

Também mandei proceder a rigoroso inquérito sobre a pilhagem dos salvados e aparecimento de jangadas, botes, etc… que denunciavam ter servido aos náufragos do “Rio Apa”, e posso declarar que felizmente carece de fundamento a opinião dos que afirmavam que aqueles infelizes morreram de fome e frio, porquanto não apareceu jangada alguma, e sim dois botes e uma lancha, sendo o mais obra de indivíduos que à verdade antepõem o gozo de dar ao público notícias de sensação, se bem que inexatas. (RDP, 27.10.1887)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 18.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia

RDP, 27.10.1887. Naufrágios – Brasil – Porto Alegre, RS – Relatório do Presidente, 27.10.1887.

REVISTA ILUSTRADA, N° 463. O Naufrágio do “Rio Apa” – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Ilustrada, n° 463, 26.08.1887.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
  • E-mail: [email protected]

[1]   Navio a vela cuja mastreação era constituída de gurupés e três mastros de lúgar. Etimologia inglesa: lugger

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