A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte V
Jornal do Commércio, n° 231
Rio de Janeiro, RJ – Sexta-feira, 19.08.1887
O Naufrágio do “Rio Apa”
O Sr. Capitão de Fragata Carlos Frederico de Noronha, digno comandante da praticagem da Barra, varreu já a sua testada ([1]), e com ele todos os demais empregados daquela importante repartição marítima.
Damos, em secção especial, alguns importantes documentos que restabelecem a verdade controvertida, isentando a praticagem da Barra e as responsabilidades imaginárias que lhe forem assacadas ([2]).
Julgamos desnecessário recordar tudo quanto se disse em desabono do Sr. Comandante da Barra; basta lembrar que se o expos à execração dos povos jungido ao peso de acusações pela menor das quais mereceria a pena capital, nada menos.
Quisemos, desde o princípio desta questão, tomar a defesa do zeloso funcionário, por sabermos que na triste emergência do dia 11 não discrepúra ([3]) um ápice da linha do dever; mas S. S. impediu-nos de o fazer alegando a ponderosa ([4]) circunstância de que lhe cumpria, antes de permitir qualquer justificação em público, dar conta aos poderes competentes da sua conduta.
Os documentos que inserimos não constituem todo o cabedal de provas; há ainda outras que verão à luz da publicidade e que projetara a luz da evidência sobre amas quantas particularidades articuladas pelos agressores de S. S.
Que o “Rio Apa” não entrou na Barra, no dia 11, por motivos independentes da vontade da praticagem, é um fato inquestionável; que a lancha “S. Leopoldo” tentou ir à fala com o Paquete, é indiscutível; que, enfim, foram inutilmente envidados esforços para dar-lhe entrada, não padece, dúvida.
A natureza opôs-se a todas as tentativas; e a natureza é a maior de todas as forças maiores.
Porém, os que querem à todo o transe responsabilizar a praticagem, ponderam do alto de sua sabedoria, que podia ter sido mandado o “Lima Duarte” desempenhar o serviço que a “S. Leopoldo” não pode levar à cabo. Qual o motivo, porém, por que a “S. Leopoldo” não se fez aperceber de bordo do “Apa” ou não pode avistá-lo? Por motivo de ter sobrevindo uma carga de cerração ou neblina. Cremos que o “Lima Duarte” não possui a qualidade miraculosa de desfazer cerrações; logo subsistiria para ele a mesma dificuldade, a mesma impossibilidade que a “S. Leopoldo” não conseguiu vencer.
Com o tempo que fazia o “Lima Duarte” era o navio menos próprio para aventurar-se ao Mar. De calado superior à “S. Leopoldo”, seria fácil que logo à saída as ondas o impelissem para cima do Banco. Conhecem acaso os leitores as condições náuticas do “Lima Duarte”?
É possível que não, e neste caso reproduziremos aqui o que dela disse um digno oficial que esteve no Comando da Barra e que realizou uma experiência com o navio em questão. Pode o “Lima Duarte” em circunstancias favoráveis rebocar e prestar bons serviços nesta Barra, por ser de força e de calado apropriados:
Mas não poderá bem atingir os fins a que é destinado, porque quando a Barra estiver agitada ou brava não a poderá transpor para levar auxílio ou socorro a navios lá fora, como muitas vezes é preciso e como acabo de verificar saindo hoje à Barra, que não estando brava, mas apenas agitada, embarcou o navio mares que o assoberbaram, etc, etc.
Em período anterior o mesmo oficial escreve:
É o “Lima Duarte” um rebocador de bastante força, tendo, a meu ver, excelente máquina e caldeira e bom governo, mas muito raso e de baixa borda, tornando-se enxovalhado com qualquer mar.
Cumpre notar que, então, o vapor era novo, tinha há pouco entrado no serviço da praticagem.
Queriam os náuticos de terra firme que depois da “S. Leopoldo” ter-se feito apressadamente na volta de terra, [16h30] isto é, quando o mau tempo recrudescia e a atmosfera era rapidamente toldada, pelas neblinas e pela aproximação da noite, o céu abrisse clareiras que permitissem ver o “Apa”; que o vento, já então violento, amainasse, e que o Mar enfurecido curvasse humildemente o dorso afim de que a “S. Leopoldo” se aventurasse de novo ao Mar para servir de guia ao Paquete!
É fácil, longe do teatro do perigo, na confortável comodidade do lar, sob a proteção dos telhados, imaginar que a natureza está às ordens do homem, e que se pode fazer tudo contra ela, com o auxílio da “boa vontade”.
Sem a menor consideração, já não diremos pela reputação profissional daqueles a quem incumbe o serviço da praticagem, mas pelo que neles há de humano e de instintivamente generoso, dizem com a maior despreocupação os que estão aqui a discretear sobre a catástrofe:
– Bah! Foi uma de tantas facilidades… O Apa podia ter entrado se tivesse havido um pouco de boa vontade.
Aí está: a “boa vontade” tem, para esses, a incompreensível virtude de subjugar as potentes forças da natureza em cólera. Com a boa vontade fora possível, depois das 04h30 do fatal dia 11, despejar o horizonte, abater a irritação das vagas, converter a “S. Leopoldo” num audacioso albatroz, suprimir um ou dois palmos de quilha ao “Lima Duarte”, para vencer o Banco e tornar a repô-los quando ele transpusesse a Barra!
Que há a objetar aos sábios? Só se for com a frase que o honrado prático-mor Miguel Moreira proferiu debulhado em lágrimas, quando lhe mostraram um artigo de jornal crivado de proposições impossíveis:
‒ Miseráveis! Quisera que estivessem cá e que tivessem saído comigo ao mar!
Outro dia disse-nos um argumentador de esquina: Pois o Comandante da Barra não viu, pelo barômetro, que estava iminente uma tempestade? – Suponhamos que sim, lhe respondemos: porém dado que ele tivesse consultado, em vez de um, mil barômetros, acaso essa circunstância mudaria a face das coisas?
Faria rarear a cerração, amansar as ondas e dar à “S. Leopoldo” ou ao “Lima Duarte” qualidades náuticas que não possuem?
Quantas observações imbecis, quantos argumentos parvos, quantos dislates, se há produzido por aí além? Houve até quem dissesse que a obrigação do Comandante da Barra e dos práticos era irem morrer lá fora, no seu posto de honra!
E com uma chapa destas decreta-se muito simplesmente a “criminalidade” de funcionários que não puderam sobrepor-se à miserável fragilidade humana, tornar-se divinos para vencerem os elementos e o impossível.
Na manhã do dia 12 o “Apa” havia desaparecido da Barra, já lá não estava. O chefe da praticagem fazia constar o fato pelos meios ao seu alcance. Tinha para ele cessado a obrigação oficial de proceder, porquanto a sua jurisdição circunscrever-se ao Distrito da Praticagem, fora da qual todos os procedimentos incumbem à Capitania do Porto, cuja jurisdição abrange os Portos e Mares da Costa da Província.
Pois não o entenderam assim os “náuticos de terra firme”; eles presumem que está dentro da esfera de atribuições do Comandante da Barra providenciar sobre naufrágios e sobre socorros no Mar fora das vistas da Barra.
E é tal a cegueira com que agridem o zeloso funcionário, que nem se lembram de que, ainda quando por dever moral, por humanidade, quisesse invadir as atribuições da Capitania do Porto, teria contra si a mesma impossibilidade que tolheria o honrado e distinto Sr. Capitão de Fragata João Gonçalves Duarte de dar as providências que o caso urgia, se porventura estivesse presente.
Nem a praticagem nem a Capitania possuíam embarcações capazes de saírem Barra fora nos primeiros dias que se seguiram ao desaparecimento do “Apa”.
Em toda a atmosfera de indignação condensada em torno do chefe da praticagem vê-se claramente a perversidade de uns, a ignorância de outros e o pessimismo de muitos a empenharem forças em uma propaganda que visa a dar, em holocausto à cólera popular, um homem que em todos os tempos de sua vida pública tinha sabido honrar a farda de oficial de marinha. Pois não o acusam outro dia por não ter encontrado cadáveres quando saiu no “Lima Duarte” a percorrer a Costa?
Uma folha conterrânea estranhou, com efeito, que tendo o “Wiking” encontrado destroços e o “Rio Negro” o cadáver do 2° maquinista do “Apa”, só o “Lima Duarte” não encontrasse coisa alguma…
É o cúmulo!
Os cadáveres deviam surgir à tona do Oceano ou esperar que o “Lima Duarte” saísse para lhe apresentarem pela proa, assim como quem diz:
‒ Aqui estamos nós: viemos ao seu encontro para que não se diga que não encontrou nada.
Na dolorosa emergência que veio perturbar a serena paz dos espíritos e intercalar uma página lúgubre na história dos sinistros marítimos, o Comandante da Barra devia ser mais que um “factótum” ([5]) com atribuições de Ministro da Marinha, de Presidente de Província e de Capitão do Porto; devia ser como aquela divindade mitológica a cujo aceno os ventos recolhiam-se às suas misteriosas furnas e os Mares curvavam submissos o dorso; devia ser mais: devia ser como o Nazareno nos Mares da Galileia, abrandando as cóleras do Mar na frágil barca dos apóstolos…
Oh! senhores, que humanas forças podem contra as grandes irritações do Oceano e dos ventos? Vós, os que não hesitais em assacar a responsabilidade de uma hecatombe àquele, que antes de funcionário, é um homem de coração, acabareis por compreender que ao naufrágio do “Apa” sucedeu na cidade do Rio Grande o naufrágio do vosso bom senso.
A fatalidade representou um lúgubre papel na tragédia da noite de 11, e a fatalidade não tem colaboradores; quando muito aproveita circunstâncias, e essas, podemos assegurar que não foram criadas nem pelo Comandante da Barra nem por funcionário algum dos que se acham sob suas ordens e direção.
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Termo de ter Sido Avistado, no dia 11.07.1887,
o Paquete Nacional “Rio Apa” e dos Motivos
que Obstaram à sua Entrada no Mesmo dia.
Interrogados o prático-mor e mais empregados sobre os motivos que obstaram a entrada do Paquete nacional “Rio Apa”, no dia 11 do corrente, responderam:
Que às 14h00, a Atalaia fez sinal de vapor a Leste, seguindo a lancha “S. Leopoldo” já da amarração com sinais içados para que o vapor se aproximasse da Barra: chegando na Ponta do Hospital já não se avistava a Atalaia: a lancha seguiu para o Banco, avistando sempre as boias. Chegando ao Banco reconheceu que a Barra estava brava, pairou por dentro como uma hora, sem nunca poder avistar nada; seguindo de volta para o Canal de Sueste, foi até onde pode.
Não sendo possível avistar nada, voltou para o Porto às 16h00, continuando espessa cerração até à noite.
Se do estabelecimento, onde se achava o Sr. Comandante, fez-se algum sinal chamando para o ancoradouro a lancha “S. Leopoldo”, ou se antes deu alguma ordem em particular ao Sr. Prático-mor a esse respeito, responderam:
Que não foi feito sinal algum chamando a lancha, nem lhe foi dada ordem alguma em particular a tal respeito.
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Ilm° Sr. José Domingues Moreira, muito digno Comandante do rebocador Manoel Diabo.
Apelando para a sua nunca desmentida lealdade e para as habilitações e conhecimentos especiais que V. S. tem, por sua longa prática e serviços na Barra desta Província, vou rogar a V. S. o favor de responder, junto a esta carta, aos quesitos abaixo especificados, concedendo-me também permissão para fazer de sua resposta o uso que me convier:
- Nos dias 11, 12, 13 e 14 do corrente, seria possível a algum navio sair à Barra desta Província, atendendo ao estado do tempo e do mar?
- Se viu ou teve conhecimento de haver a praticagem desta Barra empregado todos os esforços para a entrada do Paquete “Rio Apa” na tarde de 11 do corrente, ou se por sua longa prática e experiência V. S. observou alguma negligência da parte da mesma praticagem?
- Se no dia 12 pela manhã, não estando à vista o “Rio Apa”, poder-se-ia dar alguma providência, no sentido de procurar-se o mesmo navio fora da Barra?
Com sua resposta V. S. muito obrigará a quem é de V. S. atento, venerador e obrigado criado – Carlos Frederico de Noronha.
Barra do Rio Grande do Sul, em 29.07.1887.
x-x-x
Em resposta ao que V. S. se digna pedir na presente missiva, passo a responder pela maneira seguinte:
- Nos dias 13 e 14 podia sair navio de pouco calado, correndo muito risco, por haver muito mar na Barra lá fora.
- Vi que no dia 11 de julho, às 14h00, pouco mais ou menos, fez a Atalaia sinal de ter aparecido vapor fora e logo seguiu a lancha “ Leopoldo” com os práticos Miguel Moreira e Estevão João Lastrete, que estava de serviço no banco, para fora e que regressaram, às 16h30, depois de estar tudo cerrado de neblina que nada deixava ver para fora. O Paquete “Rio Apa” foi visto por mim, mas por pouco tempo.
- No dia 12, não era possível sair navio algum a prestar qualquer socorro fora da Barra, por estar impraticável e haver muito mar de arrebentação mesmo fora.
Pode V. S. fazer o uso que quiser desta minha opinião – Deste seu criado muito obrigado – José Domingues Moreira.
Mestre do vapor Manoel Diabo, na Barra [Editorial do Echo do Sul de 02.08.1887]. (JDC, N° 231)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 15.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
JDC, N° 231. O Naufrágio do “Rio Apa” – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Jornal do Comércio, n° 231, 19.08.1887.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected]
[1] Varreu já a sua testada: afastou de si qualquer culpa ou responsabilidade.
[2] Assacadas: atribuídas sem fundamento.
[3] Discrepura: não se afastara.
[4] Ponderosa: grave.
[5] Factótum: indivíduo cuja função é ocupar-se de todos os afazeres de outrem.
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