A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte IX
Tragédia no Oceano
(Múcio Scervola Lopes Teixeira)
À Memória dos 120 Náufragos do Paquete Rio Apa
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus,
Se é mentira… se é verdade
Tanto horror perante os céus?!…
(CASTRO ALVES)
Como ao rijo soprar das ventanias
Os mortos boiam sobre as águas frias!
(FAGUNDES VARELLA)
A dúvida de Hamleto, a dúvida suprema
Dos que tentam vencer esse fatal dilema
Do ser e do não ser; ‒ a enervante ironia
Que às gargalhadas ri, num choro de histeria;
A febre que nos mina e que não tem remédio,
A insônia, o desalento, o desespero, o tédio…
‒ Eis o mal que lateja e cresce surdamente
No aflito coração da inconsolável gente
Que entregou as porções mais caras de sua vida
A esse Navio-Esquife! ‒ a máquina homicida
Que houve quem atirasse à solidão deserta
Do mar ‒ que não é mais do que uma cova aberta:
Onde o mastro é a cruz, e os ventos os coveiros,
Que passam, a cantar, por entre os derradeiros
Estertores e ais dos náufragos: ‒ que rolam
Na revolta extensão das vagas, que se empolam
E saltam, rebentando… e fervem, marulhosas,
Espumando e rugindo, em convulsões teimosas;
Ora erguendo-se ao céu, em líquidas montanhas,
Ora se retraindo ao fundo das entranhas
Do imenso abismo em treva, escancarado, eterno,
Onde há monstros! onde há vulcões! onde há o inferno!…
Eu naufraguei: eu posso imaginar horrores l
Posso pintar ao vivo as explosões de dores,
Os presságios, o espanto, a rápida esperança
Que surge, pra mais fundo ir enterrando a lança
Do medo, do terror, ‒ d’essa mortal tristeza
Que nos invade a alma em face da certeza
De um perigo iminente, horrível, sobre-humano,
Vendo tão longe o céu… e tão vasto o oceano!…
Estou vendo a correr de um para o outro lado
Um pequeno, que ri, vendo o pai espantado…
Outro, que pede à Mãe um doce ‒ no momento
Em que ela crava mais o olhar no firmamento!…
É horrível de ver-se a nau desarvorada:
A corda, que rebenta ao choque da lufada,
Sibila, estala, zune… O pano, que se rasga,
Tem não sei que da voz da fera que se engasga
Com os ossos da presa, enquanto ruge, rouca,
Sentindo-a espernear por lhe fugir da boca!…
Estoura o raio! … Estoura a embarcação! … Estoura
A onda ‒ que de espuma o firmamento doura!…
‒ Em pina-se o navio ‒ e range surdamente…
Cai o mastro, esmagando uma porção de gente!
Uma vaga, que lambe a proa, cospe n’água
O homem do leme… uma outra inunda a viva frágua…
Oh! … Rebenta a caldeira em nuvem de estilhaços! …
Uns ‒ nem soltam um ai… outros, ficam sem braços,
Sem olhos, sem saber da esposa idolatrada,
Do filhinho gentil, da Mãe ‒ que de assustada
Nem podia rezar…
Já ninguém mais se entende…
E um coro sem igual de súplicas se estende
Da vasta solidão dos implacáveis mares
À vasta solidão dos insensíveis ares!…
Aonde está Deus? ‒ Não sei…
Ah! mas se Deus existe
Como é que ele não vê aquele quadro triste,
Horrível, monstruoso?! … Esse naufrágio bruto
Que a tantos leva a morte e a tantos traz o luto! …
Como é triste morrer de um modo tão pungente
‒ A virtuosa Mãe, o filhinho inocente,
O esposo honrado e bom, a esposa casta e bela,
E a virginal irmã ‒ que a virginal capela
Ostentava, gentil, tão cheia de esperanças!…
E os bandos infantis das tímidas crianças,
Com lágrimas na falia e súplicas nos olhos,
Que a onda arrasta… atira, esmaga nos escolhos!
Há um confuso lutar, como as visões de um sonho.
E tudo se afundou n’um turbilhão medonho!…
Mas nem todos aí morreram nesse instante;
Para maior angústia e dor mais lacerante,
Dizem… é espantoso! ‒ e dizem a verdade:
Que rolaram do mar na imensa soledade,
Dia e noite a lutar ‒ lutando tantos dias ‒
Uns míseros, que após tão lentas agonias
Deram à costa… e lá, de todo abandonados,
Uns morreram à fome… outros — apunhalados!…
O cão, que encontra o cão ferido em seu caminho,
Lambe-lhe o ferimento e leva-o com carinho;
A formiga, que vê as outras esmagadas,
Deita-lhes terra em cima e toma outras estradas…
‒ Os elefantes têm- necrópoles sombrias:
E só o Homem deixa, assim, por tantos dias,
Tantos homens, oh! Deus! naquelas águas frias!
X-X-X
Crepúsculo, n° 15
Desterro (Florianópolis), SC – 30.07.1888
Sobre o “Rio Apa”
(Carlos de Faria)
À Múcio Teixeira
(Brilhante Poesia – Naufrágio do “Rio Apa”)
Aquela abandonada e triste caravana
De almas entre o furor dos bravejantes mares
De certo que morreu bradando para os ares:
– A humanidade já deixou de ser humana!
Sim! Que o abutre espectral e negro do abandono
Foi desta vez [que horror] a bússola de morte
A tantos seres que hoje o interminável sono
Dormem na solidão, em lúgubre coorte!
Só de se imaginar nessa terrível cena,
O coração se rasga e grita e se espedaça;
E ainda se dizer que na amplidão serena
Do calmo Azul existe um Deus para a desgraça!
Tarde demais ergueu-se a santa mão do Auxílio
Aos náufragos que, em ais foram morrendo à toa
Do largo Oceano azul no aprofundado exílio
Onde, assim como a vaga a nossa esperança voa…
Eu, que adoro a tranquila e alegre cor das ondas
Quando abre o céu da noite a constelada umbela,
Doe-me essas narrações das trágicas, hediondas
Lutas do braço hercúleo e doido da procela. […]
Laguna, 8 de agosto de 1887. [Dos Meteoros]
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CREPÚSCULO, N° 15. Sobre o “Rio Apa” – Brasil – Desterro (Florianópolis), SC – Crepúsculo, n° 15, 30.07.1888.
LOPES TEIXEIRA, Múcio Scervola. Poesias e Poemas de Mucio Teixeira (1886-1887) – Brasil – Rio de Janeiro – Imprensa Nacional, 1888.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected].
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