A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte III
Gazeta de Notícias, n° 214
Rio de Janeiro, RJ – Terça-feira, 02.08.1887
“Rio Apa”
O “Echo do Sul” transcreve diversos períodos de uma carta do comissionado agente da Companhia na cidade do Rio Grande, o qual foi ao Estreito, lugar onde têm aparecido diversos destroços do “Rio Apa”. Eis um dos trechos da carta em que ele diz, o que tem sido encontrado:
Entre esses destroços notam-se pedaços das casinholas, que estavam sobre a coberta do “Rio Apa”; uma escada da câmara já com todas as chapas de metal arrancadas; pedaços dos escalares; um arinque ([1]) para festo com os distintivos da Companhia Nacional de Navegação a Vapor; pedaços de sofá ainda com parte do estofo de crina verde; destroços de corrimão de telca, tendo dois deles pregados metais que mostram ser do portaló ([2]); finalmente papeis da companhia, entre os quais ordens de cargas, mas sem o nome do “Rio Apa” e sim do “Rio Grande”.
Tudo isto me causa, grande surpresa, pois seria natural que viessem à praia os cadáveres, quando vêm pesadíssimos pedaços de madeira. Chegaram aqui os oficiais de descarga Procópio e Turíbio. Nada encontraram na praia, além dos destroços que já enumerei.
O Procópio, porém, encontrou em diversas casas onde esteve muitos destroços do “Rio Apa”, entre os quais um letreiro de metal, que diz “Banheiro de Senhoras” e um retrato de pessoa conhecida. O Turíbio foi portador de um cinto de cortiça.
Ontem [18] à tarde, passou a três milhas de distância da Costa o Paquete “Rio Negro” e hoje, às 7 horas, passou também um grande vapor, que me pareceu ser da Companhia do Pacífico, e que talvez ande à procura dos grandes Paquetes que se diz terem naufragado nestas alturas, em viagem para Montevidéu.
Continua a reinar o Sueste.
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Do “Echo do Sul” transcrevemos mais o seguinte:
Tivemos uma longa conversação com o digno e valente comandante do Paquete nacional “Rio Pardo”, Sr. 1° Tenente Ernesto do Prado Seixas, que nos declarou, visivelmente impressionado, que o seu companheiro e amigo Pereira Franco, comandante do “Rio Apa”, tivera o pressentimento da terrível catástrofe de que foi vítima. Quando o “Rio Apa” vinha para cá encontrou-se com o “Rio Pardo” no porto de Paranaguá. Os respectivos comandantes, amigos de longa data, visitaram-se e numa conversa que tiveram Pereira Franco manifestou a Prado Seixas que vinha contrariado no comando do “Rio Apa”
– Estou adoentado, disse o intrépido marinheiro, e, venho presa de um aborrecimento acabrunhador. Se não fosse por certas considerações, desembarcaria aqui. Incomoda-me isto de andar separado do meu “Rio de Janeiro”…
Na continuação da conversa proferiu frases repassadas de tristeza. “Parecia”, diz Prado Seixas, “que o afligia o pressentimento da desgraça que o esperava”.
Numa carta que dirigiu ao imediato do “Rio Pardo” o desventurado mostrava-se apreensivo, mas concluía jovialmente:
– Enfim, chegando ao Rio Grande, cada macaco irá para seu galho.
Aludia à ordem que a Companhia Nacional expedira mandando que ele, Pereira Franco, passasse para o seu vapor, o “Rio de Janeiro”, e que o malogrado Souza Reis assumisse o comando do “Rio Apa” para conduzi-lo à carreira de Montevidéu a Mato Grosso.
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Os ladrões é que se tem fartado com os objetos que vão aparecendo, lançados pelo mar às praias. O Sr. Dias Vianna, que foi à Costa do Albardão por conta do seguro, diz que a praia acha-se povoada de aventureiros, que se entregam com o maior descaramento à pilhagem. Dia e noite esses indivíduos não arredam pé da praia, à espera dos despojos que o Mar vai arrojando à Costa.
— A Exmª Sr.ª Idalina Meirelles Paranhos, viúva do finado General Antônio da Silva Paranhos e mãe do infortunado jovem Cadete Antônio da Silva Paranhos, que vinha a bordo do “Rio Apa”, para reunir-se ao 5° Regimento de Cavalaria, aquartelado em Bagé, telegrafou ontem de Porto Alegre a um nosso amigo, pedindo-lhe que, se aparecer o corpo do infeliz jovem, providencie em sentido de que seja dada ao mesmo sepultura, marcando o lugar em que se, efetuar a inumação.
O telegrama diz que será fácil reconhecer o cadáver do desventurado moço pela roupa que tiver vestido, a qual deve estar marcada com as iniciais A.S.P.
A pessoa, a quem a desolada mãe se dirigiu, escreveu ao honrado e distinto Sr. Comandante da Barra, fazendo-o ciente do piedoso desejo da respeitável senhora.
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Sinistros Marítimos
A catástrofe sucedida ao Paquete “Rio Apa”, que a todos tem consternado, foi realmente uma fatalidade, que não podia ser evitada e que é injustiça clamorosa atribuí-la à Companhia e menos ainda ao Governo.
Está plenamente verificado que o “Rio Apa” havia, por diferentes vezes e em várias épocas, navegado no serviço da linha entre esta Corte e Montevidéu, o que sempre, fez galhardamente apesar de ser um navio mais apropriado à navegação de Rios do que realmente à do Oceano; mas, estando sob o comando de um oficial muito perito e conhecedor perfeito daquela navegação difícil em mares quase sempre bravios, tudo fazia crer que, como das outras vezes, o “Rio Apa” iria a salvamento ao seu destino.
Entretanto, assim não aconteceu, e desde Santa Catarina, dando o barômetro indicações infalíveis de grande temporal do SE, esse vento que os marinheiros, na sua frase pitoresca, chamam carpinteiro, porque é o demolidor dos navios na Costa, o afoito oficial, não obstante essas revelações fatídicas, navegou “terra à terra” para o Rio Grande do Sul, de cuja Barra, chegando no dia 11, teve de retroceder porque, sobrevindo uma densa Cerração não se distinguia mais onde estava o Canal. As lufadas impetuosas do vento, que soprava então cada vez mais fresco, e que demonstrava ainda maior intensidade, aconselharam o distinto comandante Pereira Franco a “puxar para fora, com pouca força”, afim de não ser assoberbado pelo mar.
Nestas circunstâncias, tudo faz presumir que o “Rio Apa” não podendo resistir à capa, e ameaçando o temporal a cada instante afundá-lo, os passageiros naturalmente prepararam-se com salva-vidas para nadar. Dada efetivamente a catástrofe sem dúvida que os náufragos teriam de boiar na superfície dos mares empoladíssimos com montanhas d’água medonhas e aterradoras.
Nestas circunstâncias e em uma temperatura de 10° a 12° graus centígrados, seria impossível que esses infelizes pudessem resistir por mais de 24 horas, e por isso vieram muitos cadáveres à praia perfeitamente conservados pela congelação. Com um temporal daquela ordem, como nenhum ainda o igualou, desde 1853, ainda no fim de 3 a 4 dias os mares daquela região, açoitados pelo vento, ficam empolados. Todo e qualquer socorro seria impossível. Nem mesmo a jangada pode ser útil em casos tais.
Que o temporal foi o mais terrível que açoitou aquela Costa, prova-o o testemunho do Comandante do Paquete francês “Congo”, quando disse aos que o interrogaram aqui, que durante toda a sua longa carreira marítima não tinha deparado Mares tão grandiosos, como os desse temporal! E se o “Congo” pode fazer a travessia de Montevideo à Corte, foi isso devido a navegar ele “em altas profundidades, onde os mares são mais mansos”, ao passo que sobre a Costa Baixa do Rio Grande, Costa que, prumando-se em 4 braças, “não é avistada”, os mares são “triplicadamente mais alterosos” do que no outro caso.
Naquela terrível conjuntura somente uma resolução suprema, um grande heroísmo poderia evitar que a catástrofe do “Rio Apa” fosse tão completa como foi; esse heroísmo seria aquele de “abicar” na praia e para procurar salvar alguns ainda mesmo que outros tivessem de perecer.
Esta resolução encontraria sua justificação em outros tristes naufrágios, como por exemplo, o da Corveta “Isabel” sobre a costa de Tanger, o do “Cavour” nesta mesma ocasião do grande temporal de que tratamos, e ainda o fato de encalhe na costa do Albardão, em 1865, do vapor inglês “Powerfull” que ali se despedaçou, e que conduzia o Batalhão de Voluntários “Princesa Leopoldina”, do comando do Coronel Domingos Rodrigues Seixas, tendo morrido 18 pessoas e se salvando mais de 500!
Cumpre ainda dizer que, o Vapor de Guerra “Bonifácio”, tendo a bordo o Capitão-Tenente. Delfim Carlos de Carvalho, hoje Barão da Passagem, navegando em demanda da Barra de Rio Grande, e dando-lhe o barômetro indicações de um grande temporal do SE, travessia na Costa, tendo além disto falta de carvão, foi efetivamente à Barra, e por ela entrou sem direção alguma de catraias nem práticos, e desta forma salvou-se.
Enquanto, pois, a Barra do Rio Grande não for melhorada, custe o que custar, as catástrofes se repetirão ali mais ou menos amiudadamente perante aquele fantasma.
Collatino Marques De Souza. (GDN, N° 214)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 11.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
GDN, N° 214. “Rio Apa” – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Gazeta de Notícias, n° 214, 02.08.1887.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected].
[1] Arinque: cabo que prende a boia à âncora.
[2] Portaló: lugar por onde se entra no navio ou por onde se mete a carga.
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