A Mangueira e a Costa Gaúcha – Parte I

Cel Hiram em seu caiaque

O Novo Argonauta ‒ Rouco Trovão
(José Agostinho de Macedo)  

Soa o rouco trovão, lança a tormenta
Sobre um Mar outro Mar, sorvem-lhe as ondas
O convulso Baixel, de novo aos ares
As encruzadas ondas o vomitam:
Em hórrida peleja os Elementos
Em cada vaga a sepultura mostram.

Embora o vento predominante na região seja o NE, os mais fortes tem sua origem no quadrante Sul e Oeste, sendo os ventos SO e Oeste mais frequentes no período entre os meses de abril a agosto. No intervalo, de seis a dez dias, que ocorre entre as frentes frias, os fortes ventos oriundos do quadrante Sul pressionam o mar contra a costa encobrindo, não raras vezes, toda a extensão da praia.

O vento SSE, que dura, geralmente, três dias provocou diversos naufrágios ao longo dos tempos recebendo o apelido de “Carpinteiro da Costa”, pois lançava, na praia, os destroços de madeira das embarcações que soçobraram. O vento NE predomina no intervalo entre as frentes frias forçando o mar a recuar e expondo as longas e largas praias.

Naufrágios

Desde o início do século XVI, verificaram-se diversos naufrágios ao longo da costa entre a Barra da Laguna dos Patos e o Arroio Chuí. O naufrágio mais emblemático, porém, foi o do navio inglês Prince of Wales ([1]), nos idos de 1861, que provocou um conflito importante nas então estremecidas relações diplomáti­cas com a Inglaterra.

Na noite de 11 para 12.07.1887, naufragaram, vítimas de um terrível ciclone extratropical que se abateu sobre o litoral gaúcho, o vapor inglês “Cavour”, a barca norueguesa “Telenak” e as embarcações brasileiras “Évora”, “D. Guilhermina” e “Rio Apa”. Por volta das 21h00, sobreveio um temporal, acompanhado por um fortíssimo “Carpinteiro da Costa” que se estendeu até as 02h00, a borrasca foi brevemente interrompida retornando com maior intensidade pelas 04h00. As embarcações não resistiram à ação das ondas de até 6,5 m e foram ao fundo.

O Vapor inglês “Cavour”, procedente do Rio de Janeiro, encalhou e afundou ao largo da praia de São José do Norte. A Barca norueguesa “Telenak” que partira de Montevidéu com destino à cidade de Pensacola, Flórida, USA, soçobrou na costa de Santa Vitória do Palmar. A Escuna brasileira “Évora”, que havia saído de Rio Grande com destino a Macau, hoje território da República Popular da China, encalhou e naufragou a pouco mais de 16 km ao Sul da Barra. O Patacho ([2]) nacional “Dona Guilhermina”, de Rio Grande, procedente do Rio de Janeiro, carregava açúcar para Porto Alegre e afundou na Praia do Albardão (Sul da praia do Cassino).

O vapor “Rio Apa”, da Companhia Nacional de Navegação a Vapor, vindo do Rio de Janeiro com destino a Montevidéu, no Uruguai, naufragou ao largo da Barra de Rio Grande, onde deveria fazer uma escala. Pereceram todos os quarente tripulantes e os sessenta e sete passageiros. No dia 16.07.1887, o jornal “Eccho do Sul” reportou:

ECCHO DO SUL – URGENTE 

Escrevem-nos da Barra, a última hora: infelizmente já não há mais dúvidas sobre o naufrágio do “Rio Apa” […] A praia está cheia de destroços e de volumes desde aqui até muitas milhas para o Norte. O “Rio Apa” foi provavelmente surpreendido pelo furacão no momento em que cruzava a vista do farol; tomado pelo vértice quando virava de bordo ou fazia alguma manobra, adernou precipitando-se no abismo das águas. Não deve estar longe o casco. (ECCHO DO SUL)

Esta terrível tragédia acelerou a construção, em Rio Grande, dos molhes da Barra que evitam o assoreamento do canal de acesso ao porto. A obra foi finalizada somente em 1915, quase três décadas após o desastre.

Um naufrágio, mais recente, porém, permanece vivo na memória de todos – o do navio “Altair”. O seu vulto monumental destroçado pela fúria dos elementos ergue-se decadente, há 40 anos, na beira da Praia de Cassino fazendo parte das atrações turísticas da região e do dia-a-dia dos habitantes locais. O naufrágio foi assim reportado pelo “Jornal Agora” de Rio Grande:

Navio “Altair” – Jornal Agora, 08.07.1976 

Tripulantes do barco encalhado estão na cidade – Os 21 tripulantes do navio “Altair”, da empresa Linhas Brasileiras de Navegação [Libra], que encalhou 18 km ao Sul da Barra de Rio Grande aproximadamente às 16h00 de domingo, em meio a uma forte tempes­tade, foram recolhidos por pescadores e conduzidos à costa, chegando à cidade por volta das 12h40min de ontem, segundo o chefe do setor de navegação da agência da empresa, João Alvariza.

Quatorze dos 21 tripulantes estão hospedados no Hotel Paris e sete foram conduzidos para o Hotel Europa. Segundo Alvariza, nenhum deles apresentou problemas de saúde, excetuando-se as consequên­cias da fadiga e das más condições de alimentação que enfrentaram desde que a tempestade começou, no sábado. O navio adernou e tornou-se impossível fazer fogo no “Altair” para cozinhar os alimentos.

O chefe de navegação da Libra disse que isto obrigou a tripulação a consumir apenas alimentos como bolachas e conservas de que dispunham. A carga de trigo que o navio transportava poderá sofrer as consequências de uma rachadura surgida no convés e as possibilidades de recuperá-lo sem novos danos são mínimas. Alvariza disse que, com um calado de 6,40 m, o Altair encalhou a cerca de duas milhas da costa e a rebentação poderá aproximá-lo ainda mais da margem.

Na manhã de ontem, uma equipe de 12 homens da Marinha de Guerra, tendo à frente o Comandante da corveta “Baiana”, rumou para o local do encalhe por terra, portando balsas infláveis para retirar a tripulação. Pescadores das redondezas, entretanto, já tinham conduzido a tripulação à costa e a equipe da Marinha a trouxe à cidade em dois caminhões e uma caminhoneta.

Até às 18h00 de domingo, o rebocador “Plutão” tentou uma aproximação com o navio, mas a rebentação impediu que isto acontecesse. Agora o “Altair” está sendo observado apenas da terra por três homens da Libra.

João Alvariza disse que somente hoje, talvez, se possa avaliar com mais precisão as condições em que o barco se encontra. A Capitania dos Portos do Estado vai ouvir também o Comandante do “Altair” para obter mais detalhes sobre o acidente. O barco tem capacidade de 3.040 toneladas.

Navio “Altair” – Jornal Agora, 10.07.1976 

Dezesseis dos 21 tripulantes do navio Altair encalhado desde domingo 18 km ao Sul da Barra, partirão ao meio-dia de hoje, por ônibus, para o Rio de Janeiro, enquanto os cinco oficiais do barco permanecerão na cidade para prestar depoimento na Capitania dos Portos. […]

Navio Altair – Jornal Agora, 11.07.1976 

É quase certo que “Altair” não será salvo – Dificilmente o navio “Altair”, encalhado desde domin­go ao Sul do Cassino, poderá ser tirado inteiro do cômoro de areia em que foi jogado, por circuns­tâncias ainda não esclarecidas, durante uma tempes­tade. Ontem pela manhã, o Comandante Eugênio Paiva, Diretor da empresa proprietária do “Altair”, fez uma vistoria no navio, acompanhado de um perito do Instituto de Resseguros do Brasil, e constatou a existência de uma rachadura no caso, o que impediria uma operação de reboque, esta operação faria com que o navio, fatalmente, fosse partido ao meio.

Dois porões do “Altair” foram invadidos pela água, e a carga de 3.040 toneladas de trigo está totalmente perdida. O convés também apresenta uma rachadura e os vagalhões da tempestade de domingo danificaram grande parte do instrumental de bordo. O Comandante Paiva, ao fim da vistoria, transmitiu um relatório para a direção central da Libra, no Rio de Janeiro, e espera uma resposta sobre que providências serão tomadas. Sabe-se, entretanto, que o próprio Comandante Paiva encontrou poucas possibilidades que indiquem algum interesse da empresa em retirar o navio. Originalmente encalhado a cerca de duas milhas da costa o navio, ao longo dos anos, foi sendo empurrado e se integrou a paisagem da linha da praia.

Em 06.06.1976, o navio “Altair” deixava a navegação e passava a fazer parte das histórias dos incontáveis personagens que por ele passaram. Para quem se desloca do Cassino, inicialmente o navio é visto como um pequeno ponto no horizonte que vai aumentando com a passagem dos quilômetros até a possibilidade de um contato físico com a sua carcaça corroída pelo Mar. No Sul da Barra do Rio Grande, está uma evidência visual do cemitério de navios que se espalha entre o Norte e o Sul da Barra do Rio Grande. (AGORA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.03.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia  

AGORA, o Jornal do Sul – Navio Altair e Navio Punta Piedras – Brasil – Rio Grande do Sul, RS – Organizações Risul Editora Gráfica Ltda, 1976.

ECCHO DO SUL. Ano XXXIV – Números 160 a 170 – Brasil – Rio Grande, RS – Edições de 19.07.1887 a 30.07.1887 – Bibliotheca Rio-grandense, 1887.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
  • E-mail: [email protected]

[1]   Prince of Wales: Príncipe de Gales.

[2]   Patacho: barco à vela, de dois mastros, vela de proa redonda e vela de ré de formato triangular que lhe permite navegar com vento de proa. 

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