Morando no batelão às margens do rio Abunã, a família do seringal Mapiri, tornou-se vítima da mais cruel ruptura entre os seus modos de vida e o rio Mamu. As relações de harmonia com a natureza foram escabrosamente dilaceradas, enquanto a felicidade sublime entrou em profunda derrocada, provocando um sentimento exacerbado da vida.

Rio Abunã – Fronteira Brasil – Bolívia. Foto: Marquelino Santana.

A aparência nostálgica de uma criança no batelão, chamou a atenção do pai-da-mata que recorreu à mãe-d’água-brasiviana no sentido de enviar uma mensagem ao menino-boto informando sobre a tristeza exaustiva da criança. O Deus mítico das crianças aparece fenomenal, e rodeado de diversos botos inicia uma desmesurada brincadeira. O menino-boto saltava exuberante. Os demais botos repetiam as suas fascinantes manobras fluviais, enquanto a mãe-d’água cantava eloquente, como que comandando a maestria do estetizante espetáculo aquático-transcendental de paz e felicidade no rio Abunã.

Tomado pela pureza da alegria em presenciar aquele embelecido cenário da natureza em estesia, a criança mergulhava nas águas do Abunã, e nos braços da mãe-d’água-brasiviana, ele une-se ao menino-boto que realizava as suas divinais acrobacias no virtuoso concerto vivificante do Porto Extrema. Para o Antropólogo Bronislav Malinowski o conhecimento dessa realidade revela ao homem o sentido dos atos rituais e morais, indicando-lhe o modo como deve executá-los. O mesmo autor nos esclarece que “o mito quando estudado ao vivo, não é uma explicação destinada a satisfazer uma curiosidade científica, mas uma narrativa que faz reviver uma realidade primeva”.

Os seringueiros brasivianos deixaram o rio Mamu. A tristeza invadiu as águas e a mata. Os deuses brasivianos sentiram o infortúnio da dor e o afrontoso alijamento cometido em desfavor dessas populações ribeirinhas. Mais do que nunca, os deuses precisariam reorganizar o mundo vivido, mas para isso seria necessário que eles se encontrassem e decidissem quais seriam as próximas tarefas cósmicas à serem realizadas por eles. Segundo o professor e escritor norte-americano Joseph Campbell, os mitos transmitem mais do que um mero conceito intelectual, pois pelo seu caráter interior, eles proporcionam um sentido de participação real na percepção da transcendência.

Na celebração mítica do imaginário privilegiado dos seringais do rio Mamu, os deuses brasivianos marcaram um grande encontro, e em respeito à memória coletiva ribeirinha, eles agirão impolutos e obstinados, em resposta às atrocidades cometidas contra as suas complacentes e suntuosas coletividades tradicionais da Amazônia brasileiro-boliviana.

Por: Marquelino Santana

FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor

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