Na condescendência humana da tradicional coletividade brasiviana do rio Mamu – Departamento de Pando – a natureza pandina torna-se indissociável da munificente alma ribeirinha. Do fabrico da péla na fumaça do buião ao escoamento da borracha através dos comboios nos varadouros, o seringueiro vai se apropriando dos valores das atividades de extração e também apreendendo os ritos e mitos das divindades transcendentais dos seringais amazônicos.

Rio Mamu – Pando – Bolívia – Postada por: Marquelino Santana

O seringal Mapiri é uma exímia e fascinante demonstração de beleza dos seringais do Noroeste boliviano. Localizado entre os seringais Palmares e Potossi, o Mapiri – marcado suntuosamente pelo seu peculiar cenário florestal pandino – recebe silenciosamente as águas cristalinas do igarapé todos os santos, o mais importante afluente do rio Mamu.

Durante o ano de 2007 – um ano depois da Ascenção do Presidente Evo Morales ao governo boliviano – o lar ribeirinho do seringal Mapiri acordou atônito e angustiado com o canto nostálgico do Urutau. O seringueiro levantou-se da rede, e preocupado disse a sua família: — A mãe-da-lua-parda veio nos dizer que algo de ruim está acontecendo no rio Mamu e que agente precisa tomar cuidado.

Naquela noite o seringueiro não conseguiu mais dormir e não colocou a poronga sobre a cabeça para cortar seringa, apenas acendeu o candeeiro no tapiri e esperou amanhecer o dia em profundo estado de desânimo. No raiar do dia, doze homens fortemente armados cercaram o velho tapiri, expulsaram a família seringueira e ordenaram que todos fossem embora. Eles apoderaram-se de alguns pertences, adentraram no batelão e navegaram com destino ao Porto Extrema no rio Abunã – Brasil.

Porto Extrema – rio Abunã – Rondônia – Brasil – Postada por: Marquelino Santana

No leito do rio Mamu várias famílias brasivianas foram surgindo em seus batelões com destino ao Brasil, e cada uma delas narravam a mesma história: o aviso da mãe-da-lua-parda e a violência execrada e xenófoba cometida contra eles. Enquanto os seringueiros brasivianos se dirigiam ao Brasil, um forte temporal surgiu de repente: as árvores tremiam como jamais visto, enquanto as águas do Mamu corriam furiosas e agitadas. Meio à natureza revoltada, o seringueiro brasiviano do seringal Mapiri, olhou exauridamente para a mulher e companheira e disse: —Todo esse movimento na mata e na água é o pai-da-mata conversando com a mãe-d’água.

Dias depois vários batelões e canoas foram atracando no Porto Extrema no rio Abunã, formando uma imensa fileira de infortúnio e desespero aos povos tradicionais da Amazônia fronteiriça. Diante da fútil execração de um estado belicoso, a família ribeirinha do Mapiri ficou morando no batelão, num cenário absurdo de desprezo, fome e agonia. Numa certa noite o seringueiro brasiviano sonha com o velho-da-canoa e ambos conversam prodigiosamente durante o devaneante sono.

No amanhecer do dia a família acorda com o barulho de um impacto envolvendo canoas e batelões. Era uma canoa solitária, sem gente, sem rumo e sem remo que inesperadamente havia chegado ao Porto Extrema. A canoa surpreendeu a todos, ela estava abarrotada de peixe e carne fresca de caça. O seringueiro do seringal Mapiri ligeiramente ajoelhou-se, e em pranto faz um emocionado agradecimento: — Foi o sonho que tive com o senhor! Foi a sua luz que me iluminou!  Foi o afago acolhedor do seu abraço! Foi a minha fome que o senhor também sentiu! Obrigado velho-da-canoa!

No deslumbramento das águas, a dor é aliviada, e a poética mitológica estetizante, comtempla o imaginário privilegiado dos oprimidos. Para o antropólogo Bronislav Malinowski, o mito é um ingrediente vital da civilização humana que está longe de ser uma fabulação vã. Para o mesmo autor, o mito é uma realidade viva, à qual se recorre incessantemente. Na alegria e na dor, os deuses brasivianos continuaram se encontrando, dialogando e semeando a esperança de dias melhores que oferecesse paz e dignidade às coletividades ribeirinhas do rio Mamu.

Por: Marquelino Santana

FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor

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