O periódico Nature, classificado como um dos maiores e mais importantes periódicos científicos do mundo, ao lado da revista Science, destacou que, do ponto de vista científico, a necessidade de redução do uso e exploração de combustíveis fósseis é inegociável. No entanto, o Brasil está indo na contramão do mundo após o discurso do presidente Lula na COP28. Embora suas palavras tenham sido exatamente o que a comunidade internacional e científica desejava ouvir, elas se dissiparam como meras palavras ao vento devido a uma série de ações adotadas pelo Governo Federal nos dias subsequentes ao discurso.

Porto de armazenagem de petróleo em Itacoatiara (Reprodução/Agência Brasil) – Republicação gratuita, desde que citada a fonte. AGÊNCIA CENARIUM

A pavimentação da rodovia BR-319, visando facilitar o acesso a vastas áreas de exploração de petróleo e gás, bem como a concessão desses blocos no Amazonas, tornou-se infame como o “leilão do fim do mundo”. Isso se deve ao seu potencial para desencadear um colapso no clima global, representando um dano ambiental irreversível e insuperável para o nosso planeta.

Nesta publicação, eu e o pesquisador e microbiologista, Guilherme Becker, do Centro de Microbioma One Health, Centro de Dinâmica de Doenças Infecciosas e Instituto de Ecologia da Penn State University, apontamos que a pavimentação da Rodovia BR-319, além de ser uma tragédia do ponto de vista climático, conduzirá a Amazônia a um ponto de não retorno. Além disso, essa pavimentação deve propiciar saltos zoonóticos, desencadeando não apenas uma, mas uma série de pandemias globais. Saltos zoonóticos são infecções causadas por vírus, bactérias, fungos, parasitas e até príons, que estão estocados naturalmente em alguns organismos, e podem se espalhar para outros, incluindo humanos, por meio do contato direto ou através de alimentos, água ou meio ambiente.

Quando esses patógenos conseguem infectar e se adaptar para se espalhar entre os seres humanos, ocorre o salto zoonótico, resultando no surgimento de novas doenças infecciosas que afetam as populações humanas. Um estudo publicado há dois anos pelo nosso grupo de pesquisa já indicava que o Amazonas, assim como os outros estados da região Amazônica, não está preparado para emitir um alerta epidemiológico caso uma pandemia venha a emergir na região.

É consenso entre os principais periódicos do mundo que a pavimentação da Rodovia BR-319 é inviável, tendo sido apontada pela Science em 2020 como uma ponta de lança do desmatamento na Amazônia. Em resumo, o aumento da exploração de petróleo e o aumento do desmatamento causado pela rodovia devem agravar as mudanças climáticas, levando o bioma a um ponto de não retorno, o que terá consequências para todo o planeta.

Por sua vez, a liberação de patógenos letais, que atualmente estão isolados na floresta, se disseminará facilmente, encontrando condições adequadas no cenário de mudança climática para gerar não apenas uma, mas uma sequência de epidemias e pandemias muito mais severas e intensas do que a pandemia de COVID-19. O parecer publicado no periódico Nature, nesta terça-feira, 30 de janeiro de 2024, aponta:

“Proteger o meio ambiente é uma decisão baseada na ciência e não deve ser negociada. No entanto, dois dias após o discurso do Presidente Luiz Lula da Silva na cúpula climática COP28 em Dubai, Emirados Árabes Unidos, em 1 de dezembro de 2023, seu governo anunciou a pavimentação da rodovia BR-319. Essa rodovia conecta Manaus, no coração da Floresta Amazônica, a Porto Velho, no “arco do desmatamento” em suas fronteiras ao sul. Em 13 de dezembro, a agência nacional de petróleo do Brasil vendeu os direitos de perfuração de petróleo em 602 áreas, sendo 21 delas na bacia amazônica, acessadas através da BR-319 e de estradas secundárias. Uma semana depois, o Congresso Brasileiro aprovou um projeto de lei considerando o projeto rodoviário como essencial e alocando recursos para ele a partir do Fundo Amazônico, destinado a proteger a floresta tropical. Os doadores do Fundo Amazônico devem exercer seu direito de veto para evitar isso, ou serão considerados corresponsáveis por um projeto que prejudicará as metas climáticas, acelerará a perda de biodiversidade e abrirá vastas áreas de floresta que abrigam uma diversidade incalculável de patógenos, como vírus, bactérias e príons. O governo brasileiro está minando suas próprias alegações de que está protegendo a Amazônia. Para enfatizar o compromisso do Brasil em mitigar as mudanças climáticas e promover o bem-estar global, é fundamental reverter essas decisões prejudiciais”.

Segundo Guilherme Becker, a rodovia BR-319 deve não apenas propiciar saltos zoonóticos de vírus, bactérias, príons e fungos estacados na floresta para o ser humano, dando origem a novas epidemias e pandemias, mas também ajudar a disseminar patógenos já conhecidos para a fauna da Amazônia.

Becker destaca um estudo liderado por ele no renomado periódico Ecography, em que se demonstrou que a abertura de estradas na Amazônia serve como uma via de propagação do patógeno letal aos anfíbios, conhecido como Batrachochytrium dendrobatidis, classificado como o patógeno mais letal do mundo, conhecido em vertebrados.

Em uma pesquisa também realizada no Centro de Microbioma One Health da Penn State University pelo laboratório do pesquisador e publicada pelo periódico Ecology Letters esta semana, foi demonstrado que o aumento das secas interfere diretamente na microbiota da pele dos sapos, tornando-os mais suscetíveis aos efeitos nocivos do Batrachochytrium dendrobatidis.

Frente às mudanças climáticas que têm afetado a Amazônia, o que incluiu a grande seca observada em 2023 e as projeções futuras, se pavimentada, a rodovia BR-319 poderá desencadear a maior perda de biodiversidade já observada no planeta, afetando principalmente os anfíbios, que são um dos grupos mais importantes no controle natural de pragas para a agricultura e de vetores de doenças para o ser humano. O pesquisador ainda destaca: “Abrir este bloco de floresta irá propiciar saltos zoonóticos com consequências ainda inimagináveis, é catastrófico”.

Os apontamentos técnicos da ciência também devem ser seguidos pelo judiciário, pois estudos têm mostrado que decisões equivocadas do judiciário ao negar a ciência têm tido sérias consequências para a região. Um exemplo disso foi o estudo publicado na Journal of Racial and Ethnic Health Disparities que apontou que o desembargador I’talo Fioravanti Sabo Mendes usou a crise do oxigênio em Manaus como argumento legal para permitir a realização de audiências públicas do licenciamento da rodovia BR-319, em meio à pandemia de COVID-19, sem a participação dos povos indígenas. A melhor rota para o abastecimento de Manaus com suprimentos médicos é o Rio Madeira, tanto em termos de custos como de agilidade no transporte, como demonstrado no estudo.

Outro exemplo catastrófico foi um processo movido pelo Centro da Indústria do Estado do Amazonas e pela Federação da Indústria do Estado do Amazonas para impedir um lockdown que visava conter uma segunda onda da pandemia de COVID-19 na cidade de Manaus. O juiz Ronnie Frank Torres Stone negou o pedido de lockdown feito pelo Ministério Público do Estado do Amazonas (MP-AM), alegando falta de informações suficientes, mesmo existindo uma nota técnica realizada por especialistas e divulgada pelo MP-AM.

O periódico Nature Medicine chegou a apontar em uma publicação em agosto de 2020 que as ações do judiciário de não escutar a ciência levariam Manaus a uma segunda onda de COVID-19, assim como ocorreu. Em 2021, o periódico Regional Environmental Change apontou que o Amazonas e o Brasil não têm capacidade de dar o alerta de uma pandemia global que surja na região em decorrência da degradação ambiental, fornecendo recomendações claras para que políticos e o judiciário ouçam a ciência.

As pesquisas científicas são claras: se a rodovia BR-319 for pavimentada, afetará toda a Amazônia, com consequências globais, e essa responsabilidade recairá sobre o presidente Lula e seu governo. É crucial que a Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, inste o IBAMA a suspender imediatamente todas as licenças de manutenção e pavimentação da rodovia BR-319, e que o judiciário e o governo brasileiro impeçam essa catástrofe, assim como a exploração de petróleo na bacia Amazônica. Isso será um divisor de águas no comprometimento ambiental do Brasil com as metas climáticas globais, o meio ambiente e a saúde pública global.

Os nomes dos responsáveis por permitir os desdobramentos dos efeitos da pavimentação da Rodovia BR-319 e a exploração de petróleo na bacia Amazônica devem entrar para a história como aqueles que conheciam as consequências, mas mesmo assim foram coniventes com a abertura dessa Caixa de Pandora. Pavimentar a estrada para o fim do mundo ou garantir o bem-estar global está nas mãos do Presidente Lula, da Ministra do Meio Ambiente Marina Silva e do judiciário brasileiro. A ciência é clara: – Proteger o meio ambiente é uma decisão baseada na ciência e não deve ser negociada

– Nature 30 de janeiro de 2024.
Lucas Ferrante – Especial para a Agência Cenarium*
(*) Este conteúdo é de responsabilidade do autor.
*Lucas Ferrante possui formação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL), Mestrado e Doutorado em Biologia (Ecologia) pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), onde em sua tese avaliou as mudanças contemporâneas da Amazônia, dinâmicas epidemiológicas, impactos sobre os povos indígenas e mudanças climáticas e seus efeitos sobre a biodiversidade e pessoas.

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