Uma Página Memorável – Parte II

Uma Página Memorável

[…] Vinte e quatro horas passou Sua Majestade e seus dois genros, bem como todo o séquito imperial, a comer simplesmente pão e queijo duro, e, entretanto comprazia-se com estas privações, e se acostumava com elas, como se estivesse habituado a sofrê-las!

Por essa ocasião um soldado do piquete não podia re­sistir ao frio, estava inteiramente álgido, e “estiriçado” gemia; então o Imperador, condoendo-se da sorte do mesmo soldado, ordenou que ele se recolhesse, e com uma caridade que excede todos os limites conce­ptíveis, tirou de seus ombros sua capa e com ela co­briu o corpo do infeliz soldado! A história tem registra­do em suas páginas feitos de caridade praticados por Príncipes filantropos, mas certamente como o que acabamos de registrar nunca apontou algum!

É um fato virgem, e que sobremodo honra àquele que o praticou!!! O Monarca Brasileiro compreende realmente a missão dos Reis na terra, e sabe que esta missão não consiste unicamente na administração do país, confiado ao seu governo: compreende e sabe que a missão dos Reis na terra abrange, além do governo e regime dos povos, uma esfera mais larga e ao mesmo tempo mais nobre e generosa a de melhorar, quanto neles couber, a sorte dos seus governados ou súditos.

O pobre e infeliz soldado morreria de frio, se o Imperador lhe não cobrisse os membros com a sua capa. Ele previu-o e atirou-lhe a capa! Privou-se do único recurso que tinha só para não deixar morrer o seu soldado!

ste fato é a mais eloquente e a mais sublime apoteose do Imperador do Brasil! O frio não decrescia de intensidade: o Imperador privado de sua capa, e tendo unicamente sobre si um capote de borracha, começou de experimentar a seu turno os rigores da estação; nada dizia, porém; visivelmente incomodado, manteve todavia uma calma que à sua comitiva não pôde deixar de causar profunda admi­ração, não sabendo explicar, como o Imperador, criado com todos os cômodos e no meio de todos os gozos, podia suportar tantos tormentos!

Aumentaram os incômodos de Sua Majestade que já principiava a tiritar de frio. E de que modo abrigar-se, se, como já os leitores viram, apenas tinha ele por toda a cobertura um capote de borracha?

O General Francisco Xavier Calmon da Silva Cabral, velho servidor do Monarca, achava-se felizmente a seu lado, e com aquele devotamento que tributa a seu Augusto Amo, tirou dos seus ombros, com um movimento que traiou ([1]) a maior espontaneidade, a capa que o cobria, e ofereceu-a ao Imperador. Este a princípio recusou, porque não queria, por amor dos seus cômodos, expor a vida do seu Ajudante de Campo.

O General, porém, suplicou-lhe que aceitasse e se servisse da capa: Sua Majestade aceitou-a, mas uma lágrima de gratidão que se lhe deslizou pelas faces, foi a sublime expressão com que agradeceu ao General a sua dedicação! O procedimento magnífico do General Cabral, expondo-se em idade sexagenária às duras consequências de um enregelamento cruel para que o Imperador não continuasse a experimentar a ação maléfica do frio, é digno de todos os encômios ([2]), e revela a nobre qualidade que adorna o distinto Ajudante de Campo ‒ reconhecimento indelével aos favores e às graças que Sua Majestade Imperial lhe tem liberalizado! O procedimento do Imperador, agradecendo com a eloquência de uma lágrima que lhe correu pelas faces a fineza do seu leal servidor, deu testemunho de um sentimentalismo próprio para demonstrar a grandeza do coração Imperial!

Pouco adiante da choupana de Maria Joaquina de Toledo, parou Sua Majestade na casa da residência do Tenente José Marinheiro. Neste lugar recebeu uma carta do General D. Venâncio Flores, na qual lhe participava haver nomeado uma comissão composta do Coronel Bernabé Magarinos, Chefe do Estado-maior do Exército da Vanguarda, e de seu Secretário Herrera, com honroso fim de felicitar em seu nome a Sua Majestade pela heroica resolução de atirar-se aos sofrimentos de uma viagem penosa no intuito de ser ([3]) presente ao Teatro da Guerra; resolução que, além de heroica, havia necessariamente de incutir demasiada coragem e valor nos ânimos dos soldados que compõem o exército aliado, e irremissivelmente ([4]) trazer a vitória do mesmo exército na civilizadora cruzada contra o bárbaro ditador do Paraguai.

Os recursos do lugar eram muitíssimo apoucados; contudo foram dadas sem demora as providências possíveis para que a recepção dos dignos comissários orientais fosse revestida de todas as formalidades. O Imperador que, além do mais; é extremamente cavalheiro e sabe corresponder com a devida cortesia e urbanidade os atos de delicadeza praticados com sua Augusta Pessoa, ordenou que o seu Ajudante de Campo General Cabral, o Conselheiro Henrique de Beaurepaire Rohan e o Chefe de Esquadra Conselheiro Joaquim Raimundo de Lamare se adiantassem a receber em comissão os emissários do General Flores. Partiu a comissão, que de volta, apresentou a Sua Majestade somente o Coronel Magarinos visto que Herrera, por incomodado, ficara em meio do caminho. Magarinos declarou em seu discurso ao Imperador o que dissemos acima, manifestando-lhe as expressões de verdadeira e afetuosíssima amizade que lhe tributa o General Flores. O Imperador agradeceu com frases do mais fino trato a grande prova de consideração que lhe era transmitida por seu leal amigo, com o qual em breve teria o prazer de encontrar-se.

No dia 30.08.1865 continuou Sua Majestade e seu séquito a jornada, acampando num Arroio, pouco além do Rio Salso, que já haviam passado. Aí teve o Imperador a benevolência de oferecer um almoço ao Coronel Magarinos, sendo para semelhante efeito aproveitados os escassos recursos, dos quais era possível dispor no lugar. Nesse mesmo dia, chegando o Monarca a S. Gabriel, soube que o General João Propício Mena Barreto, por ele ultimamente agraciado com o título de Barão daquele nome ([5]) se achava gravemente enfermo de moléstia agravada no campo da batalha. Sua Majestade foi imediatamente visitar o ilustre General, dispensando-lhe palavras de animação, e acoroçoando-o ([6]) a que tivesse esperanças na indefectível ([7]) bondade da Providência Divina, que se havia de condoer dos seus sofrimentos, e breve restituí-lo completamente restabelecido à pátria, que havia mister ([8]) ainda dos seus bons serviços militares.

O General Mena Barreto, sabem-no os leitores, foi um dos heróis do Paissandu: aí obrou ele prodígios de valor; mas desde então, para infelicidade sua e do país, que o conta no número dos seus mais distintos filhos, uma enfermidade, que o minava havia longos anos, exacerbou-se, privando o exército da presença de tão denodado e intrépido Cabo de Guerra.

O General debilitado, sofrendo horríveis dores no leito da doença, ou antes, no sarcófago da agonia, mal pôde em princípio reconhecer a Visita Augusta que o honrava; mas, pouco a pouco, e como que se a presença do Imperador tivesse o poder de restituir-lhe a vida, que já se lhe ia sumindo, seus membros começaram a adquirir algum vigor, seus olhos, até aquela ocasião cerrados, se abriram, e acenderam-se de uma chama benéfica, que fez com que ele reconhecesse o grande hóspede que o magnificava ([9]).

Seus lábios se entreabriram e deixaram escapar um como sorriso, que ao passo que exprimia a sua satisfação, manifestava as dores que a moléstia lhe dava a experimentar… Depois com um movimento, que se não descreve, levou aos lábios à destra ([10]) Imperial, que uma e mil vezes beijou com a maior ternura, e a maior efusão de sua alma! Sua Majestade Imperial retirou-se, deixando o General na contemplação da subida mercê ([11]) que lhe outorgara…

A 03.09.1865, seguiu o Imperador para Alegrete, onde chegou no dia 08.09.1865 às 15h00, e acampou com a sua comitiva no lugar denominado Ambrósio à margem esquerda do Rio Santa Maria, que vai desaguar no Uruguai.

À noite quis Sua Majestade causar uma agradável surpresa ao seu fiel Ajudante de Campo, o General Cabral, dirigindo-se à barraca deste, na qual se achavam o Chefe de Esquadra Conselheiro de Lamare, o Mordomo da viagem Comendador Francisco Pinto de Melo, o General Gama e o velho Ambrósio que dá nome ao lugar do acampamento. Demorou-se o Imperador nesta visita até às 22h00, entretendo-se a conversar com o General Gama e o velho Ambrósio em língua Guarani. Coisa notável!

No dia 07.09.1865, que traz à lembrança dos brasileiros o mágico grito de “Independência ou Morte” soltado nas campinas do Ipiranga pelo herói dos dois mundos, o Senhor D. Pedro I, de sempre saudosa memória, o Senhor D. Pedro Segundo, digno filho e herdeiro do valor daquele Príncipe imortal, peregrinava pelas campinas da vastíssima Província de S. Pedro do Rio Grande do Sul, não para soltar o famoso brado que libertou um povo inteiro da denominação de uma orgulhosa metrópole, mas para defender a essa mesma pátria que seu Augusto Pai havia libertado, e expelir dela a ousada invasão de um tirano brutal!

No dia 07.09.1822, o Rei Generoso e Magnânimo que abdicou duas coroas, soltava, para emancipar um povo grande e digno do mais brilhante futuro, o grito da liberdade; no dia 07.09.1865, 43 anos depois, o Ínclito sucessor das suas glórias, arrostava todos os perigos para com sua presença animar os seus soldados, e aos soldados aliados a fim de levarem eles a civilização à terra da barbárie, e a liberdade à terra da escravidão! E quão doces reminiscências não vieram à mente do Imperador naquele dia tão grato a todos os Brasileiros? É fácil adivinhá-lo. (CRUZ) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 05.02.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia:  

CRUZ, Gervásio José da (Segundo Oficial da Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha). Gratidão dos Brasileiros ao seu Excelso Imperador: Uma Página Memorável da História do Reinado do Senhor Dom Pedro II Defensor Perpétuo do Brasil ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Tipografia Perseverança, 1865.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
  • E-mail: [email protected]..

[1]   Traiou: revelou. (Hiram Reis)

[2]   Encômios: aplausos. (Hiram Reis)

[3]   Ser: estar. (Hiram Reis)

[4]   Irremissivelmente: definitivamente. (Hiram Reis)

[5]   Barão daquele nome: 2° Barão de São Gabriel.

[6]   Acoroçoando-o: animando-o. (Hiram Reis)

[7]   Indefectível: infalível. (Hiram Reis)

[8]   Havia mister: precisava. (Hiram Reis)

[9]   Magnificava: exaltava. (Hiram Reis)

[10]  Destra: mão direita. (Hiram Reis)

[11]  Mercê: graça. (Hiram Reis)

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