A Terceira Margem – Parte DCCVIII
Homenagem ao ST Élgio Benhur Ribas
A sua vida foi dedicada à família e ao Exército Brasileiro, em ambas o seu caráter foi esculpido e a ambas serviu como um fiel discípulo, não medindo esforços para dar o melhor de si, mesmo que tal significasse intensos sacrifícios.
Muito jovem, com apenas dezoito anos, foi para a Escola de Sargentos das Armas [EsSA], em 1957, em Três Corações, MG, onde concluiu o Curso de Cavalaria, retornando à sua querida terra natal, Dom Pedrito, em janeiro de 1958. Lá retornou às fileiras do 14° Regimento de Cavalaria, Unidade, onde servira por duas semanas, como soldado, antes de ser chamado para a Escola citada.
Em abril de 1962, casou-se com a Sr.ª IVONE, com a qual teve dois filhos ERLON e ÉLGIO, e uma filha, ADRIANA. Essa família tornou-se uma referência e um belo exemplo de união e amor para aqueles que tiveram a possibilidade de conhecê-la e de desfrutar do seu convívio.
O ST BENHUR serviu em várias Unidades do Exército, além da já citada, também na 3ª CRO [Comissão Regional de Obras], em Porto Alegre, RS, no 29º BIB (Batalhão de Infantaria Blindado), em Santa Maria, RS, na 2ª Cia de Infantaria, em Francisco Beltrão, PR, dentre outras, tendo feito muitos amigos e nenhum desafeto.
Manteve contato estreito com seus companheiros de turma da Escola de Sargentos das Armas, participando dos encontros anuais, acompanhado, por desejo e por amor, de sua namorada, dona IVONE, a quem carinhosamente chamava de NEGRA e recebia em troca o retorno semelhante, NEGRO, quantas mensagens de carinho e do mais belo sentimento expresso em apenas duas sílabas.
O homenageado trabalhou, já na Reserva Remunerada, no Grêmio Expedicionário Geraldo Santana, por quase dez anos, onde exerceu as funções de membro do Conselho Deliberativo e de integrante da Diretoria Executiva, como Primeiro Secretário e também como Segundo Vice-Presidente. Mercê de sua conhecida competência e abso-luta dedicação e meticulosidade, conquistou a confiança do quadro social e o respeito dos superiores e dos subordinados, sendo um magnífico modelo a ser seguido.
Anos mais tarde, após desligar-se dos afazeres do Geraldo Santana, aceitou o convite do comandante do Colégio Militar de Porto Alegre, indo integrar, em meados de 1994, suas fileiras na Seção Técnica de Ensino, inicialmente como prestador de tarefa por tempo certo [PTTC] e após exercendo trabalho voluntário, somando os dois períodos chega-se a quase vinte e dois anos.
Sua capacidade de trabalho parecia contrastar com seu caminhar sem pressa, mas não para os que tinham intimidade com ele, pois através de seu próprio depoimento, sabíamos que o ST BENHUR desfrutava cada passo que dava, contemplava a natureza, respirava o ar com prazer, olhava tudo que o rodeava com indescritível capacidade analítica.
Às vezes deixava escapar algum comentário que me fazia pensar em como ele tornara-se uma pessoa tão perspicaz e apreciadora das minúcias, que passariam despercebidas, até para os mais atentos.
Isso me remetia à frase que um ex-comandante do CMPA, meu particular amigo, o Cel PIAGGIO, gostava de mencionar, de autoria de Albert Einstein:
“Deus está nos detalhes”.
Emérito contador de causos, sempre ricos em pormenores e que algumas vezes, deliberadamente, não ficavam muito claros para os ouvintes, fazendo com que houvesse indagações por parte desses atentos apreciadores. Então as interrogações se desfaziam com uma explicação simples, mas normalmente enfeitada por alguma firula bem colocada.
Ele gostava de contar suas peripécias da infância e da juventude, bem como das histórias da caserna, nelas ele quase sempre estava presente, mas muitas das vezes não era o personagem principal. Repetir as histórias não era do seu agrado, mas, a pedidos, não recusava, porém elas nunca eram idênticas, algum novo detalhe a transformava em inédita, sem modificar o enredo. Sobre a sua família ele mantinha certa reserva, contando apenas algumas passagens, sem jamais entrar em alguma particularidade que pertencesse ao rol da intimidade dos seus entes mais queridos.
As provas bimestrais, ou trimestrais [AEs] que tinham gravuras não muito nítidas sempre foram um desafio para a Seção Técnica de Ensino [STE], do CMPA. O ST BENHUR era o encarregado da reprodução das mesmas, fazendo a cada bimestre ou trimestre letivo, dezenas de milhares de cópias, e a ele cabia a última possibilidade de melhorar a clareza da imagem. Quando isso acontecia, já se sabia que vinha uma bronca, mas ao mesmo tempo uma boa solução, pois ninguém como ele sabia utilizar os recursos das nossas copiadoras. A STE, realmente, estava em excelentes mãos.
Ele tratava nossas professoras e professores de uma forma muito particular, com seu inigualável carisma fronteiriço, quem chegava triste saía alegre, os que estavam zangados ficavam calmos e os que estavam bem, despediam-se melhor ainda. Nunca vi ninguém com essa magia no sorriso, no olhar e nas palavras. Alguns podem pensar que eu não seja totalmente isento, pois a amizade que nutríamos e compartilhávamos um pelo outro era ímpar, mas se enganam porque no Colégio dos Presidentes, não querendo me referir às outras Organizações Militares nas quais eu servi, convivi com centenas e centenas de profissionais, dentre esses muitos queridos amigos e amigas, mas, em momento algum encontrei alguém com os dotes interpessoais do BENHUR, no tocante a transformar o humor das pessoas.
É impossível deixar de relatar uma de suas tiradas mais pitorescas, a história das chinas. Até pouco tempo atrás, cada casal chinês só podia ter um filho, era conhecida como Lei do Filho Único e vigorou por mais de trinta anos. Em setembro de 2015 foi substituída por nova legislação que libera os casais para terem duas crianças. Enquanto nós conversávamos sobre a, então, novidade, o BENHUR saiu com uma pérola literária: “Na verdade não foi a China a primeira a fazer leis de restrição ao aumento populacional. Para clarear os fatos, essas restrições começaram em Dom Pedrito, é bem verdade, mas com íntima relação com a terra de Mao”. Um de nós perguntou: Como assim, em Dom Pedrito, mas intimamente ligado à China? Era a pergunta esperada e instigada a qual ele prontamente respondeu: Lá nas “chinas”, era proibido engravidar, se tal ocorresse, a percanta que estivesse embuchada tinha que abandonar o restante do chinaredo, sair da casa onde trabalhava, fazer as suas malas e ir a destino, essa era a lei. Ou seja, não podia ter nenhum filho, uma lei mais exigente do que a antiga lei chinesa.
Muitos risos, outra história bem posta, no momento oportuno. Era um craque nas palavras, deveria ter escrito um livro, melhor, pelo menos um. Sabia no momento certo dizer a palavra adequada.
Nossas mesas ficavam lado a lado, éramos tão amigos que os dezenove anos de diferença se dissipavam nas nossas confidências, na comunhão de nossos pensamentos e na maneira de ver a vida. Nós sempre estivemos como as nossas mesas na sala em que trabalhávamos, na Seção Técnica de Ensino, uma bem próxima da outra, ombro a ombro, lado a lado. Quantas saudades eu sinto, quanta falta ele faz!
Levei cinco meses para conseguir iniciar este texto em teu tributo, meu querido e dileto companheiro, a pedido de outro amigo em comum, autor desta obra, pelo qual nutríamos e continuamos a ter esse mesmo sentimento, embora hoje em planos diferentes, eu aqui e tu aí, desfrutando da companhia dos anjos. O Coronel HIRAM, muito mais que simplesmente um amigo, peço perdão pelo advérbio mal colocado, pois esse substantivo bendito: AMIGO, sempre deveria ser escrito assim, com letras maiúsculas, é um ícone do nosso Exército, um homem que dedica a sua vida a escrever a História e reescrever a Geografia de nossas águas, rios, igarapés, lagoas, lagos e lagunas, através de seus livros, relatos vivos e atuais do nosso Brasil ribeirinho, de sul a norte deste continente Terra Brasilis.
Senti-me honrado e orgulhoso ao receber o convite, para mim, a partir de então, uma missão, difícil pela perda recente, ao mesmo tempo desafiadora e comovente. Por isso, mais um motivo eu tenho para agradecer ao desbravador e canoeiro HIRAM REIS E SILVA, homem que faz as mulheres e os homens do Exército Brasileiro terem mais motivo para terem júbilo dessa Instituição que tem trezentos e sessenta e oito anos conquistando vitórias, sem jamais ter conhecido o dissabor amargo da derrota. Isso só tornou-se uma realidade devido a uma conjunção de fatores que não podem ser analisados de per si: preparação profissional, que se sobrepõe ao equipamento e ao armamento, por vezes obsoletos; determinação e vontade de cumprir as missões, muito além do apenas concluir, pois o principal é buscar fazer o melhor, superar-se, não medir esforços.
Seu falecimento aconteceu durante as férias escolares, parece até que ele escolheu esse período para que muitos não estivessem presentes, assim sempre levariam consigo a imagem de eterna alegria que ele sempre irradiou.
A saúde não era motivo de sua preocupação, quem tinha que correr atrás de médicos, receitas e exames sempre era a dona IVONE, prioritariamente. Para ele qualquer chá ou remedinho caseiro lhe bastava. Nos últimos tempos, só evitava a dupla chuva e frio, que deixa muitos gaúchos acamados no inverno. Não tinha queixas da vida, pelo contrário, suas palavras eram de agradecimentos pelas muitas alegrias recebidas do Criador. Assíduo frequentador da missa dominical das onze horas, na Igreja Santa Terezinha, da José Bonifácio, naturalmente acompanhado de dona IVONE, meu querido amigo, mesmo sendo admirador e amigos de vários padres, não lhes poupava de algumas piadas picantes, mas, em contrapartida relatava belas histórias de fraternidade e belos aconselhamentos por parte dos homens de batina.
O nosso querido homenageado tinha muito orgulho de sua família e tributava a sua parceira de uma vida inteira o mérito pela excelente educação de seus filhos, os três com famílias constituídas, com suas vidas pessoais e profis-sionais exitosas. Cultivava o convívio com os parceiros, para os amigos seria capaz dos maiores sacrifícios e pela família daria a própria vida sem pestanejar. Homem de caráter firme e determinado, ele sabia como poucos identificar onde, quando e porque os problemas poderiam acontecer, mas só se dirigia aos superiores para assessorar quando chamado, ou quando urgia uma mudança imediata de rota.
Sua cuia era companheira de muitas mateadas, mas o sabor mais especial nunca fora o da erva-mate, tampouco o roncar da bomba pelo término da água seria o som mais marcante. O amargo tornava-se doce quanto maior fosse a roda de amigos, ou quando estava ao lado de sua eterna namorada, pois ela bastava para preencher todos os espaços do seu enorme coração.
A troca de telefonemas diários entre o BENHUR e a dona IVONE, inúmeras vezes ao dia, verdadeiro rito, remetia a um casal apaixonado e nos primeiros meses de namoro. Muitas das vezes seu estado de humor, por incrível que possa parecer, tornava-se ainda melhor, digo isso enfatizando o seu estado de espírito, alegre e jovial.
Quando do lançamento do primeiro livro do Cel HIRAM, aficionados pelos assuntos amazônicos estiveram presentes na 56ª Feira do Livro de Porto Alegre, na noite de 11 de novembro, prestigiando o lançamento da obra “Desafiando o Rio-Mar”, onde o escritor narrou as aventuras, explorações científicas, depoimentos e impressões pessoais que coletou em suas navegações e andanças no interior de uma das regiões mais cobiçadas e ameaçadas do mundo, quando percorreu em um caiaque mais de 1.600 Km pelo Rio Solimões, desde Tabatinga até Manaus.
Naturalmente, ele e a dona IVONE se fizeram presentes, estavam posicionados na longa fila, imediatamente em minha frente. Lá dialogamos bastante e o assunto principal só poderia ser um, o Cel HIRAM. Fazia um bom tempo que não conversávamos tão longamente, ele e eu, à época nós trabalhávamos em seções diferentes do CMPA. Nossa prosa foi animada e interessante, adocicada pelas pitadas da sua inseparável companheira. Ele percebia no autor de Desafiando o Rio-Mar qualidades que estavam evidentes, mas só para quem conseguia fazer uma leitura tão própria e inteligente das pessoas quanto ele.
Eu, apesar de ver no Cel HIRAM um exemplo de virtudes, dentre elas o empreendedorismo e a praticidade, aliadas à coragem moral e à persistência, inicialmente, não conseguia crer no sucesso de sua empreitada heroica, via como idílico e idealista o seu projeto, mas quase utópico. O BENHUR não duvidava de uma só linha do projeto do coronel. Cabe dizer que os céticos como eu eram uma grande maioria, mesmo assim, todos nós torcermos muito pelo sucesso sufocamos nossas opiniões e vibramos efusivamente com cada conquista. Hoje, vergados pelos fatos, percebemos que somente um único homem seria capaz de realizar um projeto de tal envergadura, com dezenas de feitos verdadeiramente patrióticos, grandiosos e notáveis.
Muitos profissionais, do Colégio do Casarão da Várzea e amigos do BENHUR, sentem ainda uma dor bem forte, um mal estar cujo significado é ausência, tristeza. Cremos que o tempo e a fé curarão esses males, bem como sabemos que as saudades serão perenes. Ao mesmo tempo é tão bom pensar nele, faz um agrado na alma e as lembranças têm o seu sorriso como companhia. Quando a saudade e as boas recordações se unirem será um deleite, não teremos mais as lágrimas de tristeza, mas sim o brilho de alegria no olhar.
Foram setenta e sete anos de uma vida intensa de um homem comum, de um cidadão que exerceu a plenitude de sua existência em prol dos seus entes mais próximos e da Instituição que amou desde guri e onde labutou durante cinquenta e nove anos, que soube como poucos conquistar amizades e manter esses amigos para sempre, que sabia sorrir mesmo quando triste.
Foram cinquenta e três anos de casamento, de filhos e filha, de noras e genro, de netas e neto, de casa, de passeios, de tristezas e de alegrias, de sacrifícios pessoais, para junto com sua eterna e doce IVONE, manter a união familiar e propiciar educação e conforto aos amados herdeiros.
Foi uma existência modelar na acepção mais ampla que possamos conferir a esse adjetivo. Trajetória familiar irretocável, militar disciplinado, disciplinador e generoso, cidadão de conduta ilibada, homem preocupado com o bem-estar do seu semelhante e atuante dentro da comunidade. Se perfeição houvesse seria o amigo perfeito, aquele que jamais nega o estribo, independentemente da situação que se apresentasse.
O Patrão Velho da Estância do Céu, temos convicção, destinou-lhe um bom lugar, de onde possa ver a sua amada família e de vez em quando, de canto de olho, dar uma espiada no Colégio dos Presidentes e conferir se tudo está no seu devido lugar. (Coronel João Batista Carneiro Borges),
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 28.02.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- E-mail: [email protected].
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