Projeto Huka Katu, da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP, leva aos xinguanos ações de prevenção e procedimentos clínicos de diversas áreas da odontologia

Praça residencial no Alto Xingu – Foto: Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu – Postada em: Jornal da USP

O USP chegou! ou Areprï USP ningkïn! na língua caribesão expressões xinguanas familiares para a equipe do projeto Huka Katu, que marcaram a retomada, após dez anos de pausa, das ações da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP dentro do Parque Indígena do Xingu, no Estado do Mato Grosso, no final de 2023.

Para o coordenador do projeto acadêmico Huka Katu, Wilson Mestriner Junior, aqueles que vão para o Xingu, além de absorverem conhecimentos para a vida profissional, também participam de “um processo de transformação e crescimento que vai muito além do conhecimento acumulado”.

Antes de embarcar para o Xingu, os alunos passaram por uma preparação acadêmica para adquirirem novas habilidades e competências profissionais voltadas ao atendimento à população indígena. Essa preparação passa pela disciplina optativa Atenção à Saúde Bucal em Populações Indígenas I. “A disciplina contribui para a formação de futuros profissionais em Odontologia que, além de possuírem as técnicas necessárias para atuação como cirurgiões-dentistas, serão capazes de lidar com a questão intercultural, com a limitação de recursos e aprender sobre gestão de materiais, trabalho em equipe, estudo epidemiológico e saúde da população indígena propriamente dita, além de ser fundamental para o crescimento pessoal desses estudantes”, afirma Mestriner.

O Haku Katu – sorriso lindo, em Tupi Guarani – só foi possível com a intermediação do Distrito Especial de Saúde do Xingu e o apoio da diretoria da Forp, da Reitoria da USP e da Secretaria de Saúde Indígena-MS.

O período no Xingu

Com uma equipe formada por oito alunos de graduação, um de pós-graduação, um professor coordenador e a equipe de área do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Xingu, a Forp desenvolveu ações de saúde entre os dias 8 e 27 de outubro, do ano passado, na região do médio Xingu. Para aqueles que fizeram parte do projeto, a experiência profissional é apenas uma parte da bagagem conquistada no Xingu. Ao vivenciar uma realidade tão diferente, o respeito, a comunicação e a solidariedade se tornaram a base da convivência entre os integrantes da equipe e a comunidade. “Foram momentos de ansiedade e apreensão durante o processo preparatório, mas a entrada se mostrou transformadora com a recepção acolhedora da comunidade”, relata Mestriner.

Durante o período no Xingu, foram atendidas nove aldeias e 450 pessoas. As ações de prevenção se baseavam em aplicação tópica de flúor e escovação supervisionada. Além disso, procedimentos clínicos de diversas áreas da odontologia foram executados em campo com alta taxa de sucesso, como restaurações, tratamento restaurador atraumático (TRA), exodontias (extração de dentes), dentre outros.

Ao final de todos os atendimentos houve a distribuição de kits de higiene bucal, com escova de dente e creme dental, ação patrocinada por empresas parceiras.

Projeto transformador

Os participantes do projeto Huka Katu destacam o aprendizado profissional e o crescimento pessoal proporcionado pelo contato com os indígenas e suas diferentes culturas.

Para Mestriner, “se você tivesse a vontade de fazer algo, não havia outro lugar para ir; você não ia lá pelo bem da sociedade como um todo, mas por seu próprio bem; e mesmo que os motivos fossem outros, talvez mais nobres – como, por exemplo, os do Greenpeace ou dos Médicos Sem Fronteiras – poderia acontecer que, uma vez lá não havia mais aquela “épaisseur triste” entre você e o mundo da realidade” – e que ao tentar salvar o mundo, você salvaria, antes de tudo, a si mesmo. De fato, se muitos obtivessem a coragem, não de suas convicções – o que é relativamente fácil – mas de suas experiências, você também estaria lá…

Para os alunos que estiveram durante esses 20 dias no Xingu, a palavra que resume é gratidão, como afirma a aluna Gabriela Santiago. “Vivenciar essa experiência única, que até então conhecia apenas por fotos desde meu primeiro ano na Forp, tornou-se realidade no último ano da graduação. A ficha de estar participando do projeto só caiu quando deitei na rede após o primeiro dia de atendimento na aldeia. No Xingu, aprendi valiosas lições, como a eficácia de técnicas não invasivas para promover a saúde, a superação das barreiras linguísticas através da escuta atenta, e a influência positiva de como nos relacionamos com a natureza e as pessoas ao nosso redor em nossa saúde pessoal e espiritual.”

Já Laisa Alves Pinto da Silva é só agradecimento “pelo trabalho humanizado, pela aprendizagem, alegrias, dificuldades superadas, e, acima de tudo, pela experiência incrível que proporcionou meu crescimento pessoal e profissional de maneira inexplicável”.

Ana Luiza Sieto Sticke diz que a transformação foi evidente “ao enfrentar desafios nos atendimentos, resistência física e imersão na natureza. A distância familiar permitiu repensar nossa forma de vida. Orgulho-me de estar na maior reserva indígena do mundo, mas o aprendizado transcende palavras. As abdicações valeram a pena, conhecendo pessoas que valorizam relações com a natureza, corpo, mente e espiritualidade. Aprender a viver o ‘Tempo do Xingu’ foi fácil; o desafio é retornar ao tempo daqui”.

Para Fernanda Deodato Severo Nascimento de Jesus essa experiência moldou sua abordagem profissional, com ênfase na escuta e no acolhimento do paciente. “Os 20 dias no Xingu foram enriquecedores, proporcionando o desenvolvimento de habilidades técnicas, ganho de confiança clínica e uma visão ampliada sobre a importância das coisas simples. A vivência desafiou preconceitos, superou limitações pessoais e profissionais, enquanto a conexão com a natureza e a troca cultural aprimoraram minhas habilidades interpessoais, impactando tanto minha vida profissional quanto pessoal.”

João Paulo Rodrigues diz que desde o primeiro contato na recepção de calouros, vislumbrou o impacto como cirurgião-dentista. “A decisão foi solidificada ao cursar Saúde Indígena em 2021. A confirmação para o retorno ao Xingu em 2023 trouxe emoções intensas. A preparação, a viagem e a realidade local desafiadora foram marcantes. Enfrentamos limitações estruturais, longas viagens de barco, escassez de água e energia. Apesar dos desafios, a gratidão dos pacientes e a imersão na cultura local foram transformadoras. A experiência não só moldou minha trajetória profissional, mas também minha essência como pessoa. Só resta a gratidão por essa oportunidade única.”

Luiza Machado Pedrozo diz: “A chance de ir para o Xingu me trouxe um misto de sentimentos, da incerteza à felicidade pela seleção no projeto Huka Katu. Ao pisar no território xinguano, as expectativas foram superadas, revelando um projeto que vai além da odontologia indígena. Huka Katu é sobre aprendizado, compreensão cultural, trabalho em equipe e laços duradouros. A gratidão define minha experiência, agradecendo pelas transformações profissionais e pessoais proporcionadas pelo projeto. Obrigada”.

Para Igor Majuste Alves Ambrosio, “vivenciar a imersão na natureza, o calor dos indígenas e a prática do cuidado humanizado superou todas as expectativas”. Profissionalmente, destacou a aplicação de técnicas não invasivas e a conexão direta com os pacientes. “Saio com a sensação de dever cumprido. Pessoalmente, senti a presença espiritual de meu pai, percebendo seu cuidado em cada atividade. O projeto Huka Katu tornou-se a realização de  um sonho que eu ainda não tinha sonhado.”

Já Eduardo Vieira de Lima lembra que após dez anos de interrupção, os desafios enfrentados eram desconhecidos, pois é uma população carente de cuidados de saúde. “Com dedicação e trabalho em equipe, superamos obstáculos e crescemos profissionalmente. Além das experiências pessoais e emocionais, o projeto aprimorou nossas habilidades acadêmicas, exigindo competência técnica em diversas áreas da odontologia. O trabalho em equipe, treinamento e planejamento permitiram intervir na saúde bucal da população do Xingu, transformando nossa visão profissional e pessoal como futuros cirurgiões-dentistas.”

E, para finalizar, o profissional e pós-graduando Igor Fumagalli destaca que “a viagem ao Xingu foi mais do que explorar o interior do Brasil, mas essencialmente uma viagem ao nosso próprio interior, enquanto seres humanos. Fomos para cuidar, mas acabamos sendo cuidados. A experiência no Huka Katu trouxe compreensão da realidade dos indígenas no Distrito Sanitário Especial do Xingu. O trabalho destacou as necessidades de saúde bucal e a contribuição significativa por meio de atendimentos e educação em saúde. A imersão enriqueceu nosso conhecimento ao entrar em contato com novas culturas, ressaltando a importância de integrá-las em nosso cuidado. Descrever todas as emoções vivenciadas seria pretensioso; foi um constante processo de desconstrução e construção pessoal”.

Por 
*Estagiário sob orientação de Rose Talamone
A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação do Jornal da USP e do autor.
PUBLICADO EM: USP de Ribeirão Preto retoma atendimento à população do Xingu – Jornal da USP 

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