BOA VISTA (RR) – Apesar dos esforços do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para frear a emergência em saúde pública na Terra Indígena Yanomami, o garimpo ilegal devastou 7% do território em 2023, e os indígenas que sobrevivem no território cobram medidas efetivas.

Área degradada pelo garimpo na TIY. Fonte: SMGITIY Hutukara Associação Yanomami. – Republicação gratuita, desde que citada a fonte. AGÊNCIA CENARIUM

A área destruída pela mineração já acumula 5.432 hectares, como aponta a nota técnica divulgada nessa sexta-feira, 26, pelo Instituto Socioambiental (ISA), Hutukara Associação Yanomami, Urihi Associação Yanomami, Associação Wanassedume Ye’kwana e Greenpeace.

O documento revela a redução de áreas degradadas pelo garimpo, se comparada aos quatro últimos anos, quando as taxas de crescimento foram de 42% (2018-2019), 30% (2019-2020), 43% (2020-2021), 54% (2021-2022), mas também faz ligação da insistente presença dos garimpeiros na Terra Indígena com a morosidade e insuficiência das ações do governo federal para combater a atividade ilegal na região após um ano de crise humanitária no território.

Em entrevista à AGÊNCIA CENARIUM, o presidente da Associação Urihi Yanomami, Junior Hekurari, ressaltou que o governo sabia que seria cobrado por suas promessas em relação aos Yanomami, mas não se mobilizou o suficiente.

“Imaginamos que o governo federal não tenha fracassado intencionalmente, porém, para se entender uma realidade como a da população Yanomami, é preciso estar próximo e buscar maneiras efetivas, principalmente com relação ao combate do garimpo ilegal. Esperamos que as ações que foram colocadas em papéis, sejam de fato postas em prática. Que mais postos de saúde sejam construídos, e que seja reavaliado como serão realizadas as ações de saúde nos pontos mais cruciais“, completou o presidente.

Apesar das denúncias ao longo de 2023, o governo federal ainda não apresentou um novo plano para a extrusão dos garimpeiros da Terra Indígena Yanomami. O prazo dado por Lula para a retirada total dos garimpeiros era de nove meses (Fase 01 – 90 dias; Fase 2 – 180 dias), mas claramente não foi cumprido.

“Os dados demonstram que embora o atual governo tenha se mobilizado para combater o garimpo ilegal na Terra Indígena Yanomami (TIY) em 2023, os esforços foram insuficientes para neutralizar a atividade na sua totalidade […] O que se verificou ao longo de 2023 é que, ainda que em menor escala, o garimpo permanece produzindo efeitos altamente nocivos para o bem-estar da população Yanomami”, diz o relatório.

De acordo com a nota, foi registrado o desmatamento associado ao garimpo em 21 das 37 regiões Yanomami, sendo elas: Alto Catrimani, Alto Mucajaí, Apiaú, Arathau (Parima), Auaris, Balawau, Demini, Ericó, Hakoma, Homoxi, Kayanau (Papiu), Maturacá, Missão Catrimani, Palimiu, Papiu (Maloca Papiu), Parafuri, Surucucus, Uraricoera, Waikás, Waputha e Xitei. Em pelo menos 13 das 21 regiões, foi confirmada a presença garimpeira.

Um monitoramento do Greenpeace Brasil mostra que o garimpo não só se manteve ativo durante todo o ano de 2023, como cresceu a partir do mês de agosto, quando as Forças Armadas protagonizaram as operações de desintrusão na Terra Yanomami.

“Se no primeiro semestre, o conjunto de operações e medidas de controle de acesso ao território, contribuíram para a saída de boa parte dos invasores (estima-se que algo em torno de 70% a 80% do contingente de 2022), no segundo semestre, com o relaxamento das ações de repressão, especialmente depois que as forças armadas assumiram um maior protagonismo nas operações, observou-se a reativação e a intensificação da exploração em diversas zonas”, consta o documento.

Desmobilização das Forças Armadas

Com base na denúncia das comunidades Yanomami, a nota técnica relata também as estratégias utilizadas pelos grupos criminosos para burlar a fiscalização, como a resistência armada às operações de fiscalização, operações no período noturno e a mudança de alguns centros de distribuição da logística para focos de garimpo situados em território venezuelano, a exemplo das regiões Alto Orinoco, Shimada Ocho, Alto Caura e Santa Elena, além do uso de novas tecnologias de comunicação afim de antecipar operações e reativação de canteiros mais distantes dos grandes rios.

“Nas imagens do mosaico Planet de julho de 2023 foi identificada, por exemplo, a abertura de uma nova pista clandestina na região, nas coordenadas -63,3477; 2,3507, distante 3 km do limite internacional e a pouco mais de 4 km de grandes cicatrizes de garimpo em território venezuelano. No país vizinho, nesta zona, também se observou a construção de uma nova pista de pouso de quase 500 m, que era inexistente até março de 2023“, cita o documento.

No relatório, a Associação Hutukara Yanomami denuncia também a intensificação no trânsito de garimpeiros nas regiões do Rio Couto de Magalhães, Rio Mucajaí e Uraricoera devido ao “afrouxamento” das operações no segundo semestre, que inclui a “morosidade do Estado” para reativar e equipar as bases de proteção.

No Rio Uraricoera, o terceiro mais devastado pelo garimpo em 2023, houve a reativação de duas pistas de pouso desativadas no primeiro semestre de 2023, a Mucuim e Espadinha. As organizações apontam uma média diária de três aeronaves na pista Mucuim, por volta das 6 horas da manhã, com objetivo de se esquivar de eventuais fiscalizações.

“A barreira improvisada na altura da região do Palimiu também não tem sido eficaz para controlar o acesso de invasores ao território. De acordo com as lideranças locais, diariamente, antes de amanhecer (entre 4h30min e 6h00min) a comunidade é acordada pelo barulho dos motores de alta potência transitando pelo rio, furando o “bloqueio”. O que demonstra que o bloqueio não possui equipes sentinelas em caráter permanente, e a equipe instalada no local não tem realizado abordagens de maneira compulsória“, explicita o documento.

A Hutukara também aponta no relatório a redução de 70% do efetivo do Exército Brasileiro na base de proteção  da Funai: “Observou-se que, além do efetivo do Exército Brasileiro que contava com aproximadamente 15 pessoas – efetivo reduzido em pelo menos 70% (tendo em vista que este bloqueio já contou com pelo menos 50 militares), ocupavam a base da Funai no local: 04 agentes da Força Nacional de Segurança, com a prerrogativa de fazer a segurança das equipes de saúde; 02 agentes da Polícia Federal, atuando como polícia judiciária no encaminhamento de pessoas detidas pela fiscalização; 04 servidores da Funai, tratando-se de dois agentes e dois cozinheiros/serventes; e nenhum servidor do Ibama“.

Medo entre as famílias Yanomami

Os depoimentos na nota técnica relatam o sentimento de “medo e terror permanente entre as famílias“. A Associação Yanomami, presidida por Davi Kopenawa, detalha a aflição de um morador da comunidade Palimiú, local frequentemente atacado por garimpeiros.

“Meus filhos estão com medo. Eles atrapalham nosso sono, tenho medo de que eles venham atirar na gente, por isso eu não durmo direito. Nós vivemos bem na beira do rio, por isso quando eles passam eu fico com muito medo. Quero poder dormir com silêncio. Aqui no “centro” eles também não dormem bem. Vocês viram? Hoje passaram cinco barcos de manhã. Nós queremos que vocês tragam o silêncio de volta pra nossa floresta“, desabafou.

Garimpo ilegal desestabiliza serviços de saúde

A crise humanitária e de saúde no maior território indígena do país, com quase 10 milhões de hectares, foi decretada em 20 de janeiro de 2023 pelo governo federal para combater a desnutrição, malária e avanço do garimpo na região. À época  o local já era ocupado por cerca de 20 mil garimpeiros. A mineração ilegal na Terra Yanomami é apontada ainda como principal causa de doenças e mortes entre indígenas.

A persistência dos núcleos de exploração do garimpo no território Yanomami é apontada no relatório como principal impedimento para a retomada as ações de promoção e prevenção em saúde nas comunidades mais vulneráveis. Devido ao clima de insegurança e conflito nas zonas de mineração ilegal, os profissionais de saúde acaba evitando realizar visitas em muitas aldeias, oq ue implica na realização de ações fundamentais de atenção básica, como vacinação, busca ativa de malária e pré-natal.

A falta de cuidados de atenção básica também é apontada como um dos fatores relacionados a baixa resistência imunológica da população Yanomami. Dados divulgados pelo Ministério da Saúde, apontam que em 2023, ao menos 308 indígenas da etnia morreram em decorrência de doenças tratáveis. Uma queda tímida de apenas 10%, se comparado aos 343 óbitos registrados em 2022.

Entre as mortes registradas entre janeiro e novembro do ano passado, 175 são de crianças entre zero e nove anos. 104 são de bebês com menos de um ano. A maioria dos óbitos foram causados por doenças respiratórias como a gripe e pneumonia, doenças infecciosas e parasitárias, endócrinas, nutricionais e metabólicas. Além das causas externas de morbidade e mortalidade.

“Obviamente, a manutenção de um alto número de mortes (308 até novembro de 2023), não se explica apenas por esta razão, houve também importantes falhas na execução das ações de saúde, como o baixo investimento nas infraestruturas de saúde no território, o déficit de recursos humanos, e equívocos de planejamento, mas os efeitos deletérios do garimpo não podem ser subestimados. A falta de estruturação na Saúde Yanomami, com efeito, abre brechas para a utilização do próprio sistema como violador de direitos humanos“, ressalta o documento assinado pelas associações Yanomami.

Dados coletados entre janeiro e novembro do ano passado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (D-SEI-Y) mostram o salto gigantesco de 3.303 para 20.524 casos de síndromes gripais entre a população originária. Já as notificações de síndrome respiratória aguda grave subiram de 2.478, em 2022, para 5.598 em 2023.

Malária

A malária entre os Yanomami também apresentou um aumento significativo de 84,2%. Foram 25.204 casos registrados no ano passado, enquanto em 2022 foram 15.561, correspondente a 77%. Atualmente, o território Yanomami tem a presença de 31.007 indígenas, distribuídos em 376 comunidades. Ao todo, 60,7% dos indígenas têm abaixo de 20 anos.

A ampliação da cobertura vacinal em crianças menores de 1 ano, e de 1 a 4 anos, a disponibilização de concentradores de oxigênio e nebulizadores nas Unidades Básicas de Saúde Indígena (UBSIs), a disponibilização de kits de higiene para os pacientes e o reforço da Vigilância Nutricional para reduzir a mortalidade infantil são algumas das soluções apresentadas pelas associações Yanomami ao governo federal para o  enfrentamento da emergência sanitária entre os Yanomami.

Ações permanentes

No dia 10 de janeiro, o presidente da Urihi Associação Yanomami, Junior Hekurari, esteve na região de Auaris, na Terra Yanomami com a comitiva do governo federal composta pelas ministras Sonia Guajajara, dos Povos Indígenas, Marina Silva, do Meio Ambiente e Mudança do Clima, o ministro Silvio Almeida dos Direitos Humanos, a presidente da Fundação dos Povos Indígenas, Joenia Wapichana e secretário de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, o Weibe Tapeba.

A comitiva veio de Brasília para anunciar a permanência das medidas de proteção das comunidades Yanomami e dar o pontapé inicial para a criação da Casa de Governo, que coordenará, a partir de Boa Vista, as políticas públicas voltadas para população da etnia.

Na oportunidade, também foi anunciado pelos ministros o investimento de R$ 1,2 bilhão em 2024 para ações de saúde e assistência social, entre outras, direcionadas aos indígenas Yanomami. Hekurari espera que “as ações que foram colocadas em papéis, sejam de fato postas em prática”.

“Que mais postos de saúde sejam construídos, e que seja reavaliado como serão realizadas as ações de saúde nos pontos mais cruciais. Quanto ao garimpo, que as bases sejam erguidas, e o monitoramento seja contínuo, principalmente nos locais que são pontos de entrada para os invasores. Temos esperança, e continuaremos lutando pela proteção da nossa floresta”, completou o presidente.

Estado Brasileiro violou direitos humanos

No balanço divulgado, as organizações afirmam que o Brasil violou os direitos humanos dos povos indígenas Yanomami ao descumprir as ordens determinadas pela justiça. Em 2017, uma ação civil pública (1000551-12-2017.4.01.4200) determinou que o Estado Brasileiro implementasse Bases de Proteção Etnoambiental da Funai em Mucajaí, médio Uraricoera e Serra da Estrutura. Já outra ação de 2020, (1001973-17.2020.4.01.4200) determinou a extrusão dos garimpeiros ilegais.

Já em julho de 2022, a Corte Interamericana de Direitos Humanos também determinou que o Brasil adotasse a medidas para proteção da vida dos Yanomami e Ye’kwana “em face de extrema gravidade e urgência, além de perigo de dano irreparável“. Novamente em dezembro de 2023, a corte internacional exigiu, após uma visita no Território Yanomami, a continuidade das medidas provisórias em face da violação contínua e ainda existente.

Nas considerações finais, a nota técnica apresenta quais medidas devem ser tomadas para as próximas etapas de enfrentamento da crise humanitária dos Yanomami. Entre elas, a retomada urgente de operações de desintrusão de garimpeiros no Território; o fortalecimento e a articulação entre as ações setoriais e planejar o desenvolvimento das ações de maneira integrada, através de uma coordenação operacional e intersetorial da emergência Yanomami e a criação de uma força tarefa para o controle da malária na TIY.

Os Yanomami também pedem que o governo brasileiro elabore um Plano de Proteção Territorial, que considere soluções para reduzir a vulnerabilidade das calhas de rio que dão acesso à TIY; promova o bloqueio fluvial e controle do espaço aéreo da TIY. Além de ampliar a rotina de patrulhamento nos rios em caráter no mínimo mensal e capacitar indígenas para o envolvimento nas ações de vigilância.

A criação de uma força tarefa para o controle da malária, o estímulo ao desarmamento voluntário nas regiões vulneráveis e o monitoramento remoto contínuo da Terra Yanomami são outras recomendações contidas na nota técnica, junto a construção de um cronograma ações de neutralização do garimpo, apoio emergencial, promoção à saúde, reocupação das UBSIs com apoio de forças de segurança, e desenvolvimento de atividades de recuperação socioeconômica das comunidades.

Veja o relato de um morador da Comunidade Yanomami Korekorema

Perto da minha comunidade (Korekorema) tem quatro acampamentos dos garimpeiros, eles são muitos, trabalhando com muitas máquinas, já fizeram um buraco muito grande perto da nossa casa. Eles são muitos. O buraco que eles fizeram já está muito fundo. O garimpo é como leishmaniose, se você tira tudo volta a curar, mas se você não usar remédio a doença só aumenta, é assim. Eles se espalham.

Como é que nós vamos viver? Acho que todos nós vamos morrer. Não tem nenhuma segurança na nossa comunidade. Estamos sozinhos, vivemos pensando que os garimpeiros vão vir nos atacar. Temos muito medo. Isso não é certo. Eles estão muito perto da nossa casa. Nós não temos como correr para fugir, não temos nosso motor, se eles vierem nos atacar vamos todos morrer. Nós estamos sem comunicação lá, se acontecer alguma coisa como vamos pedir ajuda?

Eles já estão acabando com nossa água. Não tem mais peixes. Nós procuramos comida, mas não achamos! Os garimpeiros nos expulsam da nossa própria terra. Eles pensam que nós vamos levar a polícia para lá então eles nos ameaçam. Por isso nós fugimos, nós temos medo. Todas as minhas crianças estão doentes, tem mais de 15 crianças com malária na minha casa.

A saúde não faz missão lá, tem mais de um mês que ninguém vai lá fazer atendimento. Queremos que a equipe de saúde fique lá. Nós queremos o exército e a saúde. Se tiver segurança para a saúde eles podem nos curar, mas eles têm medo de ir até lá. Já que não tem polícia os garimpeiros aumentam, nós queremos mostrar onde estão os garimpeiros.

Mas a polícia não vai na nossa casa. Como vamos fazer? Estamos sofrendo muito lá. Sem ajuda dos napë. Eles querem nos matar mas a gente ainda está firme, não queremos fugir. Talvez eles vão nos atacar, por isso meus jovens vivem com suas flechas na mão, eles têm medo. Isso tudo é verdade, você tem que levar essas minhas palavras porque são verdade.

Nós queremos poder viver tranquilamente, estamos ainda esperando por isso. Será que eles vão nos responder? Vão ouvir nossas palavras? Nós queremos nossa terra livre de garimpeiros. Eu tenho muitos filhos, muitas crianças, por causa delas eu vivo preocupado, por isso eu vim entregar minhas palavras para vocês. Eu vivo ensinando meus filhos a fugirem e se esconderem.

Nós não dormimos em paz. Vocês têm que entregar minhas palavras para as autoridades. Tem que mostrar para eles a situação do Korekorema. Nós ouvimos o barulho das máquinas. Eu não aguento mais isso. Se minhas crianças morrerem doentes nós pensamos que vamos ter que brigar com os garimpeiros. Para vingar nossas crianças. É isso que eu vim dizer.

Adrião Galvão – Da Agência Cenarium – 27 de janeiro de 2024 – 17:01
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