BOA VISTA (RR) – A crise humanitária e de saúde na Terra Indígena Yanomami, que abrange os Estados do Amazonas e Roraima, voltou a pressionar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mais especificamente o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), após dados apontarem que ao menos 308 indígenas do território morreram, em 2023, em decorrência de doenças tratáveis, assim como ocorreu o aumento de malária, gripe e avanço do garimpo.
A desassistência no maior território indígena do País, com quase 10 milhões de hectares, já vinha em uma escalada desde o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). Quando assumiu a presidência, Lula decretou emergência de saúde pública na região para enfrentá-la. Mas, um ano após o anúncio do decreto e da criação do Comitê de Coordenação Nacional para discutir e adotar medidas de atendimento a essa população, o que se vê é a dificuldade de se reverter o cenário.
Diante do panorama, as críticas ao governo se intensificaram. Na semana passada, o escritor e ativista Daniel Munduruku criticou a atuação Ministério dos Povos Indígenas na crise na saúde Yanomami, e se referiu à pasta com “ministério cirandeiro”, sem citar diretamente a ministra dos Povos Originários, Sonia Guajajara.
“Os dados sobre a saúde dos Yanomami não deixam dúvidas: criar um ministério cirandeiro apenas para apagar incêndio é replicar a velha política do pão e circo. Muita festa, muita viagem internacional, muito discurso, muito do mesmo e nada do necessário. Uma lástima!“, publicou na rede social X, antigo Twitter.
Sob pressão, uma comitiva do governo federal, com Guajajara, a ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva, e o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida, se deslocou à Terra Yanomami para avaliar a situação um ano após o decreto de emergência sanitária. Nessa terça-feira, 16, Sonia Guajajara admitiu que a crise humanitária que não será resolvida tão cedo, apesar dos esforços do governo federal.
“Assim como foram décadas de invasão para chegar a este ponto, pode levar décadas para restabelecer tudo”, declarou a ministra durante transmissão ao vivo, no Instagram, junto com o secretário nacional de Saúde Indígena do Ministério da Saúde, Weibe Tapeba.
“Para quem não conhece o território, é importante entender a complexidade [da situação]. E não só pensar: ‘ah! Passado um ano, não se deu conta’. Ou: ‘Ah!, Em um ano vai resolver [os problemas]’. Não resolvemos e, possivelmente, não se resolverá em toda a sua dimensão em 2024”, acrescentou a ministra, que ressaltou que pode levar anos para que o território se regenere da destruição causada pelo garimpo ilegal.
“Para os yanomami terem seu modo de vida de volta é preciso retirar os invasores [da área]. É preciso que [os indígenas] tenham como plantar; que os rios sejam despoluídos para que [as comunidades] tenham água para beber […] Ou seja, para sarar as pessoas, é preciso primeiro sarar a terra. Para isso, é preciso desocupar o território”, argumentou.
Mortes evitáveis
A mineração ilegal na Terra Yanomami, ocupado anteriormente por cerca de 20 mil garimpeiros, é apontada ainda como principal causa de doenças e mortes entre indígenas. As 308 mortes de indígenas do território, no ano passado, representou uma queda de apenas 10%, se comparado aos 343 óbitos registrados em 2022.
Entre as mortes registradas entre janeiro e novembro do ano passado, 175 são de crianças entre zero e nove anos. 104 são de bebês com menos de um ano. A maioria dos óbitos foram causados por doenças respiratórias como a gripe e pneumonia, doenças infecciosas e parasitárias, endócrinas, nutricionais e metabólicas. Além das causas externas de morbidade e mortalidade.
Dados coletados entre janeiro e novembro do ano passado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (D-SEI-Y) mostram o salto gigantesco de 3.303 para 20.524 casos de síndromes gripais entre a população originária. Já as notificações de síndrome respiratória aguda grave subiram de 2.478, em 2022, para 5.598 em 2023.
A malária entre os Yanomami também apresentou um aumento significativo de 84,2%. Foram 25.204 casos registrados no ano passado, enquanto em 2022 foram 15.561, correspondente a 77%. Atualmente, o território Yanomami tem a presença de 31.007 indígenas, distribuídos em 376 comunidades. Ao todo, 60,7% dos indígenas têm abaixo de 20 anos.
Governo falhou
Além das mortes e doenças, o garimpo também causa danos ambientais, como a degradação das florestas e o maior contato com vetores de doenças estocados na selva, que propiciam o aumento de endemias, como a malária, e surtos de doenças provenientes de animais.
Em entrevista à REVISTA CENARIUM, o presidente da Urihi Associação Yanomami, Júnior Hekurari, avaliou como “morosa” e “falha” a retirada de garimpeiros ilegais do território pelo governo federal. Para a liderança Yanomami, a população ainda sofre os resquícios da desassistência deixada pelo Governo Bolsonaro, mas “isso não reduz o fato de que o governo falhou no ano de 2023 em buscar maneiras de manter a população protegida”.
“No decorrer do ano, houve a aceleração na retirada dos invasores da Terra Indígena Yanomami, mas depois o ritmo foi diminuindo. A morosidade da extrusão de garimpeiros nas regiões mais isoladas do território, tem sujeitado suas comunidades à violência de criminosos”, destacou Hekurari.
Na oportunidade, também foi anunciado pelos ministros o investimento de R$ 1,2 bilhão em 2024 para ações de saúde e assistência social, entre outras, direcionadas aos indígenas Yanomami. Hekurari espera que “as ações que foram colocadas em papéis, sejam de fato postas em prática”.
“Que mais postos de saúde sejam construídos, e que seja reavaliado como serão realizadas as ações de saúde nos pontos mais cruciais. Quanto ao garimpo, que as bases sejam erguidas, e o monitoramento seja contínuo, principalmente nos locais que são pontos de entrada para os invasores. Temos esperança, e continuaremos lutando pela proteção da nossa floresta”, completou.
Alerta de pandemia
O biólogo e pesquisador Lucas Ferrante aponta que o aumento de casos de malária, gripe e outras epidemias na Terra Indígena Yanomami tem ligação com a presença de mais profissionais de saúde para realização dos diagnósticos na região e com as mudanças climáticas causadas pelo desmatamento.
“Nós precisamos lembrar que a Amazônia é o maior reservatório zoonótico do mundo, ou seja, tem forte presença de animais silvestres que podem transmitir bactérias, vírus e parasitas para humanos. Ao desproteger essas áreas com alta biodiversidade e os recursos naturais, ocorrem as endemias e epidemias, como é o caso da malária”, destacou.
Durante a pandemia da Covid-19, o ecólogo também realizou um monitoramento epidemiológico das variantes da SARS-CoV-2 na Amazônia. O pesquisador colheu amostragens que apontam o potencial da região para gerar uma pandemia global, devido aos saltos zoonóticos causados por atividades exploratórias como o garimpo, desmatamento e grandes empreendimentos. Os primeiros atingidos serão os povos indígenas e comunidades tradicionais da Amazônia.
Mercúrio mata
Lucas Ferrante destaca ainda que a contaminação da água pelo mercúrio usado no garimpo ilegal, impacta diretamente os Yanomami, que tem sua subsistência baseada no plantio e pesca.
“O mercúrio utilizado no refinamento do ouro é despejado diretamente nos rios, e por ser um metal bioacumulador, contamina a água e os peixes. Os Yanomami tomam a água, comem os peixes do rio e assim, desenvolvem uma série de problemas, inclusive no sistema nervoso central, como a Minamata”.
A doença neurológica é causada pela intoxicação severa por mercúrio. De uma forma congênita, afeta fetos no útero, gerando microcefalia, dano cerebral extensivo e sintomas similares à paralisia cerebral. O que explica a alta mortalidade de crianças e bebês Yanomami.
O biólogo ainda lembra a insegurança que permeia o território devido a forte presença do crime organizado que financia o garimpo na região, o tráfico de drogas e a cooptação de indígenas para a mineração ilegal. Além da chegada de drogas nocivas aos indígenas, alcoolismo nas comunidades, aumento da violência contra mulheres indígenas e assassinatos por conflitos.
“Nós vimos ações intensivas no início do governo [Lula] para a retirada desses invasores da Terra Indígena Yanomami entretanto a falta de permanência na fiscalização em coibir esses garimpeiros na região permitiu um novo retorno dos invasores. É fundamental que o governo mantenha bases permanentes para salvaguardar a vida dessa etnia”, completou Lucas Ferrante.
Em, 2022, uma pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Evandro Chagas e a Universidade Federal de Roraima (UFRR) mostrou que a concentração de mercúrio nos peixes dos rios de Roraima está acima do limite estabelecido pela Organização das Nações Unidas para consumo humano.
Segundo o estudo, a cada 10 peixes coletados no rio Uraricoera, o mais próximo à Terra Indígena Yanomami, seis apresentaram altos níveis de mercúrio. No Rio Branco, às margens da capital de Roraima, Boa Vista, a cada 10 peixes coletados, dois não eram seguros para consumo. O que revela o longo alcance do mercúrio usado pelo garimpo na Terra Yanomami.
A análise revelou que no peixe filhote, um dos mais consumidos no norte, a contaminação é tão alta que já não existe mais nível seguro para o consumo, independente da quantidade ingerida. Os maiores índices de contaminação estão em trechos do Rio Uraricoera (57%), Rio Mucajaí (53%), Baixo Rio Branco (45%) e Rio Branco, na cidade de Boa Vista (25,5%).
Já um laudo da Polícia Federal divulgado em fevereiro de 2023 também mostrou a presença elevada de mercúrio em indígenas da Casa de Saúde Indígena (Casai) Yanomami, na zona rural de Boa Vista, capital de Roraima. Dos fios de cabelo coletados de 43 indígenas, 76,7% apresentaram alta exposição ao metal. O estudo apontou ainda que todos os examinados viviam próximos a garimpos ilegais na Terra Indígena Yanomami.
Saúde e infraestrutura
O balanço do Ministério da Saúde sobre a crise humanitária e sanitária Yanomami publicado em dezembro de 2023 nos encaminha para a preocupação dos indígenas presentes na capital de Roraima, Boa Vista. Na Casai Yanomami, os principais são casos de pneumonia (42), malária (34), desnutrição (29).
Em Boa Vista, os atendimentos à saúde dos Yanomami registraram alta. Só em 2023, foram 10.561 indígenas atendidos no Hospital da Criança. Na Casai Yanomami, as ocorrências chegaram a 5.177, de janeiro a novembro. O relatório também aponta quase duas mil evacuações aeromédicas pelo Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y) e 204 pelo Ministério da Defesa.
Segundo o informe mensal, atualmente, 53 crianças menores de 5 anos com desnutrição grave e moderada estão em tratamento nutricional. Já a cobertura vacinal entre os Yanomami está em 56,4%, o que equivale a 60.045 indígenas vacinados. Os principais imunizantes aplicados foram influenza (23.172), Covid-19 (14.241) e pneumonia (5.944).
O Ministério da Saúde também apontou no relatório as ações de infraestrutura mais expressivas para proteção dos Yanomami, entre elas ações em campo voltadas ao monitoramento da qualidade da água (281), monitoramento ambiental (132), melhorias em instalações elétricas (60) e ações voltadas a melhorias no tratamento de esgoto (49).
Acesse o relatório completo em: Revista Cenarium
(Ver galeria de fotos, mapas e gráficos em: Revista Cenarium)
Adriã Galvão e Marcela Leiros – Da Revista Cenarium – Editado por Jefferson Ramos – Mortes dos Yanomami forçam Governo Lula a reagir ao garimpo (revistacenarium.com.br)
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