Circunavegação da Lagoa Mirim – Parte VI 

– Ponta Santiago – Taim

Taim ‒ Ilha Grande (09.01.2015)

Partimos com a firme determinação de pernoitar no Canal de São Gonçalo. Fiz uma parada intermediária, depois de remar 7 km, na praia da Vila do Taim, popularmente conhecida como Capilha, próxima à Estação Ecológica do Taim e que pode ser acessada por terra pela BR-471, onde visitei a Igreja Nossa Senhora da Conceição (32°30’20,8” S / 52°35’04,1” O) e uma bucólica praça. No entorno da Vila encontra-se a única linha de falésia viva da lagoa Mirim e onde, nas últimas décadas, a erosão provocou uma importante regressão até os limites da igreja.

Enquanto alguns autores defendem que o termo Taim tem sua origem na expressão indígena “tai moing” ‒ “cousa pequena em que penso”, outros, porém, asseguram que ela advém do grito emitido pelo Tarrã (Chauna torquata).

Remei até a Ponta do Salso, onde aportei seguido pelo Hélio, depois de remar 25 km sem parar, desde a Vila do Taim. Avistamos três filhotes de lebre que brincavam sob uns salsos. Continuamos nossa jornada aproando para o Arroio Gamela (32°15’09,1” S / 52°40’25,9” O), 7 km adiante, onde tínhamos combi­nado, com os velejadores, de ancorar para o almoço. Como a Foz estava totalmente bloqueada por salsos, contatei os velejadores que seguiram diretamente para o Canal São Gonçalo.

Dirigimo-nos, então, para o Canal de Irrigação da Granja Quatro Irmãos (32°14’26,4” S / 52°40’05,7” O) que ficava a pouco mais de um quilômetro avante, onde paramos para nos hidratar e consumir algumas barras de cereais. Descansados, aproamos diretamente para a boca de montante do Canal de São Gonçalo que ficava a uns 12 km à nossa frente.

Desde a Ponta do Salso, uma tétrica paisagem assombrava-nos: a primeira fileira de salsos de toda margem tinha sido tombada pelo ciclone da noite de 31.12.2014. As folhas dos chorões conservavam ainda um intenso verdor, testemunhas vivas do recente cataclismo que assolara a região.

Ode aos Excelsos Salsos Tombados

Molduras e Visões
(João Rodrigues Barbosa Neto)

E esses salsos chorões à beira das barrancas,
Que a rajada impiedosa alucina e emaranha!
E esse perfil de dor das tristes garças brancas,
Silenciosas ouvindo essa angústia tamanha!

Ali, uma árvore nua ergue convulsos braços
E parece o fantasma esguio da paisagem
Pedindo à alma contrita e triste dos espaços
O manto que perdeu com a morte da folhagem! […]

O Comandante Emygdio reporta-nos este trecho da poesia de Barbosa Neto, ilustre poeta parnasiano nascido, em 1884, na cidade de Jaguarão, RS, que faço questão de reproduzir em homenagem a meu querido pai, Cassiano Reis e Silva. Meu saudoso pai sempre sonhou em ter no terreno de sua casa um salso-chorão, também conhecido como salgueiro-chorão (Salix babylonica), debruçado sobre um pequeno lago.

O chorão foi trazido, desde o Leste asiático, pela Rota da Seda, para a região da Babilônia, tornando-se abundante às margens do Eufrates, de onde se disseminou pelo mundo afora. É considerado, por alguns, uma árvore lendária para o cristianismo, pois, segundo eles, teria escondido sob seus ramos a família sagrada, durante sua fuga para o Egito, dos soldados de Herodes.

Outra versão, que nos parece mais plausível, tem sua origem no século VIII, na Germânia, com o monge beneditino São Bonifácio, conhecido hoje como “Apóstolo dos Germanos” e que foi eleito Bispo, em 30.11.722, dos territórios Germânicos em reconhecimento ao seu trabalho de catequese na região.

Retornando à região depois de uma longa viagem que fizera a Roma, surpreendeu alguns populares, preparando-se para realizar sacrifícios humanos conforme determinava sua primitiva religião. Bonifácio libertou os nove meninos que seriam mortos e mandou derrubar o enorme carvalho de Geismar, dedicado a Thor, onde se realizaria o sangrento holocausto. Embora os sacerdotes pagãos tenham-no ameaçado com a ira do “poderoso” deus do trovão que o fulminaria com seus raios, nada aconteceu, para humilhação dos mesmos. A queda da árvore de Thor marcou definitivamente a queda do paganismo naquelas plagas, e os germanos convertidos adotaram o carvalho como um símbolo cristão.

Independentemente da versão, a tradição da árvore símbolo ultrapassou as fronteiras e a humanidade cristã acabou adotando uma espécie que já fora usada como um símbolo sagrado ancestral e cultuado por diversas religiões pagãs de outrora – o pinheiro.

O pinheiro é uma árvore cujo “pináculo” aponta para o céu e cuja perenidade dos ramos nos remete à vida eterna; suas raízes encravadas solidamente na terra testemunham a aliança entre as entidades celestiais e os seres terrestres e, finalmente, seu formato triangular lembra a Santíssima Trindade.

Continuando a Jornada

O Sol inclemente castigava nossos corpos exaustos e, ao Chegar à Foz do São Gonçalo, aportamos na mesma praia, depois de remar 53 km, onde acampáramos no dia 27.12.2014. Depois de um revigorante banho, subimos a bordo para o almoço e, logo depois, aproamos para a Vila de Santa Isabel.

Na Vila, enquanto o Hélio foi ao mercado, eu fiquei tomando conta dos caiaques, pois alguns canoístas já tiveram aqui suas cargas surrupiadas. Logo depois de levarmos as compras até o veleiro, caiu uma chuva refrescante que, aliada à correnteza do Canal, nos estimulou a picar a voga.

Chegamos a atingir os 13 km/h até a Ilha Grande, onde acampamos nas proximidades de uma cara e frondosa figueira (32°04’19,6” S / 52°30’34,7” O) à margem direita. Tínhamos remado 70 km neste dia, e 539 km somente na Lagoa Mirim.

Ilha Grande ‒ Pelotas (10.01.2015)

Tínhamos concluído com sucesso a navegação da Lagoa Mirim e hoje teríamos de percorrer apenas 50 km até o Veleiros Saldanha da Gama. Partimos junto com o Zilda III, às 07h30, e logo em seguida o veleiro sumiu de nossas vistas.

Os únicos fatos notáveis, além de não realizarmos nenhuma parada, foram a transposição por uma das comportas da barragem, enquanto o veleiro aguardava a hora de abertura da eclusa para continuar a viagem, e a passagem de quatro belos cisnes-de-pescoço-preto (Cygnus melanocoryphus).

Cantiga da Esperança
(Adair de Freitas)

Vamos devagar e sempre
Que a jornada é longa e o tempo não cansa
Vamos cantando na estrada
Que o cantar alegra e traz esperança. […]

Eu te convido, gaúcho,
Tu que anda triste pela estrada afora
Chega pra cantar comigo
Que a saudade, amigo, já se vai embora.

Não adianta ser tristonho
Pois a vida é um sonho que a gente desfaz
Só a tal fatalidade
E a dor da saudade é que nos roubam a paz […]

Eu sou um gaúcho de fato
Sou índio gaudério do sul do país
Tenho orgulho em ser gaúcho
Sou pobre e sem luxo, mas sou bem feliz. […]

Eu não ando me queixando
Vivo trabalhando e a honra, conservo
E há gente que até me apedreja
Porque sente inveja da vida que eu levo. […]

Nunca te queixe da vida
Levanta a cabeça e caminha com fé
Pois a gente só é gente
Sendo simplesmente o que a gente é

Não chores assim, baixinho
Se tens que chorar, levanta a tua voz
E olha pra trás de repente
Verás que tem gente mais triste que nós. […]

Ingratos
(D. Pedro II)

Não maldigo o rigor da iníqua ([1]) sorte,
Por mais atroz que fosse e sem piedade,
Arrancandome o trono e a majestade,
Quando a dois passos só estou da morte.

Do jogo das paixões minha alma forte
Conhece bem a estulta ([2]) variedade,
Que hoje nos dá contínua felicidade
E amanhã nem – um bem que nos conforte.

Mas a dor que excrucia ([3]) e que maltrata,
A dor cruel que o ânimo deplora,
Que fere o coração e pronto mata,

É ver na mão cuspir a extrema hora
A mesma boca aduladora e ingrata,
Que tantos beijos nela pôs – outrora.

(VER REPERTÓRIO FOTOGRÁFICO A SEGUIR)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 31.01.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Circum-navegação da Lagoa Mirim
(27.12.2014 a 10.01.2015)

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Ex-Vice-Presidente da Federação de Canoagem de Mato Grosso do Sul;
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)E-mail:
  • [email protected].

 [1]   Iníqua: injusta. (Hiram Reis)

[2]   Estulta: estúpida. (Hiram Reis)

[3]   Excrucia: atormenta. (Hiram Reis)

GALERIA DE FOTOS: HIRAM REIS E SILVA

– Ponta Santiago – Taim

Taim – Pelotas

– Ponta Latinos

– Baía Latinos

– Ponta Latinos

– Baía Latinos

– Baía Latinos

– Canal de Irrigação

– Zilda III

– Jumentos

– Figueira

– São Bonifácio e o Carvalho de Thor

– Taim

– Taim

– Graça Real

– Igreja – Vila do Taim

– Igreja – Vila do Taim

– Ponta do Salso

– Pelotas

– Pelotas

– Pelotas

– Pelotas

Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias