Circunavegação da Lagoa Mirim – Parte IV

Jaguarão – Ilha Grande do Taquari

Na 130ª Sessão da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, de 04.11.1949, o Deputado Estadual Fernando Ferrari fez o seguinte pronunciamento:

Seguem-se depois, Sr. Presidente, informações relativas ao melhoramento no Rio Jaguarão. E aqui, Sr. Presidente, estou verificando que quase todas as obras ali realizadas e hoje continuadas devemo-las ao Governo do Sr. Getúlio Vargas, porque nessa época foi organizada a pedreira donde foram extraídos 10.959.700 m3 de pedra e 4.279.700 m3 de cascalho.

Foram britados 2.937 m3 de pedra. Executada a derrocagem da faixa do cais antigo e construído o novo trecho de cais para águas altas; construídos os espigões de n° 1 a 8 com emprego de 4.037 m3 de pedra. Na dragagem prévia de acesso ao porto foi extraído um total de 45.000 m3 e em dragagens auxiliares às obras – 9.283 m3.

Somando tudo isso, Sr. Presidente, dá um volume total entre a dragagem e o volume de pedra ali aplicada de 15.301.197 metros cúbicos, e em igual época do Governo do Gen. Dutra, que continua a obra de Getúlio Vargas, foram empregados 11.255.272 metros cúbicos, entre dragagem e pedra para as aterragens competentes. (BRANDALISE & BOMBARDELLI)

Pelas 08h00, a névoa dissolveu-se e pudemos então nos encantar com as belas paisagens do Jaguarão e de sua fauna. Encontramos o Fábio Couto, filho do Comodoro Couto, à bordo do veleiro “Macanudo” na altura da Ilha do Bráulio, que ali pernoitara aguardando bons ventos para voltar à Jaguarão.

Ilha Grande do Taquari – Foz do Cebollati

O Fábio Couto repassou ao Coronel Pastl as coordenadas de um ponto de passagem ideal para contornar o Banco do Muniz, entre a Ponta do Muniz e a Ponta Santiago. Coincidência ou não, estávamos exata­mente no ponto onde, ontem, o Comodoro Couto nos orientara a respeito da rota a ser seguida.

Rio Jaguarão

Continuamos nossa viagem admirando a luxu­riante vegetação aquática e a flora que a cheia tentava submergir. A planura inundada se estendia ao longo das margens e em alguns lugares as ilhas tinham sido total­mente tomadas pelas águas. Empoleirados nas árvores avistamos carcarás (Caracara plancus), carãos (Aramus guarauna), tarrãs (Chauna torquata), biguás (Phala­crocorax brasilianus), bandos enormes de maçaricos (Phimosus infuscatus) voando na sua formação em “V” característica e uma curiosa garça moura (Ardea cocoi) empoleirada num marco fronteiriço. Lê-se, na placa de bronze do marco fronteiriço e guardada por esta bizarra sentinela da fronteira cuja nacionalidade desconhece­mos:

O Tratado de Fronteiras da Lagoa Mirim, assinado em 1909, reviu e modificou as cláusulas relativas às linhas de fronteira na Lagoa Mirim e no Rio Jaguarão.

Chegamos à Foz do Jaguarão, por volta das 10h30, embarcamos em nossos caiaques e aproamos rumo à Ilha Grande do Taquari, onde pernoitaríamos. Ao partimos da Foz do Jaguarão, adentramos em território uruguaio, ultrapassando a Ponta Muniz (32°42’57,0” S / 53°11’14,0” O), o balneário Lago Meirim (Ponta Cacim­bas ‒ 32°44’51,1” S / 53°15’36,6” O) onde fizemos uma breve parada, depois de percorrer 16 km, e, logo em seguida, na Foz do Rio Tacuari (32°46’17,0” S / 53°18’36,4” O), 5 km adiante.

Rio Jaguarão

Mais uma vez, a visão de uma plantação de pinus, desta feita em território uruguaio, trouxe-me à lembran­ça a funesta paisagem do Saco de Tapes.

Dez quilômetros adiante, fizemos uma última parada na Ponta Parobé e aproamos para a Ilha Grande do Taquari, a única ilha brasileira imersa em um arqui­pélago uruguaio. Contornamos a Ilha pelo lado Seten­trional rumo ao Zilda III, cujo mastro vimos de longe.

Rio Jaguarão

O canoísta Antônio Buzzo, que havíamos encon­trado no Rio Jaguarão, estava a bordo e orientava nossa abordagem. Remáramos apenas 37 km desde a Boca do Jaguarão. Cumprimentamos os companheiros e fomos montar acampamento em uma praia próxima.

Voltamos ao veleiro para o jantar e, por volta das 19h30, observamos alguns sinais muito conhecidos da formação de um ciclone extratropical que aparente­mente deveria passar ao Sul da Ilha. Não titubeei e pulei para meu caiaque e remei rapidamente para o acam­pamento seguido de perto pelo Antônio Buzzo. Eu já enfrentara ciclones no Rio Guaíba (Ponta da Figueira), e na Laguna dos Patos (Porto do Barquinho), e sabia que o tempo mudava muito repentinamente.

Mal tínhamos colocado os caiaques junto às barracas, recolhido o material para o interior delas, e verificado as amarrações quando, de repente, o vento girou de Este para Sul canalizando a força do ciclone diretamente sobre o acampamento. O suplício deve ter durado uns 15 minutos que nos pareceram horas. Segurávamos com força os estais das barracas por dentro, a água jorrava para dentro das barracas como se estivéssemos ao relento, a lona “impermeável” desprendeu-se e era lançada para todos os lados.

Veleiro Macanudo

Assim como começara, a borrasca se foi; está­vamos aflitos com o que poderia ter ocorrido com o veleiro e tranquilizamo-nos quando vimos que a luz do mastro estava no mesmo lugar e altura e nos concen­tramos em remontar as barracas e secá-las bem como nossos colchões de ar. Felizmente a temperatura amena permitiu que descansássemos sem maiores atropelos nessa conturbada passagem de ano.

Carcará

Ilha Grande ‒ Foz do Rio Cebollati (01.01.2015)

Da Foz do Arroio S. Miguel, onde se acha o Quarto Marco Grande, aí colocado pela Comissão Mista Demarcadora de 1853, atravessa longitudinalmente a Lagoa Mirim até à altura da Ponta Rabotieso, na margem uruguaia […] (AFFONSECA)

Saímos tarde, por volta das 07h30, contornamos, pelo lado Meridional, as Ilhas Sanjón, Sepultura e Confraternidad, aportamos na Ponta Rabotieso; mais tarde fizemos uma parada intermediária antes de aportar em um agradável bosque de eucaliptos localizado na margem esquerda da Foz do Arroio Zapata (33°56’54,3” S / 53°29’51,7” O), por volta das 12h00, depois de percorrer 22 km.

biguás

Segundo o Comandante Décio Vaz Emygdio, o Arroio Zapata, assim como o Arroio de Ayala (33°02’00,9” S / 53°34’03,6” O), que fica próximo à Lagoa Guacha, foram assim nominados em homenagem a um paraguaio de origem espanhola chamado Don Miguel de Ayala, nos idos de 1680, conhecido como Viejo Zapata.

Depois do almoço, em que eu e o Antônio Buzzo comemos a ração americana doada pelo Dr. Marc Meyers, prosseguimos nossa jornada.

Ao aportarmos, 12 km depois, na margem direita do Arroio Sarandi Grande (Foz ‒ 33°02’04,2” S / 53°34’02,7” O), o tempo começou a mudar e nuvens carregadas formaram-se no horizonte.

O Buzzo recomendou que aguardássemos, mas achei melhor continuarmos rumo ao Rio Cebollati ([1]), como acordáramos com os velejadores. Sete quilôme­tros adiante, estacionamos em uma restinga baixa que permitia observar a Lagoa Guacha.

– Carão

Fiz contato com a equipe de apoio pelo rádio, mas eles não conseguiam me ouvir, o tempo ruim aproxi­mava-se célere e decidimos partir imediatamente e direto para a Foz do Rio Cebollati, a 13 km de distância, evitando margear a Baía.

A meio caminho, uma enorme e veloz nuvem negra forçou-nos a aportar e a procurar proteção sob os frondosos galhos de uma espinhosa coronilha (Scutia buxifolia).

Passado o vendaval, picamos a voga para achar o veleiro que, conforme combináramos, deveria estar ancorado em algum lugar da imensa e labiríntica Foz do Rio Cebollati (Foz ‒ 33°08’55,2” S / 53°37’17,6” O).

Fui à frente para achar logo o Zilda III e evitar que o Buzzo e o Hélio tivessem de remar desne­cessariamente. Finalmente avistei os velejadores e apontei a rota para meus companheiros. Depois de embarcados, tomamos um banho quente a bordo e pernoitamos no veleiro. Navegáramos 54 km e este conforto era muito bem-vindo.

– Garça Moura – Guardiã da Fronteira

Foz do Rio Cebollati ‒ Baía Pelotas (02.01.2015)

O Novo Argonauta ‒ Mede os Céus
(José Agostinho de Macedo)

De Lísia ([2]) é produção, de Lísia estudo,
O seguro Astrolábio, o certo Octante,
Na imensa solidão do Mar fremente,
Fanal ([3]) que aclara a sombra e marca a estrada.
Das ondas mede os Céus e observa os Astros;
Do Sol conhece a altura e conta os passos;
E sem falhar no líquido caminho,
Ao menos marca ao certo a Latitude. […]

Acordamos cedo e tomamos o desjejum prepara­do pelo Cel Pastl. Os ventos do quadrante Sul (de 30 km/h e rajadas de 45 km/h) assobiavam ameaçadora­mente. Parti, deixando para trás nosso parceiro Antônio Buzzo, que preferiu, neste dia, permanecer embarcado no Zilda III; e o Professor Hélio, que ultimava alguns preparativos antes de iniciar a jornada.

Fiz a primeira parada, às 07h15, na Baía Cebollati, a 5 km de nosso pernoite. O vento Sul tinha baixado o nível da Lagoa em torno de um metro, fotografei a vegetação que emoldurava as dunas da praia e aguardei o parceiro chegar. Depois de ingerirmos uma barra de cereal, contornamos a Ponta Cebollati, com dificuldade. Os ventos de proa e as ondas de mais de metro de altura diminuíam muito o rendimento e afe­tavam a segurança da navegação; era, portanto, mais garantido navegar junto à margem. Paramos, às 08h20, depois de remar 5 km, na raiz Meridional da Ponta Cebollati (33°10’12,8” S / 53°38’25,2” O).

O Hélio partiu enquanto eu ainda fazia alguns ajustes no caiaque, e já me encontrava longe da margem quando verifiquei que não baixara o leme. Para perma­necer próximo à costa, como programara, eu teria de enfrentar ondas de través, o que, sem o leme, iria gerar um desgaste físico muito grande. O formato em quilha da proa e da popa, embora seja o ideal para cortar a água, deixa o caiaque à mercê das ondas de través. Quando estas ondas encontram primeiro a popa, fazem a proa virar para a origem das ondas e, quando batem na proa, fazem-na acompanhar o sentido das ondas. Chamei o Hélio para que ele baixasse o meu leme, mas o vento não permitia que ele ouvisse. Decidi continuar enfrentando as ondas de frente, pois esta era a conduta mais adequada à situação – era mais fácil conduzir o Cabo Horn com ondas de proa do que de través. Estávamos a meio caminho da margem oposta quando percebi que o suporte do leme do Hélio quebrara e o leme era arrastado pelas ondas de um lado para o outro. Finalmente o Hélio me ouviu, fixei o leme dele no convés e ele baixou o meu. Combinei de aportarmos nas proximidades de uma casa que estava exatamente à nossa proa e achei que ele tinha entendido.

Parece que o Hélio não ouviu minha orientação e se afastou lentamente para bombordo até sumir de vista. Achei que o amigo estava à deriva em decorrência da falta do leme. Demorei a alcançar a margem da Baía Magra, próximo à casa (33°13’18,2” S / 53°39’30,1” O) que tomara como referência, e, imediatamente, subi na duna mais alta tentando avistar o Hélio e, como não consegui, comuniquei-me, pelo rádio, com a equipe de apoio.

O Comandante Reynaldo di Benedetti informou-me que eles tinham decidido permanecer na Foz do Cebollati em virtude dos fortes ventos e só mudaram a programação para tentar achar o Hélio. Inicialmente o Coronel Pastl me pedira para permanecer no local, mas, aflito, depois de um vinte minutos parado, decidi costear a Baía Magra, protegido dos ventos, na tentativa de encontrar o Hélio. Não encontrei meu parceiro e, nas proximidades da Ponta Magra, aproveitei que a direção dos ventos coincidia com a da Ponta e surfei velozmente por uns 3 km.

Logo depois de ultrapassar a Ponta avistei o Hélio navegando algumas centenas de metros à frente, e novamente o vento impediu que ele me escutasse. Fiz uma parada para contatar a equipe de apoio, mas não consegui, apesar de ter subido nas árvores mais altas. Hidratei-me e continuei.

Mais à frente enxerguei o Hélio novamente e, desta vez, ele me viu. Imediatamente parei, subi na duna mais alta e consegui contatar o Coronel Pastl que me repassou as coordenadas da Foz de um pequeno Arroio (33°17’57,1” S / 53°35’31,0” O) que verifiquei, logo adiante, estar totalmente assoreado, forçando-nos a ir mais adiante.

Fomos até um canal de irrigação (33°19’26,4” S / 53°36’11,8” O) que também não se mostrou viável. Estacionamos, então, um pouco adiante deste canal, onde fizemos uma sondagem do local e, embora fosse Mar aberto, a vegetação nativa oferecia uma certa proteção dos ventos, agora moderados, que sopravam de SO. Montamos acampamento sob uma bela corticeira (Erythrina crista-galli) e estendemos nossas roupas molhadas sobre uns sarandis.

Fiz um “tour” pelo local documentando a bela região onde encontrei uma lebre, muito mansa, que perambulava pela praia sem se incomodar com minha presença.

A espessura das camadas de conchas nas praias varia muito, mas encontrei, em alguns lugares, algumas com mais de 30 cm. A jornada foi curta, apenas 37 km, mas satisfatória, considerando as condições adversas e os imprevistos.

– Antônio Buzzo

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 26.01.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

BURLAMAQUI, Frederico Cesar. Relatório dos Serviços Executados em 1943 Apresentado ao Exmo. Sr. Ministro da Viação e Obras Públicas, General João de Mendonça Lima, pelo Diretor Geral, Engenheiro Civil, Dr. Frederico Cesar Burlamaqui – Brasil – Rio de Janeiro – Ministério da Viação e Obras Públicas – Imprensa Nacional, 1945.   

Circum-navegação da Lagoa Mirim
(27.12.2014 a 10.01.2015)

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
  • E-mail: [email protected].

[1]   Cebollati: na Argentina, Uruguai e Chile as letras “LL” se pronunciam como o “J” da língua portuguesa. (Hiram Reis)

[2]   Lísia: tem o mesmo significado que Lusitânia. (Hiram Reis)

[3]   Fanal: farol. (Hiram Reis)

Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias