Circunavegação da Lagoa Mirim – Parte II

Rota do Canal S. Gonçalo ao Rio Jaguarão

Partida do Sangradouro (28.12.2014)

Os Argonautas
(Apolônio de Rodes)

A nau deslizou para dentro do Mar; eles, em seguida,
Puxando-a para trás, impediam-na de ir mais adiante.
Dispuseram os remos nas cavilhas pelos dois lados,
E colocaram o mastro, as velas bem trabalhadas e os víveres. […]

Batiam com os remos na água do Mar impetuoso,
E ondas barulhentas se chocavam contra a nau.
A água negra do Mar corria espumante de um lado a outro,
Ribombando terrível sob o vigor destes homens muito fortes. […]

Todos os deuses, naquele dia, olhavam do alto do céu
A nau e a raça de semideuses, os melhores que,
Naquele tempo, navegaram pelo Mar.

Nos cumes mais elevados, as Ninfas do Pélion contemplavam Estupefatas o trabalho de Atena Itonida e os próprios heróis,
Que agitavam os remos com as mãos.

Veio do alto de uma montanha próxima ao Mar Quirão,
Filho de Filira; ele molhou os pés na arrebentação
Branca das ondas e, sacudindo muito sua mão poderosa,
Desejou um regresso feliz aos que partiam; […]

Acordamos, eu e o Hélio, antes do alvorecer, de­sarmamos o acampamento atormentados por um enxa­me frenético de carapanãs e fomos tomar o café a bordo do Zilda III, onde encontramos o Brian pescando, e o Cel Pastl ultimando os preparativos para o desjejum.

Depois da refeição matinal, embarcamos em nossos inigualáveis caiaques oceânicos “Cabo Horn”, da Opium FiberGlass, com a mesma inquebrantável deter­minação dos Argonautas de outrora ‒ realizar a inédita Circunavegação da Lagoa Mirim de caiaque, a maior Lagoa brasileira.

Inspirados pelos versos de Rodes, mas fiéis à nossa fé monoteísta, tínhamos a certeza de estarmos sendo observados atentamente pelo Grande Arquiteto do Universo e Senhor de Todos os Exércitos, o que nos inspirava a prosseguir e a alcançar sucesso na nossa afanosa e arriscada epopeia.

Afastamo-nos da costa com o intuito de deixar para trás os incômodos e famintos insetos. O artifício funcionou e o Hélio, em tom de brinca­deira, afirmou que o nome de Sangradouro deve ter sido dado em virtude da voracidade destes minúsculos e incômodos vampiros. Os ventos de proa, que nos fus­tigariam durante toda a travessia, freavam nossa pro­gressão, não permitindo que nossa velocidade cruzeiro ultrapassasse os 6,5 km/h.

Depois de remar por mais de uma hora, aproxi­madamente uns 8 km, passamos pela Foz do Arroio das Palmas (ou Parapó ‒ 32°10’15,3” S / 52°43’32,1” O), que, mais à montante, a partir do Passo do Parapó, serve de divisa entre os Municípios de Arroio Grande e Pedro Osório, avistamos o veleiro saindo lentamente do Canal São Gonçalo.

Ultrapassamos a Ponta Luís dos Pobres, tangen­ciando os sarandis (Sebastiana schottiana), que na fase adulta ultrapassam os 3 m de altura, agora quase total­mente submersos. Sondando a profundidade no local, verifiquei que ela ultrapassava os 2,5 m.

Arroio Chasqueiro – L. Mirim, RS

Nessa oportunidade avistamos, ao longe, um bom local de parada 4,25 km ao Norte do Arroio Chasqueiro (32°16’05,3” S / 52°47’14,4” O) onde aportamos, às 09h30, depois de remar por três horas e percorrer 20 km, numa praia (32°13’47,6” S / 52°46’33,8” O), tomada pelas águas, frontal à uma formidável mata nativa.

Repusemos as energias nos hidratando, comendo algumas barras de cereais e aproveitamos a parada para fotografar a vegetação eolicamente esculpida. Algumas figueiras tinham tombado sucumbindo à ação solerte e contínua das águas e dos ventos, mas aferravam-se à vida moldando seus troncos, galhos e raízes à nova realidade, emprestando à paisagem mais do que um exemplo de determinação e vontade, mas de como se pode alterar o cenário de um funesto cataclismo em um templo de determinação e esperança.

Além dos monumentos arbóreos, as enormes bro­mélias e barbas de bode agitadas ao vento e outras tantas epífitas, empoleiradas nos seus galhos, empres­tavam-lhes um encanto especial. Descansados, nave­gamos 15 km, enfrentando ventos de proa de mais de 20 km/h, passamos pela Foz do Arroio Canhada Grande (Foz 32°18’59,6” S / 52°48’29,7” O) e chegarmos à Foz do Arroio Grande (32°20’43,3” S / 52°47’21,6” O), por volta das 12h00, onde nos aguardavam os amigos vele­jadores para o almoço. Almoçamos e partimos depois de combinarmos que eles pernoitariam na Foz do Arroio Bretanhas (32°29’21,6” S / 52°58’08,6” O), e nós no Farol da Ponta Alegre.

Fizemos a última parada do dia na Ponta Alegre, às 15h00, onde encontramos vestígios de um acampa­mento de pescadores totalmente tomado pelas águas.

Aportamos nas proximidades do Farol da Ponta Alegre às 16h15 depois de remar 48 km desde o Sangradouro. Como o Farol e as casas dos faroleiros não permitiam que acantonássemos, resolvemos montar a barraca na praia em um local protegido dos ventos por pequenas dunas.

Farol da Ponta Alegre – L. Mirim, RS

Farol da P. Alegre (32°24’52,8”S/52°45’29,5”O)

O Farol, de torre quadrangular de alvenaria, antigamente pintado de branco, com 16 metros de altura, e as duas casas dos faroleiros ficavam localizados a aproximadamente um quilômetro a Sudoeste da Ponta Alegre (32°24’53,6” S / 52°45’29,7” O).

O assoreamento provocado por uma centúria estendeu os limites da Ponta Alegre e, em consequência, a distância do Farol quintuplicou; diminuindo, também, a distância entre a Margem Oriental e a Ocidental da Lagoa.

O complexo foi inaugurado no dia 20.09.1908 e sua luz branca era visível, com tempo claro, a 21 km de distância. Embora mal conservado e apresentando alguns sinais visíveis de deterioração pela ação do tempo e do vandalismo, sua robusta estrutura, com mais de cem anos, é um marco memorável ‒ um ciclope que assiste estático e impassível à marcha inexorável do deus Chronos e de seus prosélitos. Sua magnífica escadaria helicoidal de ferro, ainda que totalmente exposta à ação das intempéries, resiste estoicamente, permitindo ao visitante chegar ao seu topo com toda a segurança.

Ângelo Moniz da Silva Ferraz (Barão de Uruguaiana), Presidente da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, encarregou, em 03.11.1857, Francisco José de Sousa Soares de Andrea (Barão de Caçapava) de formalizar um parecer técnico a respeito da localização dos faróis que deveriam ser edificados à margem da Lagoa Mirim para tornar sua navegação segura.

O parecer que recomendava a construção de dois faróis na Margem Ocidental ‒ um na Ponta Alegre e outro na Ponta do Juncal e na Margem Oriental ‒ na Ponta de Santiago foi aprovado.

O Governo Imperial, embora reconhecesse a necessidade dos mesmos, alegava problemas financeiros para a sua construção, que mais tarde foram agravados com a eclosão da Guerra do Paraguai.

F. Ponta Alegre ‒ Foz do Jaguarão (29.12.2014)

O Novo Argonauta ‒ Convulso Baixel
(José Agostinho de Macedo)

O convulso Baixel, de novo aos ares
As encruzadas ondas o vomitam:
Em hórrida peleja os Elementos
Em cada vaga a sepultura mostram. […]

A terra não conhece, eis se lhe mostra
Boiando ao longe rápida canoa,
Que mal divisa o combalido Lenho,
Vem de voga arrancada ao frágil bordo. […]

Tens descoberto a América buscada;
Demanda agora o suspirado porto,
Fim da fadiga tua, e teus desejos.
Eis nova Empresa e desusado arrojo,
Correr ao longo no pequeno Lenho
A vasta costa do Brasil inteiro! […]

Seguimos nossa espartana rotina e fomos brindados, às 06h30, com uma fantástica aurora que uma persistente e densa névoa, que se estendia por todo o horizonte, teimava, sem sucesso, ocultar.

Avistamos ao longe o Zilda III, que pernoitara no Bretanhas, mais de 12 milhas além do Farol, pois os tripulantes iam subir o Rio Jaguarão até a cidade que lhe empresta o nome, onde o Coronel Pastl e seus netos tomariam um ônibus até Porto Alegre, de onde o Comandante retornaria, reembarcando no Zilda III em algum ponto da costa uruguaia.

Segundo a programação original, os velejadores, Comandantes Reynaldo di Benedetti e Norberto Weiberg, desceriam o Rio Jaguarão e nos encontrariam em um local a combinar para o pernoite de 29.12.2014. Fizemos uma breve parada em um dos canais de irrigação e, mais adiante, depois de remar 23 km, estacionamos, às 09h30, na Foz do Bretanhas atualmente rebaixado a um mero canal de irrigação. A ampla Foz do Bretanha con­trasta com a paisagem ao redor sem qualquer atrativo especial.

Veleiro Macanudo Rio Jaguarão, RS

Continuamos nossa viagem e, logo adiante, uma mata dos famigerados pinus (32°30’32,2” S / 52°59’13,9” O) se apresentou à SO do Bretanhas e, 6 km avante aportamos, às 11h10, para o almoço, na Foz do Arroio Arrombados (32°32’24,8” S / 52°59’57,9” O).

Consumi uma das rações doadas pelo Dr. Marc Meyers por ocasião de nossa jornada pelo Rio Roosevelt. As agitadas e exibidas gaivotas pareciam querer chamar a atenção sobre si mesmas e, além do alarido, das radicais piruetas aéreas, volta e meia brigavam por um pequeno lambari abocanhado por uma delas.

Um estático e imperturbável carcará (Caracara plancus) observava a movimentação das irrequietas aves, sob a sombra curiosa de um arbusto em forma guarda-sol, com uma serenidade de causar inveja ao mais fleumático lorde britânico.

Os troncos da pequena mata nativa arqueados na direção SO, à margem esquerda da Foz do Arroio Arrombados, denunciavam a predominância dos ventos NE que assolam a Lagoa Mirim. Infelizmente avistamos vestígios de pescadores irresponsáveis que deixaram para traz sacolas plásticas e garrafas PET (Polietileno Tereftalato).

Depois de deixarmos o Arroio Arrombados, para­mos, às 13h40, novamente para descansar na Ponta Negra (32°36’15,4’’ S / 53°00’56,3’’ O), na altura de um canal de irrigação. As águas tinham uma curiosa colora­ção negra tingida pelas areias impregnadas por um material escuro semelhante ao betume.

Fizemos nova parada na Ponta do Juncal, à margem direita do Arroio Juncal (32°38’32,4’’ S / 53°05’16,8’’ O), às 15h30. O Arroio não tinha nenhum atrativo especial, ao contrário da Ponta, cujas dunas e mata nativa lhe conferem um charme peculiar.

A forte canícula forçou-nos a procurar as águas mais profundas do Juncal para nos refrescarmos. A Foz do Jaguarão ficava a apenas dez quilômetros do Juncal.

Foi um tiro muito cansativo, passava das 16h00 e já estávamos remando há sete horas. Visando diminuir a distância, aproamos diretamente para a Foz do Jagua­rão, onde aportamos, às 17h30, depois de percorrer 55 km.

Imediatamente subi em uma das dunas mais altas da margem direita da Foz para tentar contatar os nautas, que já deviam estar em Jaguarão, a Rosângela e familiares. Depois de várias tentativas, consegui falar com o Cel Pastl que me informou que o Comandante Norberto, atendendo a motivos pessoais, precisara re­tornar à Canela. Nossa programação foi alterada abrup­tamente e, em vez de partirmos, no dia seguinte, para o Sul, precisávamos subir 26 km do Jaguarão até o Iate Clube local, o que representaria um dia adicional à nossa jornada que não estava absolutamente previsto.

Avistei, a uns 2,5 km da Foz, uma casa de bombeamento d’água onde poderíamos acantonar com certo conforto. Estava reconhecendo o local quando o Hélio apareceu e sugeriu que continuássemos remando Rio acima até achar outro local para acamparmos.

Tínhamos percorrido quase 58 km neste dia e remado durante nove horas. A experiência já tinha me mostrado, em diversas ocasiões, que um indivíduo exte­nuado fica mais propenso a tomar decisões equivocadas e a cometer erros e foi justamente o que aconteceu. Logo após este canal de irrigação, onde eu pretendia acampar, deve-se procurar o talvegue do Rio à bom­bordo, margem uruguaia, e nós enveredamos pelo canal de Boreste.

Marco – Rio Jaguarão, RS

O resultado final deste imbróglio foi o de que remamos inutilmente por 4,5 km Rio acima até que a vegetação aquática nos impediu de continuar. Aportei, então, e consultei o Cel Pastl, que nos informou do en­gano cometido; retornamos, assim, à casa de bombas, onde deveríamos ter acampado desde o início. Percor­remos, neste estafante e ensolarado dia, 67 km, uma jornada de onze horas, sendo nove de remo.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.01.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Vídeo: II Parte: Sangradouro – Jaguarão (28 a 31.12.2014) – Circum-navegação da Lagoa Mirim (II Parte) (youtube.com)https://www.youtube.com/watch?v=lZGalACE8kA&feature=youtu.be 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);    
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS);
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG);
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN);
  • E-mail: [email protected].   

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