Circunavegação da Lagoa Mirim – Parte I
Água Doce da Minha Terra
(Lúcia Rocha)
[…] Água doce que vem,
Água doce que vai,
Beleza nativa de muitos sotaques,
Água doce da minha terra.
Após concluir a Descida do Rio Roosevelt, no dia 13.11.2014, envolvi-me totalmente na redação do Diário de Bordo do mesmo sem poder dedicar-me ao planejamento e ao estudo de meu próximo desafio – a Circunavegação da Lagoa Mirim. Tinha preparado os mapas, já há algum tempo, identificando os principais acidentes naturais sem chegar, porém, a georeferenciá-los. O Comandante Norberto Weiberg estava empenhado, de corpo e alma, no minucioso projeto e me comunicava constantemente sobre o andamento do mesmo. Partimos de Bagé, dia 26.12.2014, eu e a Rosângela Maria de Vargas Schardosim, com destino a Pelotas onde pernoitaríamos na véspera da largada. À tardinha fomos até o Veleiros Saldanha da Gama encontrar os demais navegadores, deixar o meu bravo caiaque “Argo II” e combinar o horário da partida.
Partida de Pelotas (27.12.2014)
Acordamos às 04h30 e dirigimo-nos ao Clube Veleiros onde encontramos nossos parceiros empenhados no aprestamento do veleiro Zilda III que, neste dia, nos conduziria, pelo Canal São Gonçalo, até o “Arroio” Sangradouro, próximo à Boca do São Gonçalo na Mirim.
A Rosângela retornou à pousada, na Praia do Laranjal, às margens da Laguna dos Patos para repousar antes de voltar para Bagé. A tripulação do Zilda III, até Jaguarão, estava assim constituída:
Comandantes: Reynaldo di Benedetti, Sérgio Pastl e Norberto Weiberg;
Grumetes: Pedro Sérgio Londero Pastl e Brian Pastl Wechenfelder;
Canoeiros: Hiram Reis e Silva e Hélio Riche Bandeira (embarcados no Zilda III até o “Arroio” Sangradouro).
Partimos antes do alvorecer; uma claridade difusa disfarçava as imagens extremamente decadentes da outrora progressista margem esquerda do Canal São Gonçalo. Embarcações como o Frota Santos, com seus 168 m de comprimento e 28 m de largura (adquirido no dia 1° de dezembro por R$ 2,8 milhões pelo executivo marítimo inglês Philip Andrew Push) e outras tantas muito mais antigas jaziam carcomidas pela ferrugem. Antigas ruínas abandonadas contrastavam com as instalações da Sociedade Anônima Frigorífico Anglo S.A. que estão sendo progressivamente reformadas e ocupadas pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel) ‒ Campus Porto.
Canal São Gonçalo
São Gonçalo (Gonçalves do Amarante) foi um beato muito jovial, venerado como Santo pelos portugueses. Nasceu, em 1187, em Arriconha, perto de Braga, Portugal e morreu, como profetizara, em 1259. Uma passagem, em especial, relatada no site cademeusanto.com.br, ilustra muito bem a santidade e a personalidade deste alegre servo de Deus:
Um dos vários milagres de Gonçalves foi durante a construção de uma ponte sobre o Rio que era muito bravo e não permitia que as pessoas do outro lado viessem visitar a ermida no tempo das águas. Não era um bom local para se fazer uma ponte, mas Gonçalves seguiu, segundo ele, diretrizes vindas do céu.
Certa vez, durante a construção, ele estava coletando doações e, quando bateu à porta da casa de um homem rico, este disse a ele para procurar na loja a sua esposa com um bilhete; que ela daria a ele as moedas de ouro estipuladas no bilhete. São Gonçalves levou o bilhete para a esposa e, quando esta o leu, passou a rir. O bilhete dizia:
Coloque este bilhete no prato da balança e dê a ele tantas moedas de ouro quanto for necessário para equilibrar a balança.
A loja estava cheia de fregueses. Inalterado, Gonçalves disse:
‒ Mulher, obedeça ao seu marido.
Colocou o bilhete no prato da balança e disse:
‒ Agora coloque no outro as moedas.
A mulher colocou uma, duas e várias moedas até encher o prato e o bilhete ainda pesava mais que as moedas. Quando o prato estava derramando, São Gonçalves disse:
‒ Já chega.
Colocando as moedas em um saco, saiu deixando a todos pasmos e estupefatos.
Nas cartas geográficas mais antigas, o Canal era erroneamente chamado de Rio ou considerado como sangradouro da Lagoa Mirim.
O Canal de aproximadamente 75 km de extensão, largura média de 250 m e profundidade de 5 a 7,5 m, permite que as águas fluam, normalmente, da Lagoa Mirim para a Laguna dos Patos e invertia este fluxo, antes da construção da eclusa, apenas em raros períodos de forte estiagem (geralmente de novembro a maio). Iríamos percorrer 65,5 km do Canal tendo em vista que o Veleiros Saldanha da Gama fica a uns 9,5 km da Boca do São Gonçalo na Laguna dos Patos. A Lagoa Mirim estava cheia, embora as bombas dos numerosos e gigantescos canais de irrigação de arroz, que mais parecem arroios, estivessem drenando intensivamente colossais quantidades de suas águas.
Afluentes do São Gonçalo
Com exceção do chamado “Arroio” Sangradouro que é, na verdade, apenas um sangradouro das numerosas Lagoas que permeiam a Margem Ocidental da Lagoa Mirim, todos os afluentes do São Gonçalo desembocam na sua margem esquerda, sendo que os mais caudalosos são o Rio Piratini (Foz: 32°00’57,7” S / 52°25’15,6” O) e o Arroio Pelotas (Foz: 31°46’23,5” S / 52°16’51,1” O).
Ponte Ferroviária (31°47’17,9”S/52°20’42,7”O)
Chegamos às 06h35 e tivemos de aguardar até às 07h15 para que o vão central da Ponte Ferroviária fosse suspenso para o Zilda III passar. A construção da Ponte Ferroviária, de 300 metros de comprimento por 3,80 metros de largura, tinha um centro giratório, que permitia a passagem dos vapores do Porto de Pelotas até Jaguarão e viabilizava o transporte ferroviário entre as cidades de Bagé e Pelotas ao porto de Rio Grande.
O projeto fora aprovado pelo Governo Imperial em 1873, sua estrutura metálica foi fabricada na França em 1882 e inaugurada pela Southern Brazilian Rio Grande do Sul Railway Company Limited, em 1884.Mais tarde, o pião central e estrado giratório foi modificado para um levadiço ([1]) de 39 m. Este vão central possibilita um tirante de ar ([2]) de 20 m, na cheia, e de 23 m na vazante. O controle do transporte ferroviário, atualmente, é de responsabilidade da América Latina Logística (ALL).
Ponte Léo Guedes (31°47’25,5”S/52°20’51,2”O)
Passamos, logo em seguida, sob a ponte Léo Guedes. Esta ponte, de 1.020 m de comprimento, vão central de 109 m e tirante de ar de 18,4 m, na cheia, e de 21,3 m na vazante, teve sua construção iniciada, em abril de 1975, pela Sotege Engenharia S.A., que a entregou ao tráfego em maio do ano seguinte.
Ponte A. Pasqualini (31°47’26,7”S/52°20’52,5”O)
Ao lado da Léo Guedes está a ponte Alberto Pasqualini, que foi desativada em decorrência do tráfego pesado e sem controle usado para escoar a soja através do Porto de Rio Grande. A ponte de Classe I, que deveria ser trafegada por veículos de até 36 TF (três eixos de 12 toneladas), suportou caminhões com mais 60 TF comprometendo seriamente sua estrutura, que teve que ser reforçada e a carga máxima limitada a 24 TF, trazendo consequências extremamente danosas ao escoamento da safra de 1974. A solução proposta pelo DNER foi, então, a construção de uma nova ponte.
Eclusa (31°48’41,3” S / 52°23’15,3” O)
Chegamos às 08h10 e às 09h00 ultrapassamos a eclusa. Em 1977, o fluxo natural do São Gonçalo foi alterado com a construção da Barragem do Centurião, que tinha como objetivo impedir a intrusão das águas salgadas para a Lagoa Mirim, garantindo, assim, a oferta de água potável para as cidades de Rio Grande e Pelotas, além de evitar prejuízos às lavouras de arroz, cultura que predomina na costa da Lagoa Mirim.
A barragem, transversal ao Canal São Gonçalo, tem 245 m de comprimento, 18 comportas basculantes, com 12 m de largura e 3,20 m de altura. A eclusa, com 120 m de comprimento, 17 m de largura e 5 m de profundidade, foi erigida na margem esquerda do Canal.
Seus portões basculantes, com 17 m de largura e 8 m de altura, nivelam a altura da água dentro da eclusa, permitindo, desta maneira, a passagem das embarcações.
A responsabilidade pela manutenção e pela fiscalização da barragem eclusa é da Agência de Desenvolvimento da Bacia da Lagoa Mirim (ALM [3]).
Relato Pretérito ‒ Eclusa (Projeto n° 3.519)
Clóvis Pestana (1957)
O local escolhido para a construção dessa barragem dista 400 m da ponte da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.
Ponte velhíssima, construída para linha singela e para trens leves, e com vão central giratório que permite a passagem das embarcações que fazem o transporte entre os portos lacustres e fluviais das duas grandes bacias riograndenses. (PESTANA)
Eclusa ‒ R. Piratini (32°00’57,7”S/52°25’13,6”O)
Raramente, nas minhas aquáticas jornadas, tenho a oportunidade de encarnar, de forma tão absoluta, a personagem de um mero espectador deixando de lado meu clássico papel de protagonista. Nas duas semanas que se seguiriam ao dia de hoje, talvez fosse essa a única oportunidade em que eu poderia desfrutar do conforto de um veleiro e observar as paisagens de uma cota extremamente privilegiada. A Eclusa está inserida na Volta da Figueira, que deixamos para trás ao entrar na Volta do Pesqueiro; e, logo depois, na Volta do Brigadeiro, passamos a seguir pela Ilha das Moças, Passo do São José e Rio Piratini. As imensas áreas alagadas a cavaleiro do Canal abrigam uma diversidade considerável de aves. Na margem direita, próximo à Foz do Piratini há uma casa de alvenaria construída sobre pilares que substituiu uma de madeira (eucalipto) conforme nos relata o Comandante Décio Vaz Emygdio no seu livro “Lagoa Mirim ‒ um Paraíso Ecológico” (página 51).
Piratini ‒ I. Grande (32°03’52,8”S/52°30’30,4”O)
A paisagem quase não variara desde que cruzamos pela eclusa, tínhamos passado pelo Passo do Liscano e pela Volta do Liscano até que, de repente, tudo começou a mudar quando vislumbramos, às 15h20, a ponta de jusante da Ilha Grande (32°03’20,3” S / 52°29’15,3” O) e adentramos pelo braço Sul (à bombordo), mais curto, deixando a Ilha à Boreste.
A vegetação nativa era agora dominada por belas Coronilhas (Scutia buxifolia) e algumas centenárias e portentosas figueiras, as capivaras e os ratões do banhado, por sua vez, aproveitavam o calor dos raios solares fitando-nos preguiçosamente.
Atingimos a ponta de montante (32°04’52,3” S / 52°31’17,8” O) da bela Ilha Grande e despedimo-nos deste magnífico oásis onde a fauna e a flora dominam o cenário.
Ilha ‒ Sangradouro (32°08’48,5”S/52°37’21,6”O)
Após a Ilha Grande deixamos para trás a Volta do Firme, a Ilha Pequena e aportamos, às 17h25, para comprar alguns gêneros, em Santa Isabel do Sul. Aqui, como na área portuária de Pelotas, a visão é igualmente desalentadora, o pequeno povoado é um retrato explícito do declínio e do abandono.
Santa Isabel do Sul
A Lei Provincial n° 1.368, em 09.05.1882, criou a Vila de Santa Isabel e em 1° de julho, do mesmo ano, foram realizadas eleições para vereadores e o Auto de Instalação deu-se no dia 27.01.1883. A Vila tornou-se município independente, de 1883 a 1893, com o nome de Santa Isabel dos Canudos.
Com o advento da República, novas mudanças nas organizações administrativas e jurídicas municipais abalaram definitivamente os alicerces da incipiente Santa Isabel. O Ato n° 11, de 16.01.1893, promulgado por Júlio de Castilhos, suprimiu o Município isabelense, transformando-o em Distrito de Arroio Grande. Repercute Arlindo RUPERT na sua obra A História da Igreja no Rio Grande do Sul – Volume II:
15 – Capela de Santa Isabel dos Canudos
Perto do Passo de Canudos, à margem esquerda do Rio S. Gonçalo, o Capitão José Correa Mirapalheta e sua mulher Faustina Correa, a 02.08.1859, doaram uma quadra de terreno com 56 braças de frente e 56 de fundos para se erigir uma Capela em honra de Santa Isabel. Pertencia à freguesia de Arroio Grande. O pároco de Rio Grande Pe. José Maria Damásio de Matos, a 01.11.1859, benzeu a pedra fundamental. Concluída com boas proporções, foi benta a 03.05.1863 por D. Sebastião Dias Laranjeira em visita pastoral. Foi ricamente paramentada pelo comendador Domingos Faustino, que mais adiante retomou as alfaias doadas por ter se desencontrado com Mirapalheta. Pela lei provincial n° 586 de 07.12.1866 a Capela de S. Isabel dos Canudos foi elevada à paróquia. Como não tinha todas as condições e por falta de clero só foi canonicamente ereta a 15.06.1882 por D. Sebastião, que lhe nomeou como primeiro pároco o Pe. Antonio Troccoli (1882-1889), da diocese de Vallo e Capaccio na Lucania, Itália, nascido em Ascea. Trabalhara 13 anos no Uruguai, sendo 10 como pároco de Santa Lúcia. Ultimamente era pároco de Santana da Boa Vista. A paróquia de Santa Isabel dos Canudos era pobre e conheceu longas vacâncias. Mais tarde se extinguiu. (RUPERT)
Foi um tiro curto até o Sangradouro (32°08’48,5” S / 52°37’21,6” O). Como as margens estavam inundadas, sugerimos ancorar no São Gonçalo. Como o veleiro estava superlotado, eu e o Hélio acampamos em uma pequena e agradável praia à margem esquerda da Boca do Canal. Retornamos, mais tarde, ao Zilda III para o jantar e, na oportunidade, ficamos observando algumas capivaras aproximarem-se da embarcação em busca de alimentos.
Recolhemo-nos cedo; a previsão de ventos de proa para o dia seguinte certamente exigiria muito de nossos músculos. Eu nunca enfrentara em minhas andanças pela Amazônia e pelo Pantanal tal quantidade de mosquitos; entramos rapidamente na barraca e tivemos de ligar as lanternas para exterminar os vorazes insetos que ali tinham adentrado.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 19.01.2024 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Vídeo: I Parte: Canal São Gonçalo – Sangradouro (27.12.2014) – Circum-navegação da Lagoa Mirim – Canal São Gonçalo (youtube.com) – https://www.youtube.com/watch?v=jdlkYAA4D5c
Bibliografia
D’EU, Conde. Viagem Militar ao Rio Grande do Sul (agosto a novembro de 1865) ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Companhia Editora Nacional, 1936.
RUPERT, Arlindo. A História da Igreja no Rio Grande do Sul – Época Imperial (1882-1889) Volume II ‒ Brasil ‒ Porto Alegre, RS. EDIPUCRS, 1998.
PESTANA, Clóvis. Autoriza o Poder Executivo a criar a Comissão Construtora da Barragem-Ponte Ferroviária no Rio São Gonçalo, Pelotas, Rio Grande do Sul – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Câmara dos Deputados – Projeto n° 3.519 – de 1957.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Levadiço: ponte Levadiça.
[2] Tirante de ar: vão que permite a passagem das embarcações. (Hiram Reis)
[3] ALM: criada pelo Decreto 1.148, de 26.05.1994, por ocasião da transferência para a UFPel do acervo técnico-científico e patrimonial, e da administração das obras antes geridos pelo Departamento da Lagoa Mirim – extinta SUDESUL. (Hiram Reis)
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