Na poética do imaginário dos seringais fronteiriços da Amazônia Sul – Ocidental brasileiro – boliviana, os deuses míticos dialogam e convivem cotidianamente no sentido de oferecer de forma devaneante, sobrevivência e felicidade ao tradicional e telúrico lar ribeirinho divinizado.
Certo dia uma criança navegava tranquilamente num batelão em companhia do pai e da mãe nas águas do rio Mamu – afluente do rio Abunã – quando repentinamente surge um forte temporal e o batelão começa a naufragar devido à chuva e a força incontrolável do vento. Com o seu poder transcendental a mãe-d’água brasiviana consegue equilibrar o batelão, mas infelizmente a criança não consegue se equilibrar e cai no rio. Ela é levada por uma violenta correnteza e desaparece misteriosamente nas profundezas das águas do Mamu.
Em visível estado de penúria, dor e lamentação, os pais da criança ficam desolados e retornam esmaecidos e extenuados ao Lúgubre tapiri. A liberdade parece entrar em degredo, a felicidade rui consternada, as forças obstinadas agora estão exauridas, e o seringal outrora colossal se transforma numa espécie de gólgota ou calvário. Diante de tamanho suplício e tormento daquele virtuoso lar, o pai da mata em estado de comiseração decide agir e solicita providências imediatas da mãe-d’água brasiviana, e esta atende prontamente o pedido do Deus protetor da floresta.
Com a sua eloquente e maviosa voz, a mãe-d’água brasiviana inicia um melodioso e estesiante canto nas embelecidas águas do dadivoso rio Mamu. Os seus cabelos resplandecentes se espalharam no leito e às margens do rio, amarrando-se às raízes das árvores e formando uma prodigiosa rede de união entre a mata e o rio. O enigmático e inefável canto, atraiu centenas de botos que juntos formaram uma espécie de cordão umbilical que ligava a origem da vida até o fecundíssimo útero das águas. Nesse espaço mítico-transcendental os botos pulavam e mergulhavam abraçando-se de alegria no colo da mãe-d’água brasiviana em estesia.
Era madrugada e o dia estava quase amanhecendo, quando a mãe órfã acordou sob os estampidos irradiantes de uma prodigiosa festa. Uma brisa encantatória alojou-se viscosa no complacente tapiri. Na volúpia da exaltação dos sentidos, a mãe correu impoluta até à beira do rio e avistou a natureza deslumbrante celebrando na sua forma divinal, o renascimento prodigioso da vida. Num cenário fluvial de harmonia e fascinação, os botos imensuravelmente formaram um deslumbrante círculo no leito do rio. No centro do círculo eles festejavam o surgimento inefável de uma nova vida: a vida do menino boto. O menino boto foi arremessado para cima para que a sua mãe o avistasse. Na cabeça do menino boto apareceu a irradiante imagem de seu filho que acenava e gritava de felicidade: – mamãe vem brincar comigo!
Possuída pela emoção de paz e alegria, a mãe mergulhou para rever o filho, e juntos eles comemoraram a divinal ressureição da vida. Alegre por saber que o seu filho agora é um adorável menino boto, emocionada a mãe contou ao pai o que havia acontecido, e o pai tomado de felicidade ajoelhou-se e chorou agradecendo ao pai da mata por ter atendido em oração ao seu peculiar pedido: trazer o seu filho de volta.
Os seringueiros brasivianos assistiram a um cosmogônico e devaneante espetáculo num cenário sagrado montado pelo pai da mata sobre as águas divinais do rio Mamu. As encantarias da poética de fronteira intercultural estão intimamente alojadas no ser da alma brasiviana, uma poética transcendental de vivência que simbolicamente anunciou a celebração mítica de criação do menino boto.
Por Marquelino Santana
FONTE: Correio Eletrônico (e-mail) recebido do autor
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