Eles estão em muitos lugares e fazem muito mais do que se reconhece

Capa. Os povos e comunidades tradicionais no Brasil enfrentam ameaças, discriminações e um constante processo de desconsideração de sua importância histórica – (Foto: Marcelo Camargo/ Agência Brasil. Reprodução)

No Brasil, povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados que possuem formas próprias de organização social e que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. Essa definição consta na Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNDSPCT), instituída em 2007 por meio do Decreto 6040. Nesse mesmo decreto constam ainda as definições de Territórios Tradicionais e de Desenvolvimento Sustentável. Ainda que se reconheça amplamente que decretos não bastam para que direitos e deveres sejam reconhecidos, os artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988 e o Decreto 6040 constituem marcos no longo e discriminatório processo de reconhecimento da diversidade cultural brasileira.

Carlos Alberto Dayrell, doutor em Desenvolvimento Social e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), aponta que os povos e comunidades tradicionais no Brasil enfrentam ameaças, discriminações e um constante processo de desconsideração de sua importância histórica.

Conforme aponta Paul Elliott Little no artigo “Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil, os diversos processos de expansão de fronteiras no Brasil colonial e imperial –como a colonização do litoral no século XVI; as entradas ao interior pelos bandeirantes, a ocupação da Amazônia e a escravização dos índios nos séculos XVII e XVIII; o estabelecimento das plantations açucareiras e algodoeiras no Nordeste nos séculos XVII e XVIII; a expansão das fazendas de gado no Sertão do Nordeste e Centro-Oeste e as frentes de mineração em Minas Gerais e no Centro-Oeste, ambas a partir do século XVIII; e a expansão da cafeicultura no Sudeste nos séculos XVIII e XIX – resultaram na criação de territórios dos distintos grupos sociais decorrentes de diferentes formas de resistência bem como processos de acomodação, apropriação, consentimento, influência mútua e mistura entre todas as partes envolvidas. Assim, o conceito de povos tradicionais contém tanto uma dimensão empírica quanto uma dimensão política, de tal modo que as duas dimensões são quase inseparáveis.

De Norte a Sul, eles estão por todo Brasil

Os povos indígenas são, conforme destaca Carlos Dayrell, os donos da terra posteriormente chamada Brasil: “os outros vieram depois e muitos foram massacrados”. Dayrell destaca que “a visão eurocentrista nos séculos XV e XVI de que aqui era uma fronteira aberta habitada por indígenas, uma categoria inferior aos brancos europeus, foi responsável por um processo extremamente violento de ocupação, muitas vezes invibilizado. As populações indígenas que viviam ao longo do litoral brasileiro foram as primeiras a serem atacadas, e constituíram as primeiras frentes de resistência, por vezes contraditórias, porque ora eram portugueses, ora holandeses, ora franceses”.

Atualmente, são reconhecidos no Brasil 28 povos e comunidades tradicionais. Além dos povos indígenas, são listados no Brasil: andirobeiras, apanhadores de sempre-vivas, caiçaras, catadores de mangaba, castanheiros, catingueiros, ciganos, cipozeiros, comunidades de fundo e fecho de pasto, extrativistas, faxinalenses, geraizeiros, ilhéus, isqueiros, morroquianos, pantaneiros, pescadores artesanais, piaçaveiros, pomeranos, povos de terreiros, quebradeiras de coco babaçu, quilombolas, retireiros, ribeirinhos, seringueiros, vazanteiros e veredeiros. Levantamento feito para esta matéria, em diferentes fontes, aponta ainda a existência de outros 10 povos e comunidades tradicionais no Brasil, que se espalham por todos os biomas e que possuem diferentes histórias e culturas. São eles: os açorianos, as benzedeiras e benzedeiros, os caboclos, os campeiros, os jangadeiros, as marisqueiras, os raizeiros, os sertanejos e os varjeiros (ribeirinhos não amazônicos). (Figura 1)

Figura 1. Atualmente, são reconhecidos no Brasil 28 povos e comunidades tradicionais. (Foto: Weverson Paulino/ Agência Brasil. Reprodução)

O reconhecimento de povos e comunidades tradicionais ocorre mediante um processo composto de dois estágios: o autorreconhecimento e a autoidentificação. Isso deve ser feito por meio de um documento elaborado pela comunidade, relatando sua história (como foi formada); sua ancestralidade (ou seja, os principais troncos familiares); suas manifestações culturais tradicionais, como festejos, rituais, religiosidades, práticas medicinais; suas atividades produtivas (extrativistas, agrícolas, agroflorestais, etc.) e demais informações que possam ser úteis no processo de autodeclaração como comunidade tradicional. É importante que as pessoas da comunidade se reconheçam como um grupo culturalmente diferenciado, com formas próprias de organização e ocupando um território específico, ainda que este lhe tenha sido retirado, invadido ou negado. Este documento deve incluir também uma descrição de suas práticas; uma reflexão sobre a importância de sua reprodução ou continuidade para o manejo e conservação/preservação do ambiente em que vivem e de suas tradições culturais originárias e outras práticas, advindas da ancestralidade, e como essas são transmitidas entre gerações na comunidade.  

Contribuição para o desenvolvimento científico e tecnológico

Em 2021 e 2022, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), com apoio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI), publicou uma série de sete volumes intitulada Povos Tradicionais e Biodiversidade no Brasil: Contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, organizada por Manuela Carneiro da Cunha, Sônia Barbosa Magalhães e Cristina Adams. O estudo contou com a participação de mais de duzentos pesquisadores, entre acadêmicos, indígenas, quilombolas, membros de comunidades tradicionais e técnicos de instituições públicas, que durante quatro anos (2018-2021), reuniram evidências e discutiram o importante papel desses povos e comunidades para o conhecimento da biodiversidade brasileira e sua importância para o país. Trata-se de obra fundamental para compreender a importância de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, que representam a megadiversa população tradicional que vive e atua em um país biologicamente também megadiverso.

“A visão eurocentrista nos séculos XV e XVI de que aqui era uma fronteira aberta habitada por indígenas, uma categoria inferior aos brancos europeus, foi responsável por um processo extremamente violento de ocupação, muitas vezes inviabilizado.”

A engenheira florestal Renata Evangelista de Oliveira, professora do Departamento de Desenvolvimento Rural da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), destaca que a contribuição de povos tradicionais para a ciência pode ser constatada de várias formas. “Primeiro pela grande riqueza de perfis, pois cada um desses povos tem uma relação diferenciada com a natureza; é o saber tradicional atrelado à diversidade. Segundo, porque eles mantêm uma relação respeitosa com os recursos naturais, que deve ser reconhecida e que muitas vezes falta no trabalho de cientistas”. Existe todo um saber tradicional associado a essa natureza que é base muitas vezes para a ciência e para a pesquisa. Renata de Oliveira destaca que muito do que sabemos atualmente de princípios ativos de compostos secundários vêm do conhecimento desses povos e comunidades. E acrescenta: “povos e comunidades tradicionais compreendem a dinâmica dos ecossistemas naturais, das espécies nativas na vegetação, sabem identificá-las e sabem o papel que elas possuem”. Segundo a professora, muitas vezes quando os pesquisadores vão a campo para estudar recursos naturais e espécies nativas, contratam mateiros para auxiliar na pesquisa sobre fauna e o comportamento das espécies – o que muitas vezes se torna base para os estudos.

Outro ponto importante é o saber de mulheres. Renata de Oliveira aponta que existem vários grupos de mulheres que têm uma identidade de gênero até no nome desses povos. “Por exemplo, as quebradeiras de coco babaçu, as apanhadoras de sempre viva, as catadoras de mangaba, as marisqueiras”. Ou seja, existe uma questão de gênero e de cuidado feminino atrelado ao extrativismo e ao manejo. Também com relação à domesticação das espécies e a práticas de extrativismo, a pesquisadora aponta que temos produtos que produzem toneladas por ano e provêm de extrativismo: “ninguém cultiva capim dourado, babaçu, mangaba. Existe uma contribuição importante inclusive na continuidade da população dessas espécies. Muitas vezes nem nos damos conta do quanto o extrativismo subsidia o saber científico”.

Emmanuélly Maria de Souza Fernandes, em sua dissertação de Mestrado em Agroecologia defendida em 2022, avaliou a sustentabilidade e a capacidade de fornecimento de serviços ecossistêmicos dos subsistemas de um lote gerido por uma comunidade tradicional de matriz africana, cujo manejo preza a convivência harmoniosa com o ambiente, valoriza a biodiversidade, a conservação e o uso racional dos recursos naturais. Emmanuélly Fernandes constatou que a riqueza de espécies cultivadas para os rituais e para alimentação, atrelada ao aspecto cultural dos povos de terreiro, possui uma riqueza muito grande, que confere um papel importante para a conservação da Agrobiodiversidade.

Engenheiro agrônomo de formação, Carlos Dayrell relata que ao longo de sua trajetória conheceu diversas experiências que evidenciam a importância da sabedoria indígena para a produção de alimentos. O pesquisador aponta que temos que aprender com os indígenas a desenvolver sistemas de produção e de consumo que respeitam a capacidade regenerativa dos ecossistemas. Ou seja, temos que reconhecer a importância desse conhecimento, essa sabedoria, para a nossa sobrevivência no futuro.

“Povos e comunidades tradicionais compreendem a dinâmica dos ecossistemas naturais, das espécies nativas na vegetação, sabem identificá-las e sabem o papel que elas possuem.” 

Muito do que sabemos de plantas alimentícias não convencionais (PANC), por exemplo, vem de comunidades tradicionais e não apenas das de matriz africana, como aponta Renata de Oliveira. Ela está orientando uma estudante do Pará, filha de parteira e benzedeira, que está estudando na comunidade em que vive, as plantas medicinais que são extraídas, cultivadas e utilizadas por mulheres que são erveiras, parteiras ou benzedeiras, fazendo um elo com a medicina tradicional. O objetivo é contribuir para a política nacional voltada para fitoterápicos, trazendo o conhecimento dessas mulheres para os postos de saúde.

Olívia Macedo Miranda de Medeiros, professora da Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT), aponta que os povos tradicionais possuem uma percepção do ambiente em que vivem que lhes permite construir narrativas (descrições de plantas, animais, rios, serras, etc.) que subsidiam a ciência. Em artigo que trata da história de vida de Lucelina Gomes dos Santos, a Dona Juscelina, uma liderança da Comunidade Quilombola Dona Juscelina localizada em Muricilândia, no Tocantins, Olívia Medeiros afirma que os saberes tradicionais são transmitidos e preservados no cotidiano da comunidade por meio da oralidade, da música, da escrita, das romarias, da arte como um todo, do artesanato com palha de coco babaçu e do conhecimento do percurso do rio Muricizal. Ela acrescenta que esses saberes tradicionais constituem parte de uma ecologia de saberes, na qual os conhecimentos se interconectam e a experiência sociobiodiversa, em suas singularidades, é essencial à ciência como escuta e como arcabouço para novas e avançadas proposições científicas.

Adriana de Souza de Lima, da comunidade caiçara da Jureia, em São Paulo, e presidente da União dos Moradores da Jureia (UMJ), aponta que as comunidades caiçaras aprenderam ao longo dos séculos com a Mata Atlântica. Isto porque dependem dela para sua reprodução social, cultural, econômica e a conhecem com muita profundidade, desde os seus ecossistemas associados, espécies e períodos de reprodução e toda dinâmica de vida existente nela, sendo capazes de enriquecê-la e aumentar a biodiversidade com suas práticas de manejo e governança. Caiçara, educadora popular, e representante na Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT), Adriana de Lima destaca que o modo de viver caiçara contribui para a preservação da Mata Atlântica porque possui um “sistema de uso simultâneo dos diferentes ambientes, sem desgastar ou super explorá-los”. E acrescenta, “por ser um modo de vida baseado no uso diversificado, utiliza a alternância para as práticas, de acordo com a época de cada cultura, respeitando a reprodução de cada espécie, conhecendo as espécies e o período certo de manejá-las”. (Figura 2)

Figura 2. Os povos tradicionais dependem da natureza para sua reprodução social, cultural, econômica e a conhecem com muita profundidade. (Foto: manufaturadeideias. Reprodução)

As ameaças

O Estado Brasileiro deve reconhecer os povos e comunidades tradicionais bem como seus territórios, regularizando a situação fundiária dos territórios coletivos. A partir do autorreconhecimento de cada um deles, deve criar um plano de salvaguarda do seu modo de viver com suas práticas ancestrais. Adriana de Lima aponta que o Estado brasileiro também precisa reparar os danos causados pelos projetos governamentais e da iniciativa privada, exigir restauração das comunidades que assim desejarem e o direito de retorno para as que foram expulsas de seus territórios. E acrescenta: “o processo de expropriação do território costeiro e marinho vem camuflando as várias formas de violência; querem nos expulsar dos lugares sagrados onde vivemos há séculos e querem nos ver longe das áreas costeiras e marinhas onde temos um modo de vida integrado. Por isso ameaçam nosso modo de viver, proíbem todas as práticas tradicionais e o direito de viver com dignidade. Essas ameaças vêm carregadas de racismo ambiental e violência psicológica”.

Liana Amin Lima da Silva e Isa Lunelli, autoras de um estudo apontando múltiplas ameaças a que estão submetidos diversos povos e comunidades tradicionais, descrevem inúmeros casos de violações do direito de Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI) no Brasil, seja por ação ou omissão do Estado, seja por meio da crescente tentativa de empresas privadas de realizarem os processos de CPLI no país no curso de procedimentos de licenciamento ambiental. Adriana de Lima relata que as comunidades caiçaras, por exemplo, enfrentam inúmeras ameaças, tanto na forma de grandes empreendimentos (portos, condomínios de luxo, estradas, aterro dos manguezais) como o turismo de massa, a pesca predatória, a proibição das roças e extrativismo, o fechamento das escolas nas comunidades e legislações ambientais preservacionistas, unidades de conservação proteção integral, projetos de cessão das águas da união para a iniciativa privada e a privatização dos territórios onde vivem as comunidades.

A rigor, ainda que o Brasil tenha ratificado em 2002 a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que consolida o Direito à CPLI para intervir nessas áreas, Liana Amin e Isa Lunelli apontam vários exemplos de violações ou equívocos que evidenciam  que o Estado brasileiro tem violado o dever e a obrigação de realizar essa consulta a povos e comunidades tradicionais afetados por grandes obras de infraestrutura. As autoras destacam o caso do licenciamento ambiental do empreendimento minerário na Volta Grande do Xingu (Projeto Volta Grande de mineração, da mineradora canadense Belo Sun Mining Ltda), cujo parecer aponta as irregularidades do processo de consulta.

“Ninguém cultiva capim dourado, babaçu, mangaba. Existe uma contribuição importante inclusive na continuidade da população dessas espécies. Muitas vezes nem nos damos conta de o quanto o extrativismo subsidia o saber científico.” 

Observatório de Protocolos Comunitários tem feito um levantamento de casos em todas as regiões do país, sendo que no primeiro levantamento de violações do direito à CPLI, em 2022, foram reunidos 82 casos. Liana Amin e Isa Lunelli destacam estudo citado que “esse equívoco na transferência do dever de consulta vem sendo praticado não apenas pelo Judiciário e acatado pelo Ministério Público Federal, como tem se caracterizado uma orientação da própria Secretaria de Estado do Meio Ambiente”. Sobre este assunto, Joaquim Shiraishi Neto e colaboradores, dentre eles Liana Amin Lima da Silva, publicaram em 2021 o texto “Quando o Estado não protege o seu povo”, que apresenta na forma de livro o parecer explicitando as inconsistências da Resolução n.º 11, de 26 de março de 2020, que contém as deliberações do Comitê de Desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (CDPEB) para execução da realocação de centenas de famílias quilombolas de Alcântara. Esta deliberação é uma das situações de violação do direito de do direito à CPLI. Os quilombolas do município de Alcântara, no Maranhão, vivenciam esta situação desde a década de 1980, quando se anunciou a instalação da base espacial do Centro de Lançamento de Alcântara, tem afetado a vida de centenas de quilombolas, sem que se conheça precisamente a profundidade dos impactos sobre as condições de reprodução física, social, cultural e étnica dessas comunidades. O caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos e, em abril deste ano, o governo brasileiro emitiu uma Declaração reconhecendo as violações cometidas e manifestando publicamente um pedido de desculpas às 152 comunidades remanescentes de quilombos de Alcântara.

Leonor Assad é engenheira agrônoma, doutora em Ciência do Solo, especialista em divulgação científica, professora titular aposentada da Universidade Federal de São Carlos, e apaixonada por trabalhar e escrever sobre Ciência.

PUBLICADO POR: Revista de Ciência & Cuiltura – Povos tradicionais e os biomas brasileiros – Revista (revistacienciaecultura.org.br)

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Povos tradicionais e os biomas brasileiros – Jornal da Ciência (jornaldaciencia.org.br)

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