MANAUS (AM) – Em 2020, o Ministério Público Federal classificou as ações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) em relação ao “Lote C”, também conhecido como “Lote Charlie” da rodovia BR-319, como “má-fé” e uma “afronta ao Judiciário”, devido ao órgão pautar a pavimentação do trecho mesmo depois de uma decisão judicial, na qual não cabia mais recurso, estabelecendo a necessidade de consulta dos povos afetados e de estudos ambientais.

Imagem aérea da BR-319 (Reprodução) – Republicação gratuita, desde que citada a fonte. AGÊNCIA CENARIUM

Esses fatos também foram apontados na Revista Science, um dos maiores e mais prestigiados periódicos científicos do mundo que, além de destacar esses fatos, apontou que a rodovia BR-319 é uma ponta de lança para o desmatamento na Amazônia.

Um estudo publicado pelo periódico científico Land Use Policy, em 2020, apontou que a rodovia impacta, diretamente, 63 Terras Indígenas (TIs) e outras cinco comunidades indígenas não demarcadas, totalizando mais de 18 mil indígenas impactados, além de uma população de isolados no município de Tapauá (distante 449 quilômetros da capital).

Nesta semana, a Procuradoria-Geral da República (PGR) cobrou do Governo Lula medidas mais contundentes para a proteção de populações indígenas isoladas, dada a extrema vulnerabilidade dessas populações à invasão de seus territórios, como vem ocorrendo em Tapauá, devido à expansão de ramais ilegais vindos da rodovia BR-319.

Conforme apontado por um estudo no periódico científico Environmental Conservation, editado pela Universidade de Cambridge, vários ramais ilegais já perpetram terras indígenas na área da rodovia BR-319. Além disso, de acordo com o mesmo estudo, existem registros de invasões com conivência de órgãos de fiscalização, como Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam), demonstrando total ausência de governança territorial.

Em um segundo estudo publicado pela Land Use Policy, foi demonstrado que a venda de áreas ocupadas ilegalmente às margens da rodovia variam de R$ 20 a R$ 3.000 o hectare. O mesmo estudo apontou que as taxas de desmatamento no “trecho do meio” da rodovia BR-319 também excedem em três vezes o observado em relação à média para todo o bioma amazônico. De acordo com uma nota técnica produzida pelo Observatório da Rodovia BR-319, os ramais ilegais já superam em quase seis vezes a extensão da rodovia.

Em meio à crise de saúde pública que assolou Manaus durante a pandemia de Covid-19, uma revelação alarmante surge sobre as ações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) em relação à rodovia BR-319. Um estudo publicado no Journal of Racial and Health Disparities aponta que o Dnit esteve envolvido em práticas de lobby, omitindo informações cruciais sobre a rota mais eficaz para o transporte de oxigênio.

Negligência

Segundo a pesquisa, o Dnit negligenciou a opção pelo Rio Madeira, que estava em seu período de melhor trafegabilidade. A escolha da BR-319 resultou em um prolongado tempo de transporte de 96 horas, enquanto a alternativa fluvial poderia ter entregue o oxigênio em Manaus em um intervalo de 30 a 56 horas, potencialmente salvando dezenas de vidas. O estudo também destaca que a opção pela rota rodoviária acarretou custos adicionais significativos, totalizando 1.5 milhões a mais em comparação com a alternativa pelo Rio Madeira.

O Dnit, por meio de suas redes sociais, divulgou a BR-319 como a melhor rota, sugerindo que a alternativa seria no contrafluxo do Rio Amazonas, partindo de Santarém. No entanto, como indicado pelo estudo, a verdade veio à tona, questionando a integridade das informações compartilhadas pelo Dnit. A pergunta que paira é: se o oxigênio estava em Porto Velho, por que o Dnit omitiu a opção pelo Rio Madeira?

Esses achados levantam sérias indagações sobre a transparência e a responsabilidade do Dnit, além de lançar luz sobre a necessidade de uma investigação mais aprofundada para esclarecer as circunstâncias e as motivações por trás dessas decisões durante um momento crucial para a saúde pública.

No dia 7 de dezembro, o coordenador do Grupo de Trabalho (GT) da BR-319, instituído pela Portaria N° 1.109/2023, do Ministério dos Transportes, enviou um convite para a apresentação de estudos que promovam a otimização da infraestrutura da rodovia BR-319 para o dia 11 de dezembro.

A rapidez do convite, em cima da hora, exclui a participação de comunidades afetadas. Isto também demonstra que o Ministério dos Transportes não está disposto a dialogar com os impactados pela rodovia BR-319 ou com os pesquisadores que tem demonstrado os inúmeros impactos causados pela rodovia. O histórico de ações do Dnit contra os afetados é evidente, como a realização de audiências públicas sobre os estudos ambientais no meio da pandemia de Covid-19.

Funai

Em 2022, funcionários da Funai também afirmaram falsamente em audiências públicas que a consulta dos povos indígenas havia sido realizada, sendo desmentidos tanto por pesquisadores como pelo promotor do Ministério Público Federal, Fernando Merloto. A falta de diálogo do Ministério dos Transportes, aliada a audiências públicas questionáveis e mentiras por parte da Funai, aponta para uma clara violação dos processos de licenciamento estabelecidos pela legislação brasileira.

No dia 18 de dezembro deste ano, foi incluído, de forma urgente, na agenda de discussões do plenário da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 4994/2023. Esse projeto de lei propôs o reconhecimento da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho) como “infraestrutura crítica essencial para a segurança nacional” e demanda a obtenção de licenciamento para a realização da obra, bem como a alocação imediata dos recursos para sua construção.

Além da ausência de justificativa técnica, o projeto passa por cima dos ministérios, da própria legislação do País e ainda tenta perverter fundos destinados à preservação da floresta, como o Fundo Amazônia, para realização da obra com maior impacto sobre a Amazônia. Em estudo publicado pela revista científica Die Erde, foi apontado que, se pavimentada, a rodovia BR-319 tende a levar a Amazônia ao ponto de não retorno. Este limiar de desmatamento causará o colapso de todo o bioma, como já apontado por diversos estudos científicos.

Pesquisas

Um estudo publicado no Environmental Monitoring and Assessment, que é editado pelo grupo Nature, foi apontado que a pavimentação da rodovia BR-319 aceleraria as mudanças climáticas, intensificando as secas na Amazônia central e causando a extinção de espécies que, hoje, são consideradas comuns e fora de perigo de extinção.

Pesquisa divulgada também este ano, na renomada Conservation Biology, um dos principais periódicos científicos da área da biologia da conservação, apontou que a pavimentação da rodovia BR-319 levaria ao colapso os serviços ecossistêmicos conhecidos como “rios voadores amazônicos”, fenômeno responsável pela maior parte das chuvas das regiões Sul e Sudeste do Brasil. O estudo destacou que isso afetaria espécies de outros biomas do Brasil, como o bioma da Mata Atlântica, além de afetar o abastecimento humano da região mais populosa do País e a agricultura do Sul e Sudeste.

Neste cenário, a comunidade científica clama por uma ação imediata do judiciário para revogar o PL4994/2023, a fim de preservar os serviços ecossistêmicos vitais. A manutenção da BR-319 tem beneficiado apenas grileiros e madeireiros ilegais, fortalecendo o crime organizado, conforme indicam estudos recentes na Land Use Policy e Environmental Conservation. A atuação do Ministério Público Federal é imperativa para reverter esse cenário sombrio.

Lucas Ferrante – Especial para Revista Cenarium Amazônia*

(*) Lucas Ferrante é biólogo, formado pela Universidade Federal de Alfenas (Unifal) e mestre e doutor em biologia pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Dentre suas diferentes áreas de pesquisa, Ferrante estuda a grilagem, invasão de terras na Amazônia, zoonoses e dinâmicas epidemiológicas.

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