Travessia da Laguna dos Patos – Parte I
Canção do CMPA
(Letra: Barbosa e Souza ‒ Música: Arão Lobo)
Somos espadas de um povo altaneiro,
Somos escudos de grande nação,
Em nossos passos marcham guerreiros
Avança a glória num pendão. […]
Infelizmente, meu treinamento para a Travessia da Margem Ocidental da Laguna dos Patos, em homenagem ao Centenário do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA), tanto nas Lagunas Litorâneas, como no “Rio” Guaíba e na represa da Granja do Valente, de propriedade da família Schiefelbein, em Bagé, foi bastante prejudicado por diversos problemas alheios à minha vontade.
Eu teria, desta feita, de enfrentar “inconstância tumultuária” da Laguna dos Patos sem estar gozando de minha condição física ideal.
Equipe de Apoio
O Coronel Pastl e o Comandante Norberto Weiberg, da bela e hospitaleira cidade de Canela, RS, embarcados no “Hagar” um pequeno e versátil veleiro “Day Sailer”, capaz de nos apoiar nas águas rasas e ultrapassar os extensos bancos de areia dos “Pontais” da Laguna sem a necessidade de longas desbordagens, nos aguardavam desde a véspera na Boca da Lagoa Pequena, proximidades da Ponta da Feitoria.
Graças ao Professor Paulo César Camargo Teixeira, Diretor da Escola Estadual de Ensino Médio Leopoldo Maieron – CAIC, de Bagé, minha querida parceira de aventuras Rosângela Maria de Vargas Schardosim pode me acompanhar na primeira perna da Travessia desde a Praia do Laranjal, em Pelotas até São Lourenço do Sul.
Partida de Bagé (11.04.2012)
Saímos de Bagé, eu e a Rosângela, depois do almoço, do dia 11 de abril, rumo à Praia do Laranjal, em Pelotas. Contatamos, pelo celular, o Professor Hélio Riche Bandeira, por volta das 16h00, na Praia do Laranjal e nos deslocamos até a Pousada em que ele estava. À tarde sem vento prenunciava uma largada tranquila e sem as dificuldades enfrentadas em setembro do ano passado. Depois de devidamente instalados recebemos a visita do Sr. Joel Ramos, um veterano e entusiasta canoísta da região com quem permanecemos conversando até tarde.
Partida da Praia do Laranjal (12.04.2012)
Os Lusíadas (Canto I, 43)
(Luís Vaz de Camões)
Tão brandamente os ventos os levavam,
Como quem o Céu tinha por amigo;
Sereno o ar e os tempos se mostravam
Sem nuvens, sem receio de perigo.
O promontório Prasso ([1]) já passavam
Na costa de Etiópia, nome antigo,
Quando o Mar, descobrindo, lhe mostrava
Novas ilhas, que em torno cerca e lava. […]
Partimos às 05h40 e aportamos, às 07h57, na Ponta da Feitoria (31°41’36,50” S / 52°02’22,18” O), depois de percorrer pouco mais de 15 km a aproximadamente 7,2 km/h. Desta vez os ventos suaves de popa nos permitiram atacar o primeiro ponto mantendo uma trajetória bastante retilínea. Contatamos a equipe de apoio e partimos depois de descansar uns 30 minutos. Contornando a Ponta da Feitoria avistamos acampamentos de pescadores de camarão.
A salinidade vinda do oceano, através da Barra de Rio Grande, alcançou São Lourenço graças à falta de chuvas na Bacia da Laguna dos Patos. O nível do Mar de Dentro bastante baixo favorecera o desenvolvimento do camarão e produzira uma safra abundante.
Aportamos às 09h35, sob as belas raízes de uma enorme figueira próxima às ruínas da centenária sede da Estância Soteia (31°37’52,31” S / 52°00’57,38” O). Este ano, ao contrário do ano passado, a sujeira gerada pelo desleixo dos pescadores que acampavam nas cercanias da sede da Estância maculavam a centenária construção.
Já estávamos partindo quando avistamos a equipe de apoio, conversamos com os amigos reiniciamos nossa jornada às 10h40 rumo ao Arroio Grande onde fizemos uma parada para o almoço antes de rumarmos para São Lourenço do Sul onde aportamos às 16h02.
São Lourenço do Sul
Na “Terra de Todas as Paisagens”, ficamos hospedados na Pousada da Laguna Apart Hotel administrada, com esmero, pelo Sr. Alberto Furlanetto, onde consegui me preparar para a próxima empreitada.
Aproveitamos o bom tempo da sexta-feira, 13.04.2012, para conhecer o belo Município e sua história visitando a Fazenda do Sobrado, Boqueirão, São João da Reserva e a Coxilha do Barão, onde visitamos a casa de Jacob Rheingantz.
Jacob Rheingantz
Jacob Rheingantz, comerciante e administrador alemão, nasceu no dia 13.08.1817 em Sponheim, Hamburgo. Filho de Johann Wilhelm Rheingantz e Anna Maria Kiltz, dedicou-se inicialmente ao comercio e, em 1839, partiu para a França, onde trabalhou como produtor de Champagne. Em 1840, foi para os EUA onde permaneceu até 1843, quando veio para o Rio Grande do Sul, estabelecendo-se em Rio Grande, como empregado na casa comercial de Guilherme Ziegenbein. Em 09.07.1848, casou-se com Maria Carolina Fella, passando a residir em Pelotas. Em 1856, comprou terras devolutas na Serra de Tapes, com o objetivo de fundar uma colônia. Fundou a Colônia São Lourenço, em 1958, em sociedade com José Antônio de Oliveira Guimarães. (COARACY)
Na Pátria-mãe, a Dúvida, o Sonho
No Mar, a Vela, a Incerteza, a Dor, a Saudade.
Em São Lourenço do Sul, a Fé,
a Esperança, a Coragem, a Vida.
A primeira leva de imigrantes partiu de Hamburgo com 88 pessoas, vindos no navio holandês “Twee Vrienden”. Mudou-se com a família para a própria colônia onde era a autoridade máxima. No ano de sua morte sua colônia era um sucesso, já tinha um total de 52 mil hectares e mais de 6.000 moradores, além de 16 escolas particulares […]. (COARACY)
Partida de São Lourenço (14.04.2012)
Às 06h00, partimos confiantes para a segunda etapa de nossa travessia na Laguna dos Patos rumo à Fazenda Flor da Praia. A suave brisa permitia que aproássemos diretamente para a Ponta do Quilombo (31°20’00,83” S / 51°51’20,96” O) onde aportamos às 07h40 e fizemos uma parada de vinte minutos. A partir do Quilombo, enfrentando ventos de 20 km/h vindos de SE, rumamos diretamente para a Foz do Camaquã onde aportamos em um bosque de eucaliptos (31°16’44” S / 51°44’16” O).
A Procela
(Fausta Nogueira Pacheco)
Sucumbido pela tempestade,
Entre ondas gigantescas em cega fúria,
Debate-se contra a força atroz dos ventos
O barco frágil nas águas desses mares,
A terrível procela destemida avança,
Arrebentando suas ondas no convés.
A tripulação vê o horror se aproximando,
E de joelhos prostrada clama aos céus!
Senhor, piedade pela dura sorte,
Que o destino deu a todos nós,
Faça baixar as águas revoltas,
E que o vento enfurecido suba aos céus!
Os ventos aumentaram significativamente, a temperatura despencou e uma chuva gelada começou a cair antes de partirmos. Partimos para a Ponta do Vitoriano e tivemos de fazer uma parada intermediária, para nos aquecermos, em um pequeno bosque próximo a um captador de água (31°16’11” S / 51°38’40” O) depois de remar quase 10 km. Havíamos enfrentando ventos de través, vindos de Sudeste, de 30 Km/h com rajadas de 50 Km/h e ondas de até 1,5 metro.
Depois desta parada resolvemos remar diretamente para a sede da Fazenda Flor da Praia (31°08’25,59” S / 51°37’06,85” O). As enormes ondas nos forçavam a fugir da rebentação e a apenas 1,7 km de distância de nosso objetivo me distraí, por um momento, e permiti que uma enorme onda rebentasse sobre o indomável Cabo Horn virando-o. Apenas um pequeno e gelado susto já que eu estava próximo à margem, foi com muito esforço que arrastei o pesado caiaque até a praia e retirei a água que invadira o seu “cockpit” até a altura do convés superior. A ventania assolou não só os Mares de Dentro, mas também as Lagoas litorâneas, o Rio Guaíba e outros mananciais gaúchos provocando alguns desastres como o noticiado pelo “Jornal O SUL” na edição do dia seguinte:
Jornal O SUL, 15.04.2012
Velejadores são resgatados no Guaíba
Quatro velejadores foram resgatados ontem após acidente com um barco no Rio Guaíba, em Porto Alegre. A embarcação virou com forte vento. O grupo ficou agarrado nos pilares da ponte. Após este salvamento, os bombeiros foram ao Arroio das Garças, em Canoas, atender outra ocorrência de barco que virou. Ninguém ficou ferido.
Aportei na praia da Fazenda Flor da Praia às 15h30 e procurei o capataz que permitiu que acantonássemos em um dos galpões da Fazenda. Tivemos de deixar a luz acesa à noite, pois o local estava infestado de ratos.
Partida da Fazenda Flor da Praia (15.04.2012)
O Sol reinava soberano e apenas uma leve brisa acariciava levemente a superfície da Laguna, condições bastante diferentes do dia anterior. Iniciamos nossa remada, às 08h05, até o Pontal Dona Maria (31°05’16’’ S / 51°26’19’’ O) onde aportamos na boca do Canal de acesso à Lagoa do Graxaim, às 11h20. As figueiras e pequenos arbustos “bioindicavam” a direção predominante dos ventos oriundos de E e NE que açoitam sistematicamente a vegetação nativa. Do Pontal Dona Maria aproamos, às 11h40, diretamente para o conjunto de figueiras que ostentavam grinaldas de bromélias e orquídeas (31°01’35,98” S / 51°29’09,89” O) e cujas imagens eu não pudera materializar, no ano passado, tendo em vista que minha máquina fotográfica emperrara.
Depois de fotografar de todos os ângulos possíveis daquela paisagem fantástica partimos para o monumento que “homenageia” o General Francisco Pedro de Abreu (31°00’10’’ S / 51°29’35’’ O), onde chegamos às 14h20. Em 16.04.1839, nas proximidades deste local, o General Francisco Pedro de Abreu desembarcou as Tropas Imperiais para o malogrado ataque ao estaleiro Farroupilha na Barra do Camaquã. Independentemente do alinhamento ideológico daqueles bravos, o CTG Camaquã, entidades tradicionalistas e o povo de Arambaré reverenciam suas memórias. O jornalista e cientista político Gianni Carta, no seu livro “Garibaldi na América do Sul: O mito do Gaúcho” mostra como dois jornalistas italianos, Luigi Rossetti, que vivia no Brasil, e Giovanni Battista Cuneo, radicado no Uruguai, usaram o jornalismo e literatura como armas políticas construindo a imagem do “herói de dois mundos”. Rossetti e Cuneo empenharam-se em forjar a figura excelsa deste guapo herói gaúcho, uruuaio e italiano que lutou bravamente pela recuperação de uma Pátria perdida, a sua querida Itália e da construção de outras, um homem que transcendendo sua vida terrena ganhou notoriedade eterna. Rossetti e Cuneo, ao transformarem Giuseppe Garibaldi em uma lenda, estavam divulgando e manifestando seu apoio, na verdade, à doutrina política de Giuseppe Mazzini.
A promoção universal, no entanto, do “herói de dois mundos” aconteceu graças ao jornalista Cuneo que enviava seus artigos para Mazzini, exilado em Londres, que os reescrevia em francês, inglês e italiano e os editava em jornais de diversos países. Vejamos o que relata Gianni Carta:
O Povo e a Promoção de Garibaldi
Rossetti ([2]) tinha de ser discreto ao promover Garibaldi em “O Povo”. Publicar editoriais não assinados já era uma prática comum no jornalismo, mas Rossetti a expandiu para a veiculação de pequenas notas sobre Garibaldi. Embora isso o impedisse de publicar artigos maiores sobre seu compatriota ‒ o que exigiria uma assinatura ‒, tal prática o protegia, impedindo que ele, Rossetti, fosse acusado de parcialidade. Aparentemente ele já percebia uma animosidade contra o estrangeiro que era, por parte dos grandes e ricos proprietários locais, e isso se confirmaria mais tarde. Em uma carta para Cuneo ([3]), Rossetti queixou-se:
O jornal pertence ao governo e, portanto, tudo deve parecer produzido a partir de seu laboratório.
A Marinha rio-grandense, com apenas dois lanchões armados, capitaneados por Garibaldi, tinha um porte muito menor do que a do Brasil, que era a mais poderosa na América do Sul, contando com 67 navios de guerra. Garibaldi conseguiu fazer ataques imaginativos ‒ mas limitados ‒ contra navios imperiais ou mercantes. A maioria desses ataques teve por cenário a Laguna dos Patos, que permite o acesso ao Atlântico através do canal entre as cidades de Rio Grande e São José do Norte. Entretanto, os navios imperiais estacionados nos portos de ambas as cidades impediam o acesso dos rio-grandenses ao Oceano.
Mas um ataque não poderia ser considerado de sucesso a menos que ganhasse alguma forma de letra impressa e seu líder fosse glorificado. Mesmo sucessos menores poderiam ter um impacto negativo sobre os imperiais, ao mesmo tempo que promoviam confiança entre os republicanos. Dessa forma, a primeira tática de Rossetti para promover seu compatriota foi contar repetidamente uma mesma história para fixar o nome de Garibaldi na mente dos leitores de “O Povo”; em quatro edições do jornal ele publicou pequenas notas sobre o bem-sucedido ataque de Garibaldi a um indefeso navio mercante brasileiro chamado Mineira.
De nenhuma maneira este ataque poderia ser considerado um feito naval maior. Mas Rossetti se esmerava para influenciar os leitores, publicando, a partir de setembro de 1838, umas poucas linhas sobre o fato de que dois navios armados, sob o comando do Tenente-coronel “Jozé” Garibaldi, tinham apresado um mês atrás aquele navio mercante. Em outro número, ele listou a carga do Mineira.
As notas eram concisas, mas Rossetti publicou ainda informes sobre o apresamento do navio em mais duas edições. A primeira grande reportagem dedicada aos feitos de Garibaldi foi estampada com destaque na primeira página de “O Povo”, em 22.05.1839, oito meses depois da fundação do jornal. Ela versava, na verdade, sobre uma batalha em terra firme, com a assinatura de Garibaldi como “Capitão-tenente, comandante da Esquadrilha da República”. Em poucas palavras que antecediam a matéria principal, os leitores tomavam conhecimento de uma informação de fundo sobre como as forças republicanas tinham enfrentado os “mercenários do governo brasileiro” no dia 17.04.1839, um mês antes da publicação. O enfrentamento dera-se em um estaleiro provisório dos insurgentes, na margem do Rio Camaquã, um dos afluentes da Laguna dos Patos. Garibaldi escreveu:
O inimigo apareceu, de repente, quase a meio tiro de Pistola, saindo de um mato que flanqueia o quartel [estaleiro], no qual atavam então onze homens somente; o que posto, depois de vivo fogo por espaço de algumas horas, essa horda de escravos a serviço de assassinos se retiram, deixando no Campo seis mortos e levando muitos feridos, entre os quais o mesmo Francisco Pedro [Moringue], baleado no peito e em uma mão. Nós temos seis homens levemente feridos, e lastimamos a morte de bom Camarada.
Garibaldi estimou as forças inimigas em “mais de uma centena”, com infantes e cavaleiros. E acrescentou que muitos dos homens da guarnição estavam realizando tarefas em outros locais, e não foi possível reuni-los no calor da hora,
de modo que toda a glória cabe aos onze bravos, por mim antes mencionados, cujos nomes levarei ao conhecimento do governo para que sejam devidamente recompensados.
É importante assinalar que por “escravos” Garibaldi [ou Rossetti] se referia aos soldados do Império Brasileiro, não a negros cativos. Na verdade, muitos dos soldados imperiais engajados neste combate do Rio Camaquã eram austríacos. Eram, portanto, mercenários brancos que Garibaldi tratava como “escravos e assassinos” porque voluntariamente vendiam seus serviços a um império opressor. Garibaldi [assim como Rossetti e Cuneo] costumava fazer tais comentários sobre os soldados austríacos ou franceses por causa de sua posição de forças invasoras e de ocupação da Itália.
Rossetti certamente editou o relato de Garibaldi e é provável que o tenha reescrito em parte. Naquele momento Rossetti já vivia no Brasil há mais de uma década e tinha maior fluência em português do que Garibaldi, o qual passara a metade de seus dois anos na América do Sul em cativeiro, na Argentina, onde aprendera o espanhol. Em outras palavras, Garibaldi não teria condições de escrever um relato completo em português. É possível até que o tenha escrito em italiano, mas mesmo assim Rossetti teria de, além de traduzi-lo, editá-lo, pois era ele o jornalista profissional.
Posteriormente Cuneo escreveu que onze italianos tinham lutado no Camaquã, e Rossetti fora um deles. Esse é um exemplo transparente de “floreio”. Cuneo provavelmente sabia, a partir de uma carta recebida de Rossetti, que seu camarada não lutara no Camaquã. Rossetti contou a Cuneo que tentara se juntar a Garibaldi no estaleiro, mas a intensa troca de tiros o forçou a escapar a nado pelo Rio. Pode ser que Cuneo tenha entendido mal o relato de Rossetti. Mas pode ser também que aquele queria ir além dos fatos para apresentar este como um valoroso italiano, leal a Garibaldi. Como de costume, Cuneo exaltava o valor dos italianos para mostrá-los desejosos de pôr a vida em risco na luta pela liberdade na América do Sul. Dessa forma ele podia reforçar e promover um senso de “italianità” por meio das histórias que escrevia e publicava. O jornalista queria descrever para outros italianos o que poderia acontecer se eles se juntassem à luta para libertar seu país da monarquia, do papado e dos ocupantes estrangeiros. A mensagem era clara: sobrevivessem ou morressem, eles seriam os vencedores. Como Mazzini ([4]) argumentava em seus artigos de jornal, morrer pela Itália deveria ser visto como algo honorável, abrindo o caminho para futuras insurreições.
Na “Biografia”, Cuneo, como já observado antes, descreveu todos os combatentes ao lado de Garibaldi como italianos, embora ele mesmo tivesse condições de saber que isso não era verdade. Por exemplo, no Camaquã estava o escravo liberto Procópio – foi ele quem disparou os tiros que feriram o comandante dos imperiais, e por tabela provocou a retirada das tropas inimigas, embora eles contassem com um número muito mais elevado de soldados.
Cuneo publicou seu livro mais de dez anos depois daquela batalha, tendo, portanto, tempo suficiente para se inteirar da participação de Procópio. Diga-se, porém, a bem dele, que a “Biografia” foi escrita com base em suas notas, artigos e cartas, e em sua carta sobre aquele enfrentamento no Camaquã Rossetti de fato citara apenas o nome dos poucos italianos que nele tomaram parte. A menos que tivesse acesso a outras informações ao longo da década após o embate, Cuneo pode ter simplesmente presumido que todos os combatentes eram de fato italianos.
Mas a “Biografia” contém outras discrepâncias. Segundo Cuneo, o número dos inimigos a atacar Garibaldi no Camaquã era 120, diante da afirmação do próprio Garibaldi em “O Povo” de que eram “mais de uma centena”. De onde Cuneo tirou um número tão preciso? Além disso, o colega baseado em Montevidéu nunca deu qualquer cifra sobre as baixas.
Em seu livro de 1860, Alexandre Dumas afirmou que oito republicanos morreram [e não seis como havia dito Garibaldi] e cinco ficaram feridos [e não os seis apontados pelo herói italiano].
Pode-se admitir com segurança que propagandistas como Cuneo e Rossetti – e também outros com interesses próprios muito fortes, como era o caso do próprio Garibaldi – faziam “ajustes” factuais e numéricos para moldar melhor uma imagem heroica do comandante naval. Além disso, em geral jornalistas preferem números redondos.
Mas, para além das distorções numéricas ou sobre a nacionalidade dos combatentes, o relato do enfrentamento no Camaquã é preciso quando afirma que o comandante dos imperiais foi ferido e que isso determinou a fuga dos atacantes.
Levando em conta a importância do acontecimento como fonte de propaganda, Rossetti deu destaque à rivalidade entre Garibaldi e o comandante inimigo. Tratava-se do Tenente-coronel Francisco Pedro de Abreu, também conhecido como Moringue, por causa do formato de sua cabeça e de suas enormes orelhas. Rossetti o descreveu como um eficiente tático em luta de guerrilhas. Em uma de suas reportagens em “O Povo”, Rossetti o chamou de “notório”. Ao ressaltar o valor de Moringue, Rossetti favorecia o de Garibaldi e de seus homens. (CARTA)
Continuamos nossa jornada rumo a Arambaré. Navegamos bem próximo à bela praia da Costa Doce, entramos no Arroio Velhaco e aportamos no Clube Náutico (30°54’38,01” S / 51°29’47,50” O) onde estacionamos nossos caiaques e fomos procurar abrigo no Destacamento da Brigada Militar comandado pelo Sargento PM Juliano Gajo.
Capital das Figueiras (16.04.2012)
No dia seguinte o Sargento PM Juliano nos proporcionou um pequeno “tour” pela cidade e depois nos levou até Santa Rita do Sul onde visitamos a “Arrozeira Camaquense”, fundada em 10.06.1948. Ocupando uma posição de destaque, havia um antigo gerador a lenha, que na época, proporcionava energia suficiente para alimentar o complexo industrial e a Vila.
Depois de Santa Rita fomos conhecer a Fazenda da Quinta, situada, hoje, no Distrito da Santa Rita do Sul, Município de Arambaré de propriedade do Coronel Silvio Luiz Pereira da Silva ex-Prefeito de Camaquã (1956 – 1959).
Arrozeira Camaquense
Silvio Luís, Francisco Luís e Lauro Azambuja fundaram a Arrozeira Camaquense, SA, em 10.06.1948, com participação de outros associados, de Barra do Ribeiro e Tapes. A sociedade adotou o processo de arrendamento de suas terras. O sistema de arrendamento da empresa de secagem e beneficiamento do arroz fez crescer o número de produtores de arroz, aumentando a mão-de-obra onde predominava o trabalho braçal.
No final da década de 1960, a empresa passou a ser propriedade exclusiva de um dos acionistas. Desde então se iniciou o declínio do empreendimento e de Santa Rita do Sul. A Arrozeira foi comprada por José Cândido Godói Neto, grande acionista da empresa que comprou as ações dos demais sócios. Após a Revolução Redentora de 1964 o governo investiu em uma política agrícola que priorizava a produção e produtividade.
Adotou-se um sistema de créditos e subsídios fomentando a pesquisa, a assistência técnica, a adoção de tecnologia, o que aumentou intensamente a utilização de máquinas e insumos de origem industrial. No final da década de 1980, com a adoção de uma caótica política agrícola, os proprietários de terras voltaram a vender o patrimônio fundiário. Apenas uma pequena quantidade de produtores conseguiu manter-se na condição de rizicultor. O maior empregador local passou a ser a indústria de beneficiamento de arroz, mas como não conseguia absorver toda a mão-de-obra da atividade agrícola, os trabalhadores da Vila migraram em massa.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.12.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CARTA, Gianni. Garibaldi na América do Sul: O Mito do Gaúcho ‒ Brasil ‒ São Paulo, SP – Editora ‒ Boitempo, 2013.
COARACY, Vivaldo. A Colônia de São Lourenço e seu Fundador – Jacob Rheingantz – Brasil ‒ São Paulo, SP ‒ Oficinas Gráficas Saraiva, 1957.
MAZZINI, Giuseppe. Deveres do Homem – Brasil – Rio de Janeiro – W. M. Jackson Inc., 1950.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
- E-mail: [email protected].
[1] Prasso: Cabo da costa Oriental da África (Moçambique), Cabo das Correntes ou ainda Cabo Delgado. (Hiram Reis)
[2] Luigi Rossetti: jornalista e intelectual italiano cursara a faculdade de Direito na Itália. Era carbonário, como este último, sendo vinculados a uma verdadeira Internacional Republicana, a Jovem Itália, comandada por Giuseppe Mazzini desde Londres. (Hiram Reis)
[3] Giovanni Battista Cuneo: marinheiro de profissão, destacou-se posteriormente como jornalista, político, escritor e revolucionário italiano, com passagem pela Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul na ocasião em que se formavam as repúblicas do sul da América. Aderiu ao movimento Jovem Itália e em 1833 conheceu a Giuseppe Garibaldi em Taganrog, no Sul do Mar Negro, a quem apresentou a organização. Mais tarde se encarregou de difundir as ideias de Giuseppe Mazzini entre os imigrantes italianos na Argentina. (Hiram Reis)
[4] Giuseppe Mazzini: político, irmão maçom, membro da Carbonária e revolucionário da unificação italiana. Mazzini defendia ardorosamente a unidade e a independência italiana, que deveria ser conquistada pelo povo na forma de uma democracia republicana. Mazzini na introdução de seu livro “Deveres do Homem” faz uma convocação apaixonada “Aos Trabalhadores Italianos”:
A vós, filhos e filhas do povo, dedico este livrinho, no qual enuncio os princípios em nome e por virtude dos quais cumprireis, se quiserdes, a vossa missão na Itália: missão de progresso republicano para todos e de emancipação para vós. Amei-vos desde os meus primeiros anos. Os instintos republicanos de minha mãe ensinaram-me a procurar no meu semelhante o homem, não o rico ou o poderoso; e a insciente e simples virtude paterna habituou-me a admirar, mais do que a afetada e presunçosa semi-ciência, a virtude de sacrifício, tácita e inadvertida, que tantas vezes aparece em vós. Mais tarde, deduzi da nossa história como a verdadeira vida da Itália é a vida do povo, e como o trabalho lento dos séculos tendeu sempre a preparar, em meio ao surto das diversas raças e às mutações superficiais e passageiras das usurpações e das conquistas, a grande Unidade democrática Nacional. E então, trinta anos atrás, entreguei-me a vós. Vi que a Pátria Una, dos iguais e dos livres, não sairia de uma aristocracia que jamais teve entre nós uma vida coletiva e iniciadora, nem da Monarquia que se insinuou, no século XVI, sobre as pegadas do estrangeiro e sem missão própria, ‒ entre nós, sem pensamento de Unidade ou de emancipação, ‒ mas somente do povo da Itália, ‒ e assim o disse. Vi que era preciso subtrair-vos ao jugo do salário e, a pouco e pouco, com a livre associação, fazer o Trabalho senhor do solo e dos capitais da Itália ‒ e, antes que o socialismo das seitas francesas viesse turvar a questão, eu o disse. Vi que a Itália, qual nossas almas a apresentam, só existiria quando uma Lei Moral, reconhecida e superior a todos os que se colocam como intermediários entre Deus e o povo, tivesse derrubado a base de toda autoridade tirânica, o Papado, ‒ e assim o disse. Jamais, por loucas acusações e calúnias e derrisões que me foram lançadas, eu vos traí e à vossa causa, nem desertei a bandeira do futuro. Restam-me poucos anos de vida, mas o estreito pacto que esses poucos comigo firmaram não será violado por coisa alguma que suceda até o meu último dia, e talvez lhe sobreviva. (MAZZINI)
Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias