Travessia da Laguna dos Patos – Parte III
Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck descrevem, com detalhes, “A Odisseia de Garibaldi no Capivari”:
Escreve Lindolfo Collor:
Na margem Oriental da Lagoa, num fundo de saco chamado “Roça Velha”, não muito acima do Itapuã, desemboca o pequeno Rio Capivari, cujas cabeceiras se encontram numas águas de pouco fundo que circundam os contrafortes Meridionais da Serra Geral. Foi nessas paragens de difícil acesso que se embrenharam os corsários, perseguidos de perto pelos legalistas,
Encurralado na Lagoa do Casamento, Garibaldi remonta o pequeno Rio Capivari, cujas águas, com profundidade máxima de 4,5 metros e de largura menor do que isso, até onde permitia o reduzido calado dos lanchões.
Enquanto isso, Greenfell comunicava ao Presidente da Província que os rebeldes haviam abandonado as suas posições do ltapuã e da Ponta do Junco e que seguira atrás deles, com a barca “Cassiopea”, “examinando com cuidado toda a costa do Capivari, lugar onde, constava-me, os outros lanchões inimigos estavam reunidos. Estando o mato ocupado por infantaria inimiga, vi que nada podia fazer sem força da terra”.
Greenfell dá ordens ao Primeiro-Tenente José Ricardo Coelho de Abreu para bloquear a entrada do Rio Capivari e retorna a Porto Alegre. Precisa preparar a expedição para destruir o estaleiro em Camaquã – a base dos corsários. “Os Engarrafados do Capivari Ficavam Para Depois…”
Os legalistas mantinham guarda à Barra do Capivari, supondo que a rendição era somente uma questão de dias.
Narra Lindolfo Collor:
As canhoneiras do Tenente Abreu, cautelosas, guardavam os acessos à enseada da Roça Velha.
Garibaldi sabe que a Foz acha-se sob vigilância das forças imperiais. Diz ele em suas Memórias:
Com efeito, na margem Meridional localizava-se a cidade-fortaleza de Rio Grande e, na margem Setentrional, São José do Norte, cidade menor, mas também fortificada, assim como Porto Alegre, encontravam-se ainda sob o poder imperial e faziam dele, o senhor da entrada e da saída do Lago. O Império controlava somente esses três pontos, os quais, no entanto, bastavam-lhe amplamente.
Prossegue Garibaldi:
Propus a construção de duas carretas –– grandes o suficiente e resistentes o bastante para que se colocasse um lanchão sobre cada uma delas – e a atrelagem de bois e de cavalos na quantidade necessária para puxá-las. Minha proposta foi aceita e do Capivari ao Tramandaí, eu fui incumbido de levá-la a efeito.
Enquanto isso, o Cel David Canabarro descia em direção a Mostardas, para examinar o terreno mais favorável para a travessia e, ao mesmo tempo, requisitava o gado disponível nos campos, para escolher duzentos bois, no mínimo, em condições de serem aproveitados. Outros trabalhadores abatiam as árvores e roçavam os matos das margens do Capivari, com seus machados e facões. Procuravam nivelar a ribanceira,
um extenso plano inclinado, pelo qual seriam levadas à água, as pesadas rodas que se estavam construindo em fazenda próxima, sob as vistas do hábil carpinteiro Joaquim de Abreu.
Mais difícil do que traçar o itinerário do Capivari ao Tramandaí é chegar-se à conclusão referente a carretas que transportaram os lanchões. Wolfgang Ludwig Rauls, o maior escritor e pesquisador sobre Anita Garibaldi no Brasil, nos dá uma análise mais detalhada do transporte dos barcos especialmente das carretas utilizadas por Garibaldi, nesta épica empreitada, como ele se refere.
Mandei construir oito enormes rodas de uma solidez a toda prova, com cubos proporcionados ao peso que deviam suportar. Numa das extremidades da Lagoa, que é oposta a Rio Grande, a Noroeste, existe no fundo de uma ravina um pequeno Ribeiro, que corre da Lagoa dos Patos para o Lago de Tramandaí, ao qual tratávamos de levar os dois lanchões.
Fiz descer a esta ravina, imergindo-o o mais possível, um dos nossos carros; depois levantamos o lanchão até que repousasse sobre o duplo-eixo.
Cem bois mansos foram atrelados aos varais mediante nossas cordas mais fortes, e vi então, com prazer, que não posso exprimir, o maior de nossos lanchões caminhar como se fosse um fardo qualquer. O segundo carro desceu por sua vez, foi carregado como o primeiro e deslocou-se com igual êxito. Chegados à margem do Lago Tramandaí, foram os lanchões deitados à água do mesmo modo por que tinham sido embarcados.
Garibaldi penetrou pela Foz do Capivari, remontou o Arroio duas léguas para fugir à vigilância dos imperiais, abrigando-se por detrás de uma volta propícia e mascarando os mastros por meio de folhagens. Foi daí que começou o percurso terrestre; primeiro através de estrada aberta no mato, depois por vasta superfície quase nua de pastios, quase toda coberta de areias que, da bacia interna, se estende até o Tramandaí, a Barra nunca antes praticada, por onde os Farrapos pretendiam ganhar o Atlântico. Desmanchadas logo as grosseiras e agora inúteis rodas, os navios foram trazidos à beira mais cômoda para o efeito. Procedeu-se em seguida à remontagem da artilharia, recarga das praças-de-arma, paióis e porões; bem como a recondução dos minguados meios da equipagem aos reduzidos camarotes.
Wolfgang Ludwig Rau prossegue a análise das descrições e deduz o seguinte:
- Cada carreta tinha quatro rodas, pois se mencionam oito grandes rodas e duas carretas.
- As rodas eram de dimensões muito maiores que as comuns na época e deve-se pensar que as rodas normais naqueles tempos tinham por volta de dois metros de diâmetro.
- Em 1839, não era conhecido o sistema de prato e disco para fazer girar veículos de quatro rodas, e o sistema de eixo e pino não teria sido eficaz para a enorme carga que representavam os barcos. Não existem dúvidas que Garibaldi encontrou a mais feliz solução que poderia obter naquela época e com os meios ao seu alcance; aproximou os eixos de madeira para que fosse relativamente fácil fazer curvas. Isto se deduz do termo “duplo-eixo”, pois se referisse a dois eixos separadamente, usaria a expressão “dois eixos”. A denominação “duplo-eixo” parece indicar que ele queria usar um único eixo, mas que, devido ao peso, se viu obrigado a colocar dois.
- A estrutura da carreta estava abaixo dos eixos, pois se fala que o lanchão se apoiava no duplo-eixo.
- Deduz-se também que a carreta não tinha estrutura de suporte para o barco, e que a estrutura deste era suficientemente forte para resistir sem deformações ao transporte, sujeitado somente ao eixo duplo.
Independentemente das considerações anteriores, analisa Rau, deve-se ter em conta que Garibaldi não dispunha de ferro, nem de uma indústria avançada, pois as cidades onde poderia encontrar esses elementos estavam em mãos imperiais. Conclui-se, então, que os sistemas de eixos e cubos fossem de madeira de lei, lubrificada com graxa animal. Por estes motivos, o anel periférico das rodas estava recoberto por couro cru.
Para a dedução das dimensões, partiu-se das seguintes considerações básicas:
a) que o peso do lanchão vazio, mais os mastros, eram de 25 toneladas;
b) que o peso da carreta e rodas eram de oito toneladas;
c) que existiu uma margem de segurança de 7 toneladas (Garibaldi fala da grande resistência das rodas).
Somando os pesos e dividindo o total pelas quatro rodas de cada carreta, encontramos que cada uma deveria ser calculada para suportar 10 toneladas. A carga máxima para um sistema eixo-bucha de madeira de lei, com lubrificação de graxa animal, não deve passar de 4 quilos por centímetro quadrado. Supondo que o eixo tinha um diâmetro de 35 cm e que o cubo da roda tinha 80 cm de largura, teremos uma superfície de 2.800 cm2 para resistir a uma carga de 10.000 kg, do que resultam 3,51 kg/cm2 – valor perfeitamente aceitável para o sistema. A massa da roda se chama de “Cubo”, embora seja cilíndrica, porque a peça de madeira da qual se parte é precisamente um cubo. Logo, se a largura do cubo era de 80 cm, também seu diâmetro deveria ser de 80 cm.
A descrição das carretas da época nos ensina que o diâmetro das rodas era quatro vezes o diâmetro do cubo, e que a largura do anel periférico da roda devia ser igual à metade do diâmetro do cubo, bem como tinham as rodas um número ímpar de raios, porque se supunha que os raios diametralmente opostos podiam rachar o cubo.
Daí deduzimos que as rodas da carreta deveriam ter 3,20 m de diâmetro, e uma largura do anel periférico de 40 cm. Feito um estudo de verificação de tensões, no anel e nos raios, determinou-se que o número de raios deveria ser de 11.
Como diz Rau, os anéis periféricos estavam cobertos de couro cru. Este, se colocava molhado e cozido com tentos em três capas: a primeira era circunferencial, e uma vez seca, era engraxada, e depois coberta com outras duas capas de couro, dispostas em diagonal, que davam um aspecto característico às rodas.
Supondo que o “Seival” tivesse 5 metros de boca ([1]), podemos dizer que o eixo tinha um comprimento de 5,40 m com 35 cm de diâmetro. Um eixo com estas dimensões em madeira de lei satisfaz as solicitações a que está submetido. Garibaldi diz em seu relato que o lanchão ia simplesmente apoiado no duplo-eixo. Portanto, sobre os mesmos eixos se fixavam quatro peças com tarugos de madeira de lei, que serviam de cama ao barco. A fixação das rodas nos eixos, para que estas pudessem girar sem sair fora, foi a clássica, com cunhas possantes que atravessavam o eixo.
Garibaldi fala de “Varais”, quer dizer mais de um, onde estavam presos os bois. Cita também a quantidade de bois: cem para cada carreta [50 juntas].
O problema que se apresenta é saber como estavam distribuídos os animais. Eles poderiam ter sido colocados em linha de 4 ou 5; mas por razões de simetria, é evidente que o número escolhido foi 4.
É fácil deduzir que a carreta tinha dois grandes troncos ou varais de uns 11 metros de comprimento, unidos aos eixos por tarugos de madeira de lei, fixados com cunhas. A união era completada por cordas de couro cru. Dois reforços diagonais colocados sobre os varais e entre o duplo-eixo asseguravam a rigidez transversal do sistema, já que a rigidez vertical se obtinha pela forte união, por meio de cordas entre a carreta e o lanchão, com o que se obtinha um conjunto de notável solidez.
Atrelados os bois em 4 filas de 25 cada uma, e colocado em movimento o conjunto carreta-lanchão, este contava com uma grande estabilidade devido a seus 6 metros de bitola. A disposição das rodas em duplo-eixo lhes permitia girar facilmente e, em caso de curvas fechadas, bastava colocar diante das rodas de um dos lados, pedras ou madeiras que as imobilizassem, para obter, em consequência, a rotação da carreta.
A análise acima permitiu a reprodução racional das carretas de Garibaldi, capacitadas a realizarem as tarefas de 1839 – sem utilizar uma única peça de metal, conclui Wolfgang Ludwig Rau, na sua análise técnica ([2]).
Em “Anita – a guerreira das Repúblicas”, o autor, Dr. Adilcio Cadorin, reforça a análise feita por Rau de que Garibaldi:
Determinou a construção de dois carretões, com rodas de quase quatro metros de diâmetro, que sendo construídos somente com madeira encaixada, sem nenhum prego ou parafuso, foram colocadas na água até submergi-los. Depois deslizaram as naus sobre a água, até onde estavam submersos os lanchões, quando então duzentos bois emparelhados e atrelados puxaram as carretas e sobre ela vieram para fora d’água os lanchões.
Acrescenta Lindolfo Collor:
Seria essa, por certo, a parte mais difícil da empresa. Alguns botes tocados a remo e numerosos nadadores, afrontando as águas gélidas do Capivari, gastaram horas a fio no trabalho, que se diria impossível, de sotopor ([3]) as enormes rodas aos cascos dos navios.
No dia 5 de julho, Garibaldi remonta o pequeno Rio Capivari, onde não podem manobrar os pesados barcos do império, puxando sobre rodados para a terra os dois lanchões artilhados e, assim, transformando lanças de guerra em picanas. Açula ([4]) juntas de bois, atravessando ásperos caminhos, através dos campos úmidos ‒ em alguns trechos completamente submersos. Piquetes corriam os campos entulhando atoleiros. Outros cuidavam da boiada. Garibaldi vê:
Os moradores do lugar deleitarem-se com um espetáculo invulgar e bizarro: duas naves atravessando em carretas puxadas por duzentos bois, num espaço de 54 milhas ou dezoito léguas ‒ e tudo isto sem a menor dificuldade, sem um mínimo acidente.
Levam seis dias até a Lagoa Tomas José, chegando, portanto, a onze de julho. Cada barco tinha dois eixos e naturalmente quatro rodas imensas, revestidas de couro cru.
No dia 13, seguem, da Lagoa Tomás José, para a Barra do Tramandaí, sob o Oceano Atlântico e no dia 15, lança-se ao Mar com sua tripulação mista: 70 homens ‒ Garibaldi comanda o Farroupilha, com dezoito toneladas, e Griggs, o Seival, com doze toneladas. Ambos armados com quatro canhões de doze polegadas e eram de molde “escuna”, informa Cary Ramos Valli. (SANT’ANA)
A célebre operação de transposição terrestre contou com a cumplicidade e o sigilo da população local o que garantiu o êxito da empreitada.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 08.12.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia:
SANT’ANA, Elma. O Seival: E a Odisseia de Garibaldi no Capivari – Brasil – São Leopoldo, RS – Benchimol Soluções Gráficas, 2021.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Boca: largura máxima. (Hiram Reis)
[2] Este estudo foi realizado por engenheiros do Estaleiro Só, no ano de 1970, quando estavam construindo uma réplica do Seival, em tamanho natural. (SANT’ANA)
[3] Sotopor: pôr por baixo. (Hiram Reis)
[4] Açula: incita. (Hiram Reis)
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