Travessia da Laguna dos Patos – Parte I
Eu vi Corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria rio-grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações.
Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou, por mais de nove anos contra um poderoso império, a mais encarniçada e gloriosa luta!
(SANT’ANA)
O treinamento na represa da Granja do Valente produziu-me um efeito salutar tanto físico como moral. Eu estava, definitivamente, pronto para enfrentar, mais uma vez, a “inconstância tumultuária” da Laguna dos Patos.
Minha apreensão anterior em relação à preparação física, prejudicada pelos rigores do inverno “pampeano”, foi substituída pela fé e pela confiança.
A rigorosa travessia, realizada em plena “Semana Farroupilha”, era uma justa homenagem ao “herói de dois mundos” – Giuseppe Garibaldi. Vamos ressaltar aqui a travessia terrestre de Garibaldi que, guardadas as devidas proporções, procuramos homenagear realizando a transposição do Pontal de Tapes para encurtar, consideravelmente, o trajeto.
Herói de dois mundos
Era belo e forte como um atleta, e as melenas alouradas caindo-lhe até os ombros, davam-lhe a mais romântica das aparências ‒ uma estranha e buliçosa aparência de espadachim inquieto… (BRASIL GERSON)
O Herói Farroupilha Giuseppe Garibaldi é conhecido, na historiografia, como “herói de dois mundos” por ter participado de conflitos nos continentes europeu e americano. Prestando serviço à marinha republicana, Garibaldi foi aquinhoado com duas canhoneiras imperiais, que tinham sido aprisionadas por Bento Manoel Ribeiro, além de receber a missão de construir dois lanchões, em um barracão improvisado às margens do Rio Camaquã, para combater a frota imperial que patrulhava a Laguna dos Patos, com o objetivo de evitar que o Porto de Rio Grande fosse tomado pelos Heróis Farroupilhas.
Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck, na sua obra “A Odisseia de Garibaldi no Capivari”, assim se referem às dificuldades encontradas por Garibaldi em transformar os “Centauros dos Pampas” e ex-escravos em carpinteiros, armadores e por fim marinheiros:
Possuía a República um pequeno estaleiro na Foz do Rio Camaquã, usado para a construção de barcos para futuros combates. De acordo com as sugestões de Domingos José de Almeida, resolveu-se que Garibaldi deveria organizar um corso ([1]) nas águas interiores.
Afinal, Garibaldi era um homem do Mar e deveriam aproveitar a sua experiência. Para lá dirige-se Garibaldi. Tem de improvisar marinheiros e reúne italianos aventureiros de toda a laia, um norte-americano quaker da Virgínia chamado John Griggs, ex-escravos e gaúchos de bota e espora. Mas tem de improvisar também armadores e carpinteiros. Como não tem barcos, vê-se obrigado a fabricá-los, com toda a precariedade de recursos que a República rio-grandense lhe oferece. É aqui, verdadeiramente, que começa a brilhar o seu gênio, que mais tarde assombrará o mundo. Constrói e arma dois lanchões de guerra e faz prodígios operando nas águas rasas da Lagoa dos Patos, pondo em xeque a poderosa esquadra imperial brasileira, comandada por um experiente Almirante inglês, chamado de John Pascoe Grenfell, mercenário a serviço da Corte no Rio de Janeiro.
Conseguiu do Governo que Luigi Rossetti fosse a Montevidéu a fim de buscar a ajuda de Carniglia e outros profissionais indispensáveis. Após algumas semanas, tinha completa a equipagem de mestres e operários. Vieram alguns marinheiros de Montevidéu e outros foram recrutados pelas redondezas. Em 1° de setembro de 1838, Giuseppe Garibaldi é nomeado Capitão-Tenente, Comandante da Marinha Farroupilha. Aparece o 1° número do Jornal Oficial dos Farrapos ‒ O POVO, editado pelo jornalista italiano Luigi Rossetti, fiel companheiro de Garibaldi.
Em 26 de outubro, Eduardo Mutru, amigo de infância de Garibaldi, une-se a ele, conforme decreto oficial, publicado no jornal O POVO:
Expediente pela Repartição da Guerra e Marinha.
Ao Capitão-Tenente José Garibaldi, comunicando-lhe haver sido despachado Eduardo Mutru, 2° Tenente para a Marinha da República, o qual marcha nessa data a reunir-se-lhe. (SANT’ANA)
O escritor Paulo Markun, no seu livro “Anita Garibaldi, uma Heroína Brasileira” relata:
As duas lanchas foram batizadas com nomes que evocavam vitórias farroupilhas: a maior, “Rio Pardo”, era destinada a Garibaldi, enquanto o “Seival” ficaria com o norte-americano John Griggs. Cada uma delas tinha dois pequenos canhões de bronze. Em termos bélicos, isso significava que só a destreza dos marinheiros, a pequena profundidade das águas do Camaquã e uma dose extra de sorte impediriam um fracasso logo na primeira saída.
Setenta homens, sendo sete italianos, compunham a tripulação, assim descrita pelo chefe das Forças Navais da República (in Giuseppe Garibaldi):
Uma verdadeira chusma cosmopolita composta de tudo, tanto na cor quanto na nacionalidade. Americanos em sua maioria, e na maior parte constituídos de negros e mulatos libertos e, no geral, os melhores e mais fiéis. Entre os europeus, eu contava com italianos, dentre os quais o meu Luigi e Eduardo Mutro, meu companheiro de infância – ao todo, sete com quem podia contar. O resto compunha-se daquela classe de marujos aventureiros conhecidos nas ribas americanas do Atlântico e do Pacífico pelo nome de Irmãos da Costa, classe que certamente havia fornecido as equipagens dos flibusteiros, dos bucaneiros e que ainda hoje fornece seu contingente ao tráfico de negros. (MARKUN)
Continuam Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck:
O Império, informado de tal estaleiro, mandou barcos vigiar a saída de barcos para a Lagoa. Porém, Garibaldi, como tinha previsto, saiu junto à costa da Lagoa, por entre aos juncos, não sendo notado pelos imperiais. Em suas “Memórias”, ele faz o seguinte relato: […]
Começaram então as nossas correrias pela Lagoa dos Patos. Passaram-se alguns dias sem fazermos mais do que presas insignificantes. Os imperiais tinham trinta navios de guerra e um barco a vapor. Porém, nós tínhamos a nosso favor os baixios das águas. A Lagoa não era navegável para os grandes barcos, senão numa espécie de canal que se seguia ao longo da sua margem no Oriente. No lado oposto, sucedia o contrário, porque o solo era cortado em declive e nos víamos, às vezes, encalhados antes de tocar na margem. Os bancos de areia estendiam-se pela Lagoa à semelhança dos dentes de um pente e só havia de bom que estes dentes eram bastante afastados uns dos outros. Quando éramos forçados a encalhar, ou os canhões do navio de guerra ou do vapor nos incomodavam, dizia:
Avante, meus patos, saltemos à água!
E os meus patos caíam n’água e à força dos braços erguiam o lanchão, transportando-o para o outro lado do banco de areia.
A vida que passávamos era laboriosa e cercada de perigos, em razão da superioridade numérica do inimigo, mas, ao mesmo tempo, essa vida era encantadora, pitoresca e muito em harmonia com o meu caráter. Não éramos unicamente marítimos, seríamos também cavaleiros no caso de necessidade. No momento do perigo, encontraríamos quantos cavalos quiséssemos e formaríamos um esquadrão, senão elegante, ao menos temível.
Nas margens da Lagoa, encontravam-se estâncias que, pela aproximação da guerra, tinham sido abandonadas pelos proprietários, onde achamos muita abundância de cavalos e o necessário para o seu sustento; por outro lado, nas herdades ([2]), existiam terrenos cultivados, onde colhíamos abundância de trigo, batatas doces e muitas vezes, excelentes laranjas, que são as melhores de toda a América do Sul. (SANT’ANA)
Prossegue o escritor Paulo Markun:
Na primeira quinzena de maio, os lanchões farroupilhas entraram na Lagoa dos Patos pela primeira vez. Circularam por ali durante nove dias, procurando uma presa. Finalmente surgiram duas, no rumo de Porto Alegre, sem escolta e com a bandeira do império hasteada. A “Rio Pardo” se aproximou, seguida pelo “Seival”. Depois de dispararem um único tiro de canhão, abordaram a desguarnecida sumaca ([3]) Mineira, cujos tripulantes fugiram num batelão, para serem presos em terra, não longe dali, enquanto outro veleiro, o patacho “Novo Acordo”, escapava, indo rumo ao Rio Grande, levando a notícia do ataque. Essa primeira captura virou uma festa: a sumaca acabou inutilizada, ao encalhar na margem, mas tudo o que havia dentro foi aproveitado. Cordas, velas e equipamentos seriam usados em outros lanchões. A maior parte da carga – quinhentas barricas de farinha – foi entregue ao Governo, que as distribuiu por várias cidades, incluindo a capital, Piratini. Os marinheiros receberam parte do butim ([4]), incluindo uniformes. Como resposta, o Almirante Grenfell mandou para a Lagoa quatro navios de guerra. Mas não era fácil apanhar barcos pequenos e de pouco calado, cujos tripulantes agiam como guerrilheiros. Só atacavam quando o inimigo era mais fraco, conheciam todos os meandros daquelas águas e, vez por outra, desembarcavam com seus cavalos – havia sete a bordo – mostrando a mesma competência exibida minutos antes nas escotas ([5]) e adriças ([6]), com rédeas e arreios.
Sempre que havia um baixio pela frente, os lanchões, perseguidos pelos imperiais, corriam o risco de encalhar. Nesse momento, Garibaldi gritava:
– À água, patos.
Os marinheiros obedeciam com alegria. Seguravam o barco sobre os ombros – Garibaldi entre eles – e o carregavam para o outro lado da ponta, desnorteando o inimigo. Muitas vezes, tiveram de ficar horas dentro da água fria da Lagoa e o bom humor desaparecia, mas bastava surgir nova situação de risco e lá iam os patos de Garibaldi para dentro da água. Mas essa brincadeira de esconde-esconde terminou quando a cúpula Farroupilha concluiu que era indispensável conquistar o Porto de Laguna – com a ajuda daquele arremedo de Força Naval. O projeto não era segredo, como mostra esta notícia publicada no Rio de Janeiro pelo Jornal do Commercio, de 8 de junho de 1839:
Os insurgentes têm o propósito de mandar, por estes dias, uma expedição a Santa Catarina, sob a direção do Coronel Onofre Pires, com o fim de sublevarem os pacíficos habitantes daquela Província e os obrigarem a separarem-se da comunhão brasileira. Esta notícia, que a muitos não merece peso, julgamos que deve merecer toda a atenção da parte do Governo; pois não há dúvida que se têm preparado os ânimos em Santa Catarina para a revolta; e que muitos dos nossos revolucionados se foram abrigar naquela Província; e por isso ali existem os elementos necessários e só falta quem lhe dê começo. Esse alguém foi Davi José Martins, ou melhor, o General Davi Canabarro. No desastre de “Rincón de Las Gallinas”, em que as tropas imperiais foram derrotadas, ganhara o galardão de Tenente e a fama de bravo, ao enfrentar o inimigo de forma desesperada, para permitir que os outros recuassem. Nos tempos de paz, ao trabalhar com seu tio, Antônio Ferreira Canabarro, conquistara o sobrenome com que passaria à história.
Quando a Farroupilha começou, estava quieto no seu canto. Tempos depois, cingiu novamente a espada e apresentou-se como voluntário. Seis meses antes de a expedição Farroupilha virar manchete no “Jornal do Commercio”, o Governo republicano tinha mandado uma comissão de especialistas até a parte Norte da Lagoa dos Patos. Quem consulta um simples Atlas Geográfico Escolar vê uma linha escura demarcando a costa gaúcha desde Torres até São José do Norte. Nenhuma Barra de Rio, nenhuma baía, nada. Mas ali existe um acesso. Tão pequeno que foi ignorado pelos primeiros navegadores e cartógrafos. É a Barra do Rio Tramandaí. Segundo os entendidos, um acidente geográfico completamente inútil para fins de navegação. Garibaldi e o General Canabarro estiveram no local e concluíram que era possível utilizá-la para alcançar o Atlântico. Mas como chegar do Rio Capivari até as Lagoas que levariam a essa Barra quase impossível? Garibaldi tinha um plano. Apresentou-o ao Governo e obteve o indispensável sinal verde, certamente com o aval de Canabarro.
Outros já haviam usado o mesmo expediente: Marco Antônio, o Imperador romano, Mohamed II, o Sultão, bem como os venezianos e, mais recentemente, não muito distante do Tramandaí, corsários a soldo da Confederação. Charles Fournier, um francês a serviço dos uruguaios, teve seu navio “Profeta Bandarra” aprisionado pela escuna “Leal Paulistana”. Como vingança, atacou a base de Maldonado, transportando sobre carretas e com a força de juntas de bois um lanchão e dez baleeiras. (MARKUN)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.12.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia:
BRASIL GERSON. Garibaldi e Anita, Guerrilheiros do Liberalismo – Brasil – São Paulo, SP – Editora José Bushatsky, 1971.
LOBO, António da Rosa Gama. Princípios de Direito Internacional – Volume I – Portugal – Lisboa – Imprensa Nacional, 1865.
MARKUN, Paulo. Anita Garibaldi, uma Heroína Brasileira – Brasil – São Paulo, SP – Editora SENAC, 2000.
SANT’ANA, Elma. O Seival: E a Odisseia de Garibaldi no Capivari – Brasil – São Leopoldo, RS – Benchimol Soluções Gráficas, 2021.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Ex-Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Membro do Instituto Histórico e Geográfico do Tapajós (IHGTAP)
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Corso (latim “cursus” – corrida): Todo corsário deverá munir-se de uma licença do chefe de Estado a quem servir: esta licença chama-se “carta ou patente de corso”. A “carta de corso” considerar-se-á documento necessário para autorizar um simples cidadão a tomar parte na guerra, e só poderá ser mandada passar pelo chefe do Estado. Todo o ato de hostilidade, praticado sem esta autorização, será punido com a maior severidade. (LOBO)
[2] Herdades: grandes propriedades rurais. (Hiram Reis)
[3] Sumaca: pequeno barco de 2 mastros. (Hiram Reis)
[4] Do butim: da pilhagem. (Hiram Reis)
[5] Escota: corda presa a um canto inferior de uma vela, para fixá-la e regular sua orientação. (Hiram Reis)
[6] Adriça: cabo para içar vergas (peça de madeira, colocada no sentido horizontal sobre os mastros, onde se prendem as velas), velas e bandeiras. (Hiram Reis)
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