Impactos sobre a população de animais é maior a menos de 5 quilômetros das comunidades de moradores

Um impasse se instalou anos atrás em Periquito, uma das comunidades espalhadas nas proximidades e no interior da Reserva Extrativista Riozinho da Liberdade, próxima à cidade de Cruzeiro do Sul, no Acre. Percebendo que precisavam percorrer distâncias cada vez maiores para encontrar uma paca, um veado ou queixada para se alimentar, os moradores instituíram uma norma: de um lado do rio, era permitido caçar com a ajuda de um cão; do outro, não. O auxílio canino tornava a captura mais eficiente, talvez até demais, exaurindo a oferta de alimento.

Ricardo Sampaio, biólogo e analista ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), chegou a Periquito em 2018 em meio às discussões sobre a efetividade da restrição autoimposta. Seu objetivo era investigar o impacto da caça sobre as populações de mamíferos e aves das reservas extrativistas, as Resex, unidades de conservação que também se destinam à preservação dos meios de vida e da cultura de populações tradicionais por meio da exploração sustentável dos recursos naturais. Além das 8 comunidades da Resex Riozinho da Liberdade, ele e colaboradores coletaram dados em outras 91 localizadas em mais 8 unidades de conservação de uso sustentável do centro e do sudoeste da Amazônia. Publicados em agosto na revista Biological Conservation, os resultados sugerem que a caça de subsistência, permitida exclusivamente para a alimentação de quem vive nessas áreas, produz um impacto importante sobre as populações de algumas espécies silvestres apenas nas proximidades – a menos de 5 quilômetros (km) – das comunidades humanas. A distâncias maiores, o efeito diminui.

“Em outras florestas tropicais, esse impacto da caça se estende por distâncias maiores, de 7 km a 10 km”, afirma Sampaio. Segundo o biólogo, a ausência de um comércio legal de carne de caça no Brasil contribui para reduzir o impacto. “No Peru e em países da Ásia e da África nos quais a caça é permitida, a área em que as espécies silvestres são afetadas é maior”, conta Sampaio.

“Em ecossistemas muito fragmentados, como os encontrados mais ao sul do Brasil, esses 5 km podem parecer muito. Na Amazônia, é pouco”, comenta o ecólogo australiano William Ernest Magnusson, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), que não participou do estudo.

Entre 2013 e 2019, Sampaio e seus colaboradores percorreram as 100 comunidades situadas próximas ou no interior de nove Resex e, em cada uma delas, instalaram cerca de 10 armadilhas fotográficas que permitiram registrar a presença de 29 espécies de mamíferos e aves. As câmeras foram posicionadas em linha a distâncias que variavam de 75 metros a 15 km do centro de cada comunidade e permaneceram ativas por 42 dias, em média. “Eram necessários quase uns 30 dias para instalar as câmeras em cada Resex e mais 30 para retirá-las”, lembra Sampaio.

Os registros das armadilhas fotográficas foram usados por ele e pelos pesquisadores Ronaldo Morato, também do ICMBio, e Adriano Chiarello, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), para calcular a diversidade de espécies e o número de indivíduos a diferentes distâncias das comunidades. Além da proximidade dos povoados, os pesquisadores levaram em conta a influência de mais seis variáveis sobre a diversidade e a população de animais silvestres: número de habitantes e densidade populacional humana na comunidade, distância e número de habitantes do centro urbano mais próximo, disponibilidade de proteína proveniente da pesca e localização dentro ou fora da Resex.

De longe, o fator que mais contribuiu para diminuir a diversidade de espécies e o tamanho de suas populações foi a proximidade das comunidades rurais. A menos de 5 km dos povoados, o tamanho da população das 29 espécies silvestres era menor do que a 15 km de distância. Treze dessas espécies apresentaram uma redução superior a 50%. As populações de anta, mutum, queixada, veado-cinza e cutiara sofreram algum grau de declínio mesmo a distâncias maiores, enquanto as de veado-vermelho, paca e cutia, mais adaptadas a ambientes alterados, foram encontradas em maior abundância a menos de 5 km das comunidades.

Na opinião dos pesquisadores, as três últimas espécies, em teoria, poderiam se tornar candidatas a ter suas populações manejadas por meio de caça controlada por essas comunidades, com a possibilidade de comercialização do excedente, o que já é permitido pela legislação que rege o funcionamento das Resex, a Instrução Normativa nº 26 do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), de 2002. Em contrapartida, moratórias protegeriam as espécies mais sensíveis.

No Brasil, a Lei de Proteção da Fauna, de 1967, proibiu a caça e ajudou a controlar o mercado de carne e de pele de animais silvestres, mas deixou no limbo as populações que vivem em áreas onde essa é uma das poucas fontes disponíveis de proteína animal. Embora a norma do Ibama permita a exploração da fauna em áreas de uso sustentável e a Lei de Crimes Ambientais, de 1998, determine que não é crime a caça realizada em “estado de necessidade, para saciar a fome”, nenhuma norma define o que é “estado de necessidade”. Assim, fica a cargo dos juízes decidir se em determinada situação a caça ocorreu de modo ilegal ou se foi para subsistência.

“A caça está proibida há tanto tempo no país que não temos mais a cultura dessa atividade e não sabemos, por exemplo, quantos indivíduos de queixada, veado ou caititu poderiam ser explorados por quilômetro quadrado sem afetar a conservação da espécie”, afirma Chiarello, da USP, um dos autores do estudo. “Isso talvez pudesse mudar.”

O trabalho de Sampaio ajudou a comunidade de Periquito a tomar uma decisão. Os dados mostraram que a abundância e a diversidade de espécies eram maiores na margem do rio em que os cães haviam sido banidos. “Depois de um ano, eu recebi uma ata de uma reunião em que eles reforçavam o acordo de não usar cachorros. Eles também passaram a controlar a reprodução dos cães”, conta o pesquisador.

Projeto
Conflitos entre humanos e fauna silvestre no interior de reservas extrativistas amazônicas: Pegada ecológica espacial e impacto da caça de subsistência sobre vertebrados florestais (nº 17/08461-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Ronaldo Gonçalves Morato (ICMBio); Investimento R$ 126.157,51.

Artigo científico
SAMPAIO, R. et alVertebrate population changes induced by hunting in Amazonian sustainable-use protected areasBiological Conservation. ago. 2023.

Pesquisa FapespOs efeitos da caça para subsistência em reservas extrativistas da Amazônia : Revista Pesquisa Fapesp

PUBLICADO EM: JORNAL DA CIÊNCIA SBPC – Edições – Jornal da Ciência (jornaldaciencia.org.br)