Colônia do Santíssimo Sacramento
Parte III
Voltemos ao relato de Capistrano de Abreu, depois desta oportuna e necessária reprodução do texto de Esteves Pereira à respeito da controversa autoria da descoberta da Foz do Rio da Prata.
Esta interpretação não foi a que deram os contemporâneos. Os navegantes diziam ter achado um Estreito ao Sul, e foram cridos. Johannes Schöner ([1]), que conheceu a carta ou gazeta da Madeira e a excerptou ([2]) em um livro publicado em 1515, concluiu que se alcançara o Estreito Meridional. Em seu globo do mesmo ano figurou-o entre 40° e 50°S, separando a região da América de outra mais ao Sul chamada “Brasiliae regio”. Há todos os motivos de crer que Fernão de Magalhães levava este ou congênere documento a bordo; devia também levar uma descrição minuciosa da viagem, pois Cristóvão de Haro, interessado na Armada de 1513/1514, era-o por igual na de 1519. O achado de um estreito, em qualquer tempo importante, ainda mais sobressaía naquele momento.
Vasco Nunes de Balboa descobrira o Mar do Sul, o Oceano Pacífico, mostrando assim que as terras até então percorridas a Este não eram simples anteparo das Índias, à maneira da Indonésia relativamente à Austrália, e sim um continente, possivelmente diverso da Ásia, pelo menos no Mar do Sul, onde os planos oceânicos se rasgavam ilimitados, mas dela próximo, ao Norte, dela talvez contínuo, pois tinha foros de certeza inatacável a crença de que no globo terrestre se avantajava de muito o espaço ocupado pelas terras à superfície dos mares.
A ninguém podia interessar tanto a descoberta da Armada de D. Nuno Manuel como à Coroa de Espanha. Por isso, desde novembro de 1514, começou-se a preparar uma esquadra para, sob as ordens de João Dias de Solís, vir explorar as regiões desconhecidas, “à las espaldas ([3]) de la tierra donde ahora está Pedro Aray [Pedr’Arias, perseguidor de Vasco Nunes de Balboa] mi Capitán-General é Gobernador de Castilla del Oro, é de allí adelante ir descubriendo por las dichas espaldas de Castilla del Oro mil é setecientas leguas, é más, si pudieres”.
Haverá qualquer ligação entre a viagem de Solís e a dos dois navios portugueses de 1514? Tudo leva a supô-lo. Um navio destes chegou à Madeira em 12.10.1514, como está provado por Haebler; as primeiras ordens relativas à expedição de Solís datam de 24 de novembro do mesmo ano, intervalo suficiente para o navio português chegar à pátria e difundir-se descoberta tão importante. A viagem de Solís foi resolvida de improviso, pois só depois de assentada tratou-se de arranjar navios e mantimentos, fixando-se a partida para setembro do ano seguinte.
A sua preparação foi misteriosa, tanto que a Coroa, a cuja custa ia, espalhou que as despesas correriam por conta de certas pessoas, que, aliás, não haveriam de saber coisa alguma da viagem.
Foi muito recomendado todo o segredo. Ainda mais: espalhou-se que ia para um destino mui diverso do real ‒ “Juan Dias de Solís va con mi licencia y a su costa é de algunos parcioneros, que para ello contribuyen con el más adelante de lo que el é Vicente Yáñez Pinzón descubrieron en el primer viaje”. A viagem de Pinzón e Solís, hoje sabemos, foi entre Cuba e o Iucatã, roçou quase o Câncer, ao passo que Solís era mandado muito além do Capricórnio. Para que tantas capas e cautelas?
O motivo aparece à primeira reflexão: era preciso, antes de tudo, saber se o estreito ficava na linha dos limites pactuados em Tordesilhas, simples formalidade até então, na parte relativa à América, documento fundamental nas referências às terras opulentas da Ásia, para onde só agora o caminho anunciado, e nunca encontrado por Cristóvão Colombo, parecia abrir-se.
João Dias de Solís partiu para sua expedição a 08.10.1515, e com feliz viagem chegou ao Rio, que algum tempo levou seu nome, antes de trocá–lo definitivamente pelo de Prata, com certeza dado pelos portugueses, seus primeiros descobridores. Logo ao chegar foi morto pelos índios e seus companheiros voltaram, carregando pau-brasil no Cabo de Santo Agostinho.
Em 1520 Magalhães fez a mesma viagem e passou além até descobrir o estreito desejado. Quase rente com esta, foi outra expedição ao Rio da Prata, comandada por Cristóvão Jaques, segundo se pôde concluir de estudo consciencioso do único e deficiente documento que a narra. Descreve-a assim Juan de Çuniga, em carta dirigida de Évora a 28.07.1524 à “Sacra Cesarea Catholica Magestade” do Imperador Carlos V, depois de ter interrogado o descobridor:
Dice que ahora tres años, el Rey Don Manuel le dio licencia que fuese a descubrir por aquella costa, prometiéndole grandes mercedes si hallase cobre y otras cosas que él deseaba y dice que se fue derecho al Brasil con dos carabelas, y que siguió la costa del dicho Brasil por el Sur oeste setecientas leguas de donde ellos toman el Brasil, y que halló a las 300 leguas, poco más o menos, nueve hombres de los que fueron con un Juan de Solís a descubrir, y habló con ellos, y están casados allí, e quisieran que él se los “trouxera”, porque él non osó por ser castellano, y porque él sabía que al Rey le había pesado de lo que iba a descubrir el dicho Juan de Solís, porque les prometió que si Dios allí le tornase que los traería. Dice que en la tierra que aquellos están no hay cosa de provecho, y que siguió su costa otras 350 leguas, que son las 700 dichas, y que halló un Río de agua dulce, maravilloso, de anchura de catorce leguas, y que subió por el Río doce leguas y vio muy hermosos campos a todas partes, y que surgió allí y tomo lengua de la tierra, y que le dijeron que aquel Río no sabían de donde venía sino que era de muy lejos, y que más arriba hallaría otra gente que eran sus enemigos, que tenían de aquellas cosas que él les mostraba, que eran oro y plata y cobre, y que tomo cuatro hombres de aquellos y se fueron con él, y subió por el Río en los bateles armados veinte y tres leguas, y que siempre lo halló todo mejor y la profundidad igual. Dice que allí vinieron a él ciertos viejos y estuvo con ellos en grandes pláticas ([4]) que se asegurasen. [“roto”] los otros, y que les rescató algunas cosas y le dieron pedazos de plata y de cobre y algunas venas de oro entre piedras, y que le dijeron que toda aquella montaña tenía mucho de aquello, y que duraba a lo que ellos señalaban 300 leguas; y que le dijeron que la plata no la tenían en tanto como al cobre, habiendo mucho cobre, porque no relucía tanto, y que lo que señalaban del oro era lejos, que el agua lo debe traer por un Río que viene a dar al través de aquel grande y para en las piedras; trujo de todo esto sus muestras. Dice que vio ovejas monteras y muchos ciervos, y de aves todas las que acá vemos en el campo y infinitos avestruces, las perdices muy grandes; dice que es tanto el pescado del Río, que en echando la cuerda o red salía llena, y que comió y pesco muchos mayores y mejores que los de acá, y salmonetes y otros pescados en abundancia, y que salieron a vueltas dos lampreas; que estuvo allí dos o tres días informándose de todo con el amistad que tomo con aquellos primeros, y que después se juntaron muchos con arcos y buenas flechas y que se embravecieron de saber que traía aquellos que dije, y que le dijeron que se fuese, que el venia por hacerlos algún engaño, y que tiro dos o tres escopetas, y todos se pusieron por el suelo; y que otro día vio venir gran número de canoas, y no osó esperar, porque no tenía consigo sino 15 hombres, y que así se volvió a sus carabelas.
Suspeitava o embaixador espanhol que, nestas descobertas, entrava coisa pertencente a seu Rei. “Se assim fosse, respondeu-lhe o descobridor, folgara de voltar ali com a maneira que Sua Majestade for servido e será cousa muita proveitosa”. A este tempo começavam a aparecer as desvantagens da Linha de Tordesilhas. Em setembro de 1522 chegou à Espanha, sob o comando de Juan Sebastian del Cano a nau Vitória, da expedição de Fernão de Magalhães, ultimando a primeira circunavegação do planeta até então realizada. Em sua derrota ([5]) fora dar ao Maluco ([6]), às ilhas da especiaria, no fundo o verdadeiro móvel das empresas marítimas de portugueses e espanhóis, já descobertas pelos primeiros. A quem pertenciam? Dentro de que linha estavam? Para decidi-lo juntaram-se em Vitória e Badajós representantes de ambos os reinos peninsulares, que nada acordaram. A decisão se deu anos mais tarde pela capitulação de Saragoça ([7]), definindo-se, porém, só a demarcação Oriental, deixando intacta a questão americana.
O governo espanhol considerou suas as terras redescobertas por João Dias de Solís. Sebastião Gaboto e Diogo Garcia, Piloto português, companheiro de Solís, mandados para destinos muito diversos, lá estiveram; o primeiro fundou também fortalezas efêmeras. Por sua parte El-Rei de Portugal para aqueles lados mandou uma Armada comandada por Martim Affonso de Sousa, em 1530. Escrevendo a este em 1532, revela o plano de dividir em Capitanias de cinquenta léguas de costa todo o território espraiado entre Pernambuco e o Rio da Prata.
Na concessão da Capitania de Pero Lopes de Sousa marcou-se, porém, 28°20’ como limite Meridional. Ao mesmo tempo em diversas ordens vindas da Espanha, recomendava-se a fundação de fortalezas em S. Francisco, quase 26°; mais tarde Pero de la Gasca, Presidente do Peru, nomeando Diego Centeno Governador do Rio da Prata, estendeu sua jurisdição até 23°33’, limite de S. Paulo com o Rio de Janeiro. Daí não adveio, por então, nem um inconveniente, porque nem o quinhão mais Meridional da Capitania de Pero Lopes foi logo povoado, nem os espanhóis se fixaram permanentemente no litoral Atlântico.
Em 1580 reuniram-se sobre a mesma cabeça as Coroas de Portugal e Espanha, o que na América só devia trazer vantagens. Desde então os dois povos, alheios a quaisquer rivalidades coloniais, puderam dedicar-se às tarefas que lhes pareceram de mais urgente e proveitosa solução. Para os portugueses o inimigo era o francês, e o grande problema geográfico a solver era a posse do Amazonas; para os espanhóis do Prata, o Atlântico era apenas as costas: a frente voltava-se para o Peru, donde vinham desde Porto Bello e Callau e para onde iam pelo Tucumã os gêneros do seu comércio.
Em 1640, Portugal desligou-se ([8]) da Espanha, mas na América a situação pouco se alterou. Em 1663 o Padre Simão de Vasconcellos discorre com todo o desenfado ([9]) sobre a repartição entre colônias portuguesas e espanholas.
Padre Simão escreve:
Esta repartição se deve averiguar pelo que corta a Linha Imaginária, ou mental de que falamos, que vai lançada de Norte a Sul, do último ponto da linha transversal de trezentos e setenta léguas da ilha de Santo Antão para o Poente. Mas como nesta linha transversal os compassos de uns andaram mais, e menos liberais que os de outros, ou de propósito, ou levados das diversas arrumações das cartas geográficas, veio a ocasionar-se nesta matéria variedade: porque uns correm aquela linha transversal de maneira que a mental de Norte a Sul vem a cortar da América para o Reino de Portugal vinte e quatro graus de comprimento somente, outros trinta e cinco, outros quarenta e cinco, outros cinquenta e cinco [deixando outras opiniões de menos conta] e todas estas variedades nascem das causas apontadas.
A primeira opinião de vinte e quatro graus é escassa, nem tem fundamento algum, convence-se com a experiência, posse e vista de cartas geográficas. A última que dá cinquenta e cinco graus é de compasso mais liberal [a Longitude real seria de 48º35’ ‒ Meridiano de Greenwich], não parece tão ajustada aos princípios referidos. As duas entremeias de trinta e cinco e quarenta e cinco graus me parecem ambas verdadeiras, bem entendidas: porque a que dá trinta e cinco graus fala pelo que o Brasil está de posse por costa, e a que dá quarenta e cinco fala pelo que lhe convém, em virtude da linha que corre o sertão; e são ambas verdadeiras…
Uma e outra parte declaro.
Está de posse o Brasil da terra que corre por costa desde o Grande Rio das Amazonas até o da Prata; por que no das Amazonas começam suas povoações que correm até passante a Cananéia e senhoreiam dali em diante todos os mais Portos com suas embarcações e comércio, e no Rio da Prata está posto seu marco na ilha de Lobos, como é notório. Nem deste Rio da Prata para o Norte junto à costa possuem cousa alguma os Castelhanos, como se deixa ver pela experiência e mapas: segura fala logo a opinião que dá trinta e cinco graus pelo que estamos de posse por costa.
Pelo que convém em virtude da linha que corre o sertão falam ao certo os que dão quarenta e cinco graus. Esta verdade poderá experimentar todo o cosmógrafo curioso: por que si com exata diligência arrumar as terras do mundo e depois com compasso fiel medir a linha que dissemos, desde a ilha de Santo Antão trezentas e setenta léguas ao Poente, achará que a linha de Norte a Sul, que do último ponto desta divide as terras da América, vai cortando direita junto ao Rio das Amazonas pelo Riacho que chamam de Vicente Pinzón, e correndo pelo sertão deste Brasil até sair no porto ou Baía de São Matias, quarenta e cinco graus pouco mais ou menos da Equinocial, distante da boca do Grão Rio da Prata para o Sul cento e setenta léguas; no qual lugar é constante fama se meteu marco da Coroa de Portugal.
Breve devia passar a época destas divagações serenas. A população brasileira se ia estendendo pelo litoral para o Sul; no interior fundara-se Curitiba; em suas cercanias descobriram-se minas de ouro. Compreendeu-se a necessidade de senhorear todos aqueles sertões, de marchar para o Rio da Prata, considerado por todos os autores portugueses o limite Austral do Brasil. A costa, pitoresca, elevada, opulenta de ilhas e portos até Santa Catarina, abaixa-se além, apresenta-se nua, estéril e inóspita.
Por isso não foi o Rio Grande do Sul o primeiro a reclamar a atenção do governo da metrópole, que preferiu dar um grande salto e estabelecer-se logo em águas platinas. Em 1674, foram doadas duas capitanias ao Visconde de Asseca e João Correia de Sá, seu irmão, nas terras antigamente pertencentes a Gil de Góes, filho de Pero Góes, o companheiro de Martim Afonso na viagem de 1530 a 1533, e Capitão da Costa no governo de Tomé de Sousa.
Atendendo às reclamações de Salvador Corrêa de Sá ([10]), El-Rei D. Pedro II […] concedeu-lhes mais trinta léguas até a Boca do Rio da Prata. Dado o primeiro passo, logo se seguiu outro feito de muito maior gravidade: a fundação de uma colônia fronteira a Buenos Aires. (ABREU) (Continua…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 24.11.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia:
ABREU, João Capistrano Honório de. Ensaios e Estudos [Crítica e História] – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Edição da Sociedade Capistrano de Abreu – Livraria Briguiet, 1938.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Johannes Schöner: Imagem 01 – Globe of Johannes Schöner, 1515. (Hiram Reis)
[2] Excerptou: reproduziu. (Hiram Reis)
[3] Espaldas: costas. (Hiram Reis)
[4] Pláticas: negociações. (Hiram Reis)
[5] Derrota: rumo, rota. (Hiram Reis)
[6] Maluco: arquipélago das Molucas. (Hiram Reis)
[7] Saragoça: Aragão, Espanha. (Hiram Reis)
[8] Desligou-se: Período da Restauração. (Hiram Reis)
[9] Todo o desenfado: sossego de espírito. (Hiram Reis)
[10] Reclamações de Salvador Corrêa de Sá: Tendo respeito ao que me representou Salvador Corrêa de Sá, como tutor do seu neto o Visconde de Asseca, e procurador de seu filho João Corrêa de Sá, em razão das 75 léguas que pede se lhes acrescente às 30 das Capitanias de que lhe tenho feito mercê, que foi de Gil de Góes no Estado do Brasil, entre Cabo Frio e Espírito Santo repartida por ambos, 20 léguas ao Visconde e 10 a João Corrêa de Sá, representando-o também que mandando ele tomar posse e fundar as vilas nas ditas Capitanias, se não achavam as ditas 30 léguas, com que se não podia em terra tão limitada fundar duas Capitanias, e, que todas as que se tinham dado no Estado do Brasil e Maranhão as menores eram de 50 léguas de costa e visto o que fica referido e ao que sobre isto respondeu o Procurador da Coroa ser utilidade do aumento daquele Estado povoar-se cada vez mais. Hei por bem fazer mercê ao dito Visconde de Asseca de 30 léguas de terra que mais pede nas terras que estão sem donatário até a Boca do Rio da Prata para que as logre. Lisboa, 14.03.1658. (ABNRJ)
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