Travessia da Laguna dos Patos
10 a 18 de Abril de 2011 – Parte IV

Ponta Rasa, RS

Partida para a Ponta Rasa (17.04.2011)

Acordamos cedo arrumamos o barraco e resolvemos não incomodar nossos anfitriões que ainda dormiam e partimos por volta da seis horas. Os ventos do quadrante Oeste formavam ondas de um metro que atingiam perigosamente o barco de través, forçando-me a bordejar (ziguezaguear). O esforço de remar contra as ondas era compensado com a possibilidade de surfá-las no retorno. Eu inclinava o Corpo contra as ondas e, eventualmente, apoiava o remo a bombordo para evitar o tombamento.

Naufrágios na Ponta dos Lençóis

O Romeu foi derrubado por duas vezes e ajudei-o a esvaziar o caiaque cheio d’água. Resolvi navegar em uma área protegida por um banco de areia enquan­to o Romeu insistia em arriscar a navegação em área aberta. Meu companheiro, colhido pelas águas, teve seu caiaque virado novamente e parei para ajudá-lo.

O Romeu estava visivelmente abatido, fui a pé mais à frente reconhecer nosso trajeto e procurar uma alternativa mais segura. A uns quatrocentos metros à frente, poderíamos nos deslocar protegidos pelo banco de areia até o extremo Sul da Ponta dos Lençóis.

Arrastei o caiaque pelas águas rasas até onde poderíamos reiniciar a navegação e fui ajudar o Romeu com o seu. Isto feito, reiniciamos nossa jornada até a Ponta dos Lençóis onde passamos por um grupo de pescadores e enormes bandos de biguás.

Ponta dos Lençóis
(31°48’09,6” S / 51°50’29,2” O)

Paramos perto da Ponta dos Lençóis e mostrei ao Romeu nosso destino, a Ponta Rasa, a uns dezessete quilômetros a Oeste. A pouca profundidade garantia uma travessia segura, mas meu companheiro não estava em condições psicológicas de enfrentar uma travessia de mais de duas horas sem a possibilidade de uma parada intermediária.

Concordei em margear, o que aumentaria o percurso em mais de 10 km. Ultrapassada a Ponta, o vento mudou, vindo de NE, facilitando a navegação.

Depois de remar 40 minutos, parei e comuniquei ao Romeu que estávamos progredindo muito lentamente (3 km/h) e que precisávamos atalhar, aproveitando o vento, para a margem oposta.

Feito isso, eu conseguia progredir com muito pouco esforço, surfando e usando o corpo e as pás do remo como uma vela para impulsionar o caiaque enquanto meu companheiro, ressabiado, procurou o abrigo seguro das margens, retardando a progressão.

Aguardei o Romeu em um acampamento de pescadores e, depois de declinar do churrasco e café que gentilmente nos ofereceram, continuamos a viagem.

O anunciado ciclone se desviara para o Oceano aumentando, porém, a intensidade dos ventos para rajadas de até 40 km/h, facilitando bastante o deslocamento, naveguei a 7,2 km/h sem remar, simplesmente surfando, usando o leme para manter o caiaque no alinhamento das ondas e segurando o remo, na horizontal, como uma vela.

Volta e meia eu olhava para trás para ver se o Romeu estava me acompanhando e verifiquei que ele havia atracado em um Capão de Mato à retaguarda, resolvi parar também, mais adiante, próximo a outro acampamento de pescadores (31°51’47,54” S / 51°50’40,98” O).

Acampamento do Irailson

O Romeu apareceu algum tempo depois, sem o caiaque, dizendo que não estava em condições de me acompanhar e sugeriu que eu continuasse sozinho. Recomendei que ele buscasse o caiaque e que aguardássemos o tempo melhorar para depois tomarmos uma decisão. Ele chegou arrastando o caiaque e, depois de tomar um café quente oferecido pelo amigo Gilmar Santana Costa, decidimos, de comum acordo, partir na madrugada seguinte para Rio Grande.

No acampamento, conhecemos o inquieto, alegre e inteligente Thainan Vaz Costa e seu pai Delvair Silveira Costa (Neneco). Como o meu telefone, mais uma vez, não funcionasse, o Thainan se prontificou a avisar os familiares e amigos que estávamos bem apesar do “ciclone extratropical, três naufrágios e quase dois afogamentos”. Declinei da oferta e, brincando, qualifiquei-o de “terrorista”, tendo em vista que seu aviso provocaria muito mais preocupação do que tranquilidade. Depois da tempestade, as águas se aquietaram, a chuva se foi e o Sol apareceu radiante.

O Gilmar nos brindou com um saboroso almoço, o Romeu aproveitou para deitar e descansar um pouco e eu fui com o Neneco, na sua moto, até um orelhão, na BR-101, que, infelizmente, estava inoperante por falta de energia provocada pelo temporal. Ao retornar, ele encontrou um amigo que solicitamente permitiu que eu usasse seu celular (VIVO) para notificar à equipe de apoio terrestre nosso paradeiro e programação futura.

Regressamos ao acampamento e encontramos o Irailson que voltara para auxiliar o Gilmar a colocar as luzes nos calões e lançar uma rede de uns 400 m para as tainhas. Resolvemos acompanhá-los e fomos brinda­dos com um pôr do Sol e uma lua cheia magníficos.

Hospitalidade Gaúcha

Retornando ao acampamento, o Irailson fez questão que dormíssemos em dois bolantes de sua propriedade. As casinhas de madeira eram muito confortáveis e impecavelmente limpas, com fogão, cama e luz elétrica, foi um excelente pernoite.

A perspectiva de concluir a missão no dia se­guinte nos animava, estávamos bem alimentados e tí­nhamos dormido em camas secas e quentes. Mais uma vez a hospitalidade gaúcha se fazia presente e em nós crescia a esperança e a fé na humanidade de nossa gente.

Amizade de Gaudério
(Maurício Tomazini)

[…] Vem, te aprochega gaudério ([1])
Não tenhas medo de conversar
Não estás sozinho nesta jornada
Diga peão, que aqui te espero
Como um soltar de invernada
Sem muito jeito, porém sincero.

[…] Num gesto de amizade existe
Um coração a pulsar calado
Cruzo campos sem cansar
Nesta vida sem ser matreiro ([2])
Sempre uma mão amiga a pairar
Num rancho pobre de algum campeiro.

Partida para Rio Grande (18.04.2011)

O Gilmar preparou um café antes de sairmos e foi com o Neneco assistir a nossa partida. Às 05h00, deixamos para trás os queridos e hospitaleiros amigos que esperamos, se o Patrão Velho de Todas as Querências permitir, reencontrar futuramente. A calmaria das margens foi substituída por ondas de proa de quarenta centímetros quando nos afastamos da costa. Insisti, por diversas vezes, com o Romeu que aproasse com a Lua, mas o camarada socialista parece ter uma tendência direitista arraigada no cerne de sua alma que o levava a se afastar acompanhando a direção das ondas vindas de Boreste.

Fizemos uma parada, às 06h50, e, depois, prosseguimos navegando afastados da costa em virtude da pouca profundidade no entorno da Ponta Rasa. Fizemos mais uma parada antes de contornar a Ponta Rasa e avistar Rio Grande. Paramos numa Ilhota situada na extremidade Este da Ponta Rasa (31°50’24,3” S / 52°05’55,2” O) e decidi atravessar direto para a outra margem (Ilha da Torotama), levando em conta a leve brisa e os calões, ao longe, que acusavam a pouca profundidade do local.

Aproei para uma caixa d’água que se avistava ao longe e informei ao Romeu da rota (SSO) a ser segui­da. Meu companheiro, mais uma vez se afastava do alvo, adotando uma rota para Oeste. No meio do canal, gritei para ele alertando que, se continuasse assim, ele acabaria aportando na Praia do Laranjal, em Pelotas e ele corrigiu, finalmente, a rota. Aportamos nas praias de um casario mais ao Sul da Ilha da Torotama (31°55’05,5” S / 52°08’25,2” O), e, logicamente, mais próximo da Ilha dos Marinheiros por volta das 12h30.

Foco na Missão

Pela segunda vez, em todo o trajeto, minha sofrível operadora de celular (CLARO) deu sinal de vida. Eram os Bombeiros Militares, acionados pelo Coronel Pastl, avisando que estavam em condições de nos acompanhar. Avisei que às 15h00 estaríamos aportando na Marina do Rio Grande Yacht Club. Tomei um pouco de água e a última cápsula de guaraná me preparando para partir. Exortei o Romeu a prosseguir, já que nosso destino estava muito próximo (15 km), mas meu amigo insistiu em fazer uma refeição e descansar um pouco. Disse que precisávamos partir, já que os bombeiros nos aguardavam. Engoli um sanduíche que ele havia feito e segui meu destino sozinho. Tinha certeza de que meu parceiro não enfrentaria nenhum perigo no desloca­mento já que todo o trajeto era extremamente raso.

Chegada em Rio Grande

Imprimi um ritmo forte (7,5 km/h) e, a meio ca­minho entre a Ilha da Torotama e a Ilha dos Marinhei­ros, avistei os amigos bombeiros que manobravam para escapar dos baixios ao Norte da Ilha dos Marinheiros.

Pedi que acompanhassem meu companheiro que vinha logo atrás e segui direto para a Marina do Rio Grande Yacht Club. Quando me aproximava de meu objetivo final, avistei minha cara companheira Rosângela Schardosim me aguardando no cais.

Aportei, descarreguei o caiaque e fui tomar um banho antes de partir para Bagé, onde um churrasco de cordeiro me aguardava na casa da mãe dela. Aguardei o Romeu, que tinha parentes em Rio Grande, chegar e parti para a Rainha da Fronteira. No trajeto, os belos campos cobertos de mata nativa e magníficos rochedos me reportavam aos tempos de infância, quando visitava com meus pais as fazendas de amigos.

Em Bagé, as antigas construções emprestam à cidade uma beleza ímpar que, infelizmente, as autori­dades e alguns proprietários ignorantes teimam em destruir. Como seria bom que o poder público incenti­vasse os proprietários dessas relíquias arquitetônicas com tarifas mais baixas nos seus IPTUs desde que as mantivessem intactas e bem conservadas.

Conjunto Canoísta/Caiaque

Quero deixar registrado meu profundo agradeci­mento aos amigos pescadores que tão gentilmente nos acolheram nessa difícil jornada. Afirmo, como ensina­mento, mais uma vez, que o conjunto canoísta/caiaque é por demais importante.

O canoísta precisa aprender a enfrentar condi­ções adversas e manter o equilíbrio físico e mental, deve levar em conta que um caiaque inadequado pode comprometer a missão e os prazos planejados como foi o caso do caiaque do Professor Romeu.

Mais uma vez tenho de louvar a performance de minha nau “Argo” ‒ um caiaque Oceânico Individual modelo Cabo Horn, da Opium FiberGlass. O amigo Fábio Paiva está de parabéns! Sob as mais adversas condições, seu caiaque deu demonstração de ser único no gênero. Tenho constantemente colocado em cheque sua estabilidade, conforto e capacidade de carga e, em nenhuma delas, ele me desapontou.

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 06.11.2023 –  um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.    

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Gaudério: indivíduo sem paradeiro, andarilho.

[2]    Matreiro: manhoso.   

Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias