Jornada Pantaneira 

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Monumento aos Heróis – Parte III

Revista do Instituto Histórico
de Mato Grosso n° 25, Tomos XXIII e XXIV

Cuiabá, MT – 1941/1942

Oração do Arcebispo D. Aquino na Tocante Solenidade da Inauguração da Cripta do Monumento aos Heróis de Laguna e Dourados, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro, 15.11.1941

Não estranheis a voz, que nesta hora se levanta da cripta sagrada e solene, onde vão repousar os heróis da Pátria. Será, talvez, uma voz apagada, porque vem de longe, mas vem, justamente, das plagas legendárias, que os bravos iluminaram, para sempre, com o seu sangue e com o seu heroísmo. E quem me dera que nesta voz ecoasse, clara e sonora, toda a epopeia bravia, que lá vibra naqueles rincões históricos da minha terra natal, onde o pampeiro ruge, nas cumeadas de Amambaí e Maracaju, a canção eterna da liberdade, e as águas cristalinas do Aquidauana e do Miranda saltam da serra ao Paraguai, cantando e recantando o carme ([1]) muitas vezes secular daquela natureza primitiva, desde a pré-história bárbara, em que só se ouviam as patas do garanhão selvagem dos Guai­curus, abalando o deserto dos seus chapadões predestinados.

Lá surgiram, mais tarde, no século XVI, os aventureiros espanhóis, com Melgarejo à frente. Lá surgiram os missionários do Guaíra e do Itatim. Lá surgiu, enfim, a figura épica de Antonio Raposo Tavares, inaugurando, com os seus bandeirantes de Piratininga, o duelo formidável entre as duas nações ibéricas, ao demarcarem, nos ermos penetrais ([2]) da nossa hinterlândia, o famoso Meridiano de Tordesi­lhas. Tal foi, senhores, o cenário grandioso do sul mato-grossense, onde se desenrolaram os magnos acontecimentos, que hoje aqui comemoramos, nesta parada rútila ([3]) de Sol e de civismo, em que, ao lado do protagonista heroico desses dramas trágicos de glória, que foi o Exército Nacional, aqui tão bem representado na gentileza florida dos seus Cadetes e na imponência marcial dos seus veteranos, perfila-se a Nação inteira, desde o sorriso gaio ([4]) da sua juventude, acariciada, aqui na fronte, pelo beijo augusto e paternal do velho oceano; desde as graças cristãs das suas famílias; desde as suas classes letradas e as suas classes operárias, até às nossas mais altas autoridades, dentre as quais se destaca o Chefe Supremo, que, com o prestígio do seu Gover­no, como outrora os vates ([5]) da Bíblia, ao mesmo tempo que revive assim, aos olhos do Brasil, os lou­ros mais expressivos do seu passado, profetiza e traça os roteiros luminosos da sua futura grandeza.

E muitos são os episódios homéricos da grande Campanha Paraguaia, que hoje aqui se rememoram. Mas, a par de tantos outros, como a defesa de Coimbra, a tomada e retomada de Corumbá, a retirada de Mello, o bravo, o combate naval do Alegre, e sem esquecer tantos outros varões ilustres, entre os quais Juvêncio de Menezes, Gesteira, Costa Campos, cujas cinzas veneráveis, aqui também se acolhem, a inspiração artística deste monumento, numa síntese genial de granitos e bronzes, pôs em relevo apenas dois fatos culminantes, que foram a Ilíada de Dourados e a Odisseia de Laguna, dentre os quais emergem, nimbados ([6]) olimpicamente no halo da imortalidade, os nomes do Tenente Antônio João, do Coronel Camisão e do Guia Lopes.

Em 1864, como todos sabem, o Paraguai invadia militarmente, através da fronteira de Mato Grosso, as terras do Brasil. Mas, eis que desde logo, estacam as suas hostes diante de uma barreira, a mais frágil em si mesma, porém imensa na sua significação moral e patriótica.

Era um filho destemido dos pantanais do norte mato-grossense, era uma sentinela avançada da integri­dade nacional, era um indomável Tenente de Cavala­ria, era Antonio João Ribeiro, que, num gesto de sublime loucura patriótica, ia renovar e superar, nos fastos universais de bélico valor, as ínclitas ([7]) façanhas dos Horácios Cocles, dos Mucios Cévolas e dos Leônidas. Só, com os seus 16 companheiros de armas, perdidos nos páramos solitários da Colônia Militar de Dourados, resolveu resistir aos 220 homens aguerridos da coluna invasora de Urbieta. E tombou, à testa dos seus comandados, envolto na púrpura real do próprio sangue, em holocausto à honra do Brasil!

Senhores! O guerreiro espartano, de que tanto se ocupou a História, Leônidas, foi por certo, um forte, mas teve a protege-lo o desfiladeiro das Termópilas. Antônio João, em vez, enfrentou a onda inimiga, no desamparo de pleno descampado!

As suas Termópilas foi ele próprio, a montanha estava em seu peito, foi a elevação do seu amor à Pátria, foi a coragem granítica da sua bravura de soldado! E hoje a Nação Brasileira, pela primeira vez quiçá, com tamanha solenidade, vai ouvir em religioso silêncio, para cobrir de bênçãos e palmas, o testamento imortal, em que o herói de Dourados legou o seu sangue ao Brasil, e traçou para si mesmo, sem o saber, o mais radiosa epitáfio:

‒  Sei que morro,

escreveu ele ao seu comandante

‒  mas o meu sangue e o dos meus compa­nheiros servirão de protesto solene contra a invasão do solo da Pátria. 

Dois anos e meses eram passados, quando uma no­va tragédia, muito mais terrível e gigantesca, se de­sencadeava sobre aquelas mesmas paragens, tão florescentes, aliás, de natural beleza e poesia, mas que pareciam, então, flageladas pelas três fúrias do Averno ([8]) encarnadas na peste, na fome e na guer­ra. Era o “Corpo Expedicionário” do Exército Nacional que, tendo partido de Uberaba, avançara até Laguna, no Paraguai, e de lá volvia, fazendo e refazendo milhares e milhares de quilômetros, em retirada das mais memoráveis de toda a história militar, tida e havida, como sabeis, em nada inferior, se não antes superior à tão decantada dos Dez Mil, não lhe tendo faltado nem mesmo a pena ática de um jovem Xenofonte, que foi Alfredo Taunay, cujo espírito anima ainda, com o sopro do gênio, os poemas heroicos, que hoje, gloriosamente vivemos. Foram três meses tremendos e macabros, em que curtiram os nossos soldados sacrifícios piores que a morte, qual se vê da simples verdade, hórrida e nua da célebre Ordem do Dia alusiva ao incomparável feito.

Mantiveram-se firmes, a postos, ou como reza esse documento:

em boa ordem, nas circunstâncias mais difíceis, sem cavalaria, contra um inimigo audaz, que a possuía formidável; em campinas, onde o incêndio da macega, continuamente aceso, ameaçava devorá-los e disputar-lhes o ar respirável; extenuados pela fome, dizimados pela epidemia do cólera, que arrebatou, em dois dias, o comandante, seu imediato e ambos os guias; e todos esses males e desastres suportaram, em meio a uma inversão de estações sem exemplo, debaixo de chuvas torrenciais, no meio de borrascas, através de imensas inundações, em tal desconcerto, enfim, da natureza, que se diria contra eles conspirada.

Nesse horizonte sombrio e fantástico, recortado por visões dantescas, que alvorece hoje aos nossos olhos, a constelação serena e cintilante dos Heróis de Laguna, na qual refulgem, como estrelas de primeira grandeza, o Cel Camisão e o Guia Lopes. Arrastaram-se eles, já moribundos, até o final da intrépida jornada, dando assim ao Brasil os derradeiros alentos da vida, que se lhes apagava.

Mas estavam salvos os canhões e as bandeiras da Pátria! E que consolo para o velho Guia quando, já quase agonizante, pôde apontar ainda, verdejando saudosamente ao longe, os campos da sua estância, aonde ele não mais chegaria, mas que era o porto de salvamento e um paraíso terreno para os sobrevi­ventes à gloriosa catástrofe!

Camisão, já nos estertores da agonia, o seu delírio foi ainda a preocupação com o dever, foi um surto de entusiasmo militar:

‒  Deem-me a espada e o revólver!

exclama. E, tentando erguer-se para apertar o talim, acrescentou:

‒  Façam seguir a coluna!

Mas, em seguida, recaiu pesadamente ao chão, morrendo e murmurando:

‒  Vou descansar…

E descansou, nos braços da Pátria e da Glória!

Senhores, são os despojos, mortais destes benemé­ritos da Pátria, que ora deixam o Teatro longínquo do seu titânico esforço em prol da nacionalidade, e aqui veem receber o nosso comovido preito de frater­nidade, reconhecimento e religião, ao termo de uma viagem triunfal de Mato Grosso a São Paulo e a esta esplêndida metrópole, que eles acabam de atraves­sar, por entre alas frementes de corações a baterem a marcha wagneriana das maiores comoções populares.

Era uma homenagem que se impunha, e assim o reconheceu por primeira, a alma sonhadora e entu­siástica da nossa mocidade militar, que encontrou para logo, a orientação prudente, segura e indefessa do seu Mestre e Guia, o Professor Coronel Pedro Cordolino de Azevedo, a quem ficaremos para sempre devendo “A Epopeia de Mato Grosso no Bronze da História”.

Mas o formoso ideal juvenil foi como a flor, de que nos fala o poeta, e, se não um século, levou mais de 20 anos, cultivada sucessivamente pelas jovens e brilhantes gerações da nossa Escola de Guerra, para desabrochar, finalmente, nesta verdadeira consagra­ção, em face do céu, do mar e da montanha!

Veio, assim, a hodierna festa a constituir mais uma glória do atual regime de paz, trabalho e realizações fecundas, que bem pode ostentar, como um dos mais lídimos florões, os intemeratos bordados do seu Ministro da Guerra, o General cuiabano, que tomou tanto a peito a ereção deste monumento e possui, na sua encantadora modéstia, o segredo das constru­ções silenciosas, profundas, sólidas e magníficas.

É, pois, esta, senhores, uma hora cívica longamente suspirada; hora litúrgica, em que, segundo a expressão dos livros santos, exultam os ossos dos mártires do patriotismo, “exultabunt ossa humiliata”, exultam aos acordes maviosos do Hino Nacional e das preces ao Senhor Deus dos Exércitos e à Virgem Imaculada, protetora das nossas bandeiras, aqueles mesmos acordes sacros, que tantas vezes ouviram, em noites saudosas do sertão, na trépida e apreensiva calma dos acampamentos.

Hora solene, enfim, em que, sobre o túmulo dos heróis, arde a pira sacrossanta dos mais nobres sentimentos da brasilidade, e todos os nossos corações, no êxtase do entusiasmo, entoam o epinício da vitória dos que morrem pela Pátria:

Como outrora, embalados pelas vagas
Do Helesponto, a bater nas rudes fragas,
Ao pé do promontório do Sigeu,
Jaziam os heróis, a quem Homero
Sagrou o seu poema épico e fero,
Qual o mais belo e eterno Mausoléu;

Assim vós, ó heróis da minha terra,
Prostrados pelo monstro atroz da guerra,
Viestes nestas praias repousar,
Ao fulgor deste olímpico ambiente,
Onde hão de nos falar, eternamente,
Das vossas glórias a montanha e o mar!

Nenhum panteão mais grandioso que este
Onde agora dormis em paz celeste,
E montam guarda, sob o céu de anil,
O grande Oceano Atlântico dum lado,
E do outro, os montes do baluarte alçado
Por Deus para defesa do Brasil!

Bem merecestes este grão tributo,
Vós, que tombastes lá, no sertão bruto,
Sem outro abrigo, que o hemisfério azul;
Mas Deus glorificou vosso heroísmo,
E o trouxe a esta ribalta de civismo,
Onde vibra a Nação, de norte a sul;

Camisão! Mártir do dever! que expiras,
Pedindo ainda a espada, com que firas
A última pugna em prol dos teus ideais!
Guia Lopes! Espectro venerando
De um novo Cid Campeador, salvando,
Quase morto, as bandeiras nacionais!

Antonio João! Flor de bravura altiva!
Maior que Leônidas! Trincheira viva
Da Pátria, a repelir as invasões!
Vós sois a síntese duma epopeia,
Estrelas alfas, que nos dais ideia
Das mais esplêndidas constelações!

E hoje aqui, neste sítio e nestes ares,
Já famosos nos fastos militares,
Rebrilham vossas tumbas corno sóis;
E delas ergue-se a Vitória alada,
A vitória do Ideal sagrando a espada,
Ideal bendito, que vos fez heróis!

E lá do píncaro do Corcovado,
Numa apoteose imensa, lado a lado,
Cristo vos abre os braços desde os céus:
Que o bravo como vós, que de alma forte
Na fé e no dever, até à morte,
Cai pela Pátria, voa para Deus! (RIHMG N° 25)

GALERIA DE FOTOS

RIHMT n° 25, 1941-1942

Livro do Cap Cordolino de Azevedo, 1926

Cel Carlos de Morais Camisão (Cel Nunes)

Tenente Antonio João Ribeiro (Cel Nunes)

Guia José Francisco Lopes (Cel Nunes)

A Marcha Forçada (Cel Nunes)

O Salvamento dos Canhões (Cel Nunes)

Transporte dos Coléricos (Cel Nunes)

Monumento (Cel Nunes)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 11.10.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia 

RIHMG N° 25. Aos Heróis de Laguna e Dourados (15.11.1941) – Brasil – Cuiabá, MT – Revista do Instituto Histórico de Mato Grosso n° 25, Tomos XXIII e XXIV, 1941/1942.      

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected]

[1]    Carme: cântico. (Hiram Reis)

[2]    Penetrais: misteriosos. (Hiram Reis)

[3]    Rútila: luzente. (Hiram Reis)

[4]    Gaio: jovial. (Hiram Reis)

[5]    Vates: profetas. (Hiram Reis)

[6]    Nimbados: Cercar de nimbo ou de auréola. (Hiram Reis)

[7]    Ínclitas: notáveis. (Hiram Reis)

[8]    Averno: inferno. (Hiram Reis)

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