Travessia da Laguna dos Patos
10 a 18 de Abril de 2011 – Parte I 

Visão Geral da Hidrovia do Mercosul

Bela Lagoa dos Patos
(Daniela da Cunha)

Quando o Sol desce por entre as nuvens
Posso ver o anoitecer chegando.
Lagoa te quero sempre assim, linda
Nos meus sonhos sempre me alegrando.
Depois da longa noite
Quando pensei que não vinhas
Ouvi teu doce balançar no cais
Das tristes lembranças minhas. […]

Há mais pessoas que desistem
do que pessoas que fracassam. (Henry Ford)

Mais uma vez me proponho a desvendar os arcanos e enfrentar os desafios da Laguna dos Patos, o maior manancial de água doce brasileiro com 265 quilômetros de comprimento e uma superfície de 10.144 quilômetros quadrados, conhecida também como “Mar de dentro”. Na tentativa anterior (em 2009), os ventos e ondas superiores a três metros e meio determinaram que eu abortasse a missão, um fracasso temporário, jamais definitivo. A jornada pela margem Oriental me fascina tendo em vista a mesma proporcionar maiores dificuldades e não abrigar nenhum núcleo populacional importante em sua costa. O Coronel PM Sérgio Pastl se prontificou em nos apoiar com seu veleiro “Ana Claci” acompanhado do Professor Mestre de Educação Física Hélio Riche Bandeira, do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA).

Largada da Praia da Varzinha (10.04.2011)
(30°19’17,52” S / 50°54’21,85” O)

Às quatro horas em ponto, do dia 10 de abril do corrente (2011), o Soldado PM Jorge Luz Gomes de Campos, motorista do Coronel Pastl, chegou à minha residência para transportar a mim, o Professor Romeu Henrique Chala e os caiaques até a Praia da Varzinha, local da largada. No caminho (Vila Itapuã), encontra­mo-nos com alguns canoístas do Clube de Regatas Almirante Barroso que nos acompanhariam na largada.

Já na margem da Laguna, aguardamos alguns retardatários e partimos, acompanhados de dois caiaques duplos oceânicos e dois da classe turismo, às 06h35 rumo à Ponta do Abreu, lá chegando por volta das 08h15 depois de remar dez quilômetros. As ondas, de través, chegavam a oitenta centímetros e o Romeu estava tendo sérias dificuldades em navegar no meu caiaque modelo Anaico da KTM, retardando considera­velmente a progressão.

Ponta do Abreu

Fizemos um alto horário nas proximidades da Ponta do Abreu onde Romeu resolveu trocar o Anaico por um modelo turismo da equipe do Almirante Barroso. Despedimo-nos dos companheiros canoístas e rumamos direto para a Costa da Salvação, enfrentando ondas mais brandas, de meio metro de altura.

O Romeu ainda progredia lentamente e me confessou, durante o percurso, que estava preocupado com o ombro contundido, recentemente e, por isso, diminuí a velocidade de 4 (7,2 km/h) para 3,5 nós (6,3 km/h). Aportamos a 800 metros ao Sul da Ponta do Anastácio, depois de navegar nove quilômetros.

Tentei comunicar-me com o Coronel Pastl, mas, infelizmente, a operadora “Claro”, outra vez, me deixou na mão. Descansamos um pouco, nos reidratamos e prosseguimos, lentamente, nosso curso. Paramos, no­vamente, por mais de uma hora na Boca do Sangra­douro da Lagoa dos Gateados (30°30’52,5” S / 50°41’06,7” O), onde tentei, em vão, contatar via telefone ou vislumbrar no horizonte algum sinal do veleiro “Ana Claci”. Partimos com a intenção de não só tentar achar nossos amigos, mas também de procurar um abrigo para o pernoite, no caso de um desencontro já que todo o material necessário, sacos de dormir, roupas secas e mantimentos estavam embarcados no veleiro.

Pernoite na Costa da Salvação
(30°34’18,1” S / 50°40’51,2” O)

O Rio
(Manuel Bandeira)

Ser como o Rio que deflui
Silencioso dentro da noite.
Não temer as trevas da noite.
Se há estrelas no céu, refleti-las
E se os céus se pejam de nuvens,
Como o Rio as nuvens são água,
Refleti-las também sem mágoa
Nas profundidades tranquilas.

Aportamos por volta das 17h15, depois de remar apenas 42 km, próximo a um canal de irrigação onde havia um bolante ([1]) e, depois de verificar que estava aberto, em condições de nos abrigar, tentei, em vão, encontrar alguém que nos autorizasse a utilizá-lo. Não encontrando ninguém, resolvi acantonar assim mesmo.

No abrigo, arrastei umas telhas de amianto para um canto, improvisei uma vassoura de capim e varri o apo­sento. Usei meu neoprene como colchão e deixei à mão um saco aluminizado que havia levado para alguma emergência, a madrugada fria me forçou a usá-lo.

Pernoite na Costa da Salvação

Partida para Mostardas (11.04.2011)

Acordamos às 05h30, arrumamos, ainda no escuro, nossas tralhas e partimos às 06h10. A ausência dos ventos proporcionou um momento mágico; no horizonte, as nuvens fundiam-se nas águas tranquilas da Laguna dos Patos amalgamando céu e Terra permitindo-me vislumbrar, por um átimo, o diáfano Portal da “Terceira Margem”. Tive a nítida sensação de mergulhar o remo nas nuvens e deslizar silente rumo ao infinito.

Os prognósticos pareciam ser alvissareiros, partimos com a determinação de encontrar a equipe de apoio e cumprir a jornada mais longa de todo o trajeto. Depois de remar, aproximadamente, vinte quilômetros, encontramos o “Ana Claci”, cumprimentamos eufóricos seus tripulantes e embarcamos para uma pequena refeição.

Novamente n’água, rumamos para a Ponta de São Simão. Por volta das 14h00, o Coronel Pastl nos convidou para o almoço, o Romeu subiu a bordo e eu declinei do convite, pois não faço nenhuma refeição pesada durante o deslocamento. Remei devagar e aguardei o Romeu na Ponta de São Simão. O Romeu chegou e arrastamos os caiaques sobre o enorme banco de areia que se estende por uns 25 km de extensão e cuja profundidade variava de 30 a 60 cm.

O veleiro sumiu no horizonte contornando o enorme banco de areia já que a sua quilha de 1,5 metros não é retrátil. Aproei diretamente para a direção indicada pelo GPS como sendo o Porto do Barquinho e mantive a velocidade constante de quatro nós (7,2 km/h).

Susto no Barquinho

Chegamos ao Porto do Barquinho às 18h10, uma jornada de doze horas, sendo 10h30 de remo e um percurso de 73 km. Na chegada piquei a voga para não perder a oportunidade de fotografar o pôr do Sol que se avizinhava. Atracamos nos molhes do Porto e ficamos admirando os magníficos matizes que graciosamente se alternavam nas diáfanas nuvens. Aguardamos o veleiro até o anoitecer e, como nossos amigos não aparecessem, resolvemos aportar para esticar as pernas.

Por volta das 22h30, o Ana Claci, finalmente, entrou no Porto e eu sinalizei nossa posição com flashes de minha máquina fotográfica. Os motores do veleiro roncaram ruidosamente até que abruptamente pararam. Resolvemos embarcar nos caiaques e verificar o que acontecera. A embarcação encalhara e o Professor Hélio e eu saltamos, imediatamente, n’água para tentar empurrá-la para águas mais profundas. Depois de algum tempo de um hercúleo esforço, conseguimos liberá-la e o veleiro se afastou buscando águas mais profundas. O Hélio e eu resolvemos nadar até o barco, mas, no caminho, as forças nos abandonaram e solicitamos apoio de nossos camaradas. O Coronel Pastl jogou um salva-vidas para o Hélio, e eu aguardei calmamente, boiando, até que o Romeu se aproximasse com o caiaque.

Felizmente, foi apenas um susto fruto de um corpo exaurido por esforços prolongados e submetido ainda à prova de desencalhar um veleiro do lodo do Porto do Barquinho. O assoreamento do Porto e a ausência de qualquer tipo de estrutura de apoio são uma mostra do descaso das autoridades responsáveis.

Porto do Barquinho
(31°2’53,11” S / 51°0’25,10” O)

O Porto próximo à sede do Município de Mostardas abriga navegadores que fogem dos perigosos rebojos da Laguna ou que simplesmente vem apreciar as belezas do local. Relata-nos Knippling:

O Porto do Barquinho é uma impressionante obra na Costa Leste da Laguna dos Patos. […] Foi construído em lugar ermo e isolado, a uns 12 quilômetros de Mostardas, mas sem qualquer via de acesso. A intenção era, ou seria, dar escoamento às safras de arroz e cebola da região. Foram construídos molhes com grandes pedras, trazidas de muito longe, já que não existem na região. O molhe Leste tem 837 metros de extensão e o do lado Oeste tem 762 metros perfazendo, pois, um total de mais de um quilômetro e meio. A distância entre os molhes é de 350 metros. Um razoável tamanho em termos de Lagoa dos Patos e em função da finalidade a que se destinaria. O projeto inicial foi feito em 1924, prevendo apenas um abrigo e atracadouro na Foz do Arroio do Barquinho. Em 1949, o Projeto foi refeito e foi iniciada a construção do primeiro molhe. As pedras foram então trazidas da Serraria, no Rio Guaíba, por duas chatas: a “Doca I” e a “Doca II”, rebocadas pelo rebocador “Júlio de Castilhos”. Foram feitas 57 viagens no total, sem que se conseguisse levar pedras suficientes para o primeiro molhe.

Muitas destas viagens eram verdadeiras aventuras, quando o vento soprava forte. As chatas, carregadas ao máximo, eram varridas pelas ondas, e faziam muita água, ficando na iminência de afundar. Depois de três anos, em 1952, os trabalhos foram interrompidos. Em 1977, o Projeto foi reformulado, com verbas mais generosas. As pedras passaram então a ser transportadas via rodoviária da região de Vasconcelos, do outro lado da Laguna, até Tapes. Em Tapes, foi construído um belíssimo Porto, também com molhes de pedra, onde hoje se encontra nosso querido Clube Náutico Tapense. Do Porto de Tapes, as enormes pedras foram transportadas pela barca “Walda III”, adquirida para essa finalidade e que originalmente fazia a travessia entre o Rio de Janeiro e Niterói. […]

Desta vez foram feitas 165 viagens. No Barquinho havia uma potente draga para movimentação de areia, bem com escavadeiras, guindastes, caçambas e muito mais: um canteiro de obras completo. Foi uma tarefa difícil, grandiosa e onerosa. Sob ponto de vista técnico, não se poderiam fazer críticas; houve execução competente do que então estava idealizado. Ficou quase concluída em 1979. (KNIPPLING)

O Município de Mostardas sonha com a possibilidade de o Porto do Barquinho ser reativado e modernizado com a concretização da alvissareira Hidrovia do Mercosul. O Complexo Hidroviário prevê obras de dragagem, drenagem, derrocamento, modernização dos terminais de cargas. A Hidrovia de mais de 650 quilômetros de extensão ligará a Lagoa Mirim e a Laguna dos Patos aos Rios Jacuí e Taquari, contribuindo para o aumento do transporte de cargas nos portos de Pelotas, Porto Alegre, Cachoeira do Sul e Estrela.

Muitas promessas para um sonho cada vez mais difícil de concretizar-se. O Correio do Povo, de 30 de março de 2010, publicou:

PAC II incluiu Hidrovia do Mercosul

Enfim, as hidrovias foram contempladas no PAC II. O Corredor do Mercosul, que parte de Santa Vitória do Palmar e chega a Cachoeira do Sul, através das Lagoas Mirim e Patos e Rios Jacuí e Taquari, é um dos 48 empreendimentos que receberão R$ 2,7 bilhões entre 2011 e 2014. (Denise Nunes) (Continua…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 30.10.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.  

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Bolante: pequena casa de madeira removível, que serve de dormitório ou guarda de material durante a execução de um serviço.

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