Fracasso Anunciado nas Desertas
Há mais pessoas que desistem
do que pessoas que fracassam. (Henry Ford)
Às 02h30 de 25.11.2009, iniciei, na Praia da Pedreira ‒ Parque Itapuã, a tão esperada “Travessia da Margem Oriental Laguna dos Patos”, com destino a Rio Grande. Como a enseada se mostrasse tranquila e sem ondas, decidi rumar direto para o Farol de Itapuã. Tão logo me afastei da praia, fui surpreendido pela força dos ventos do quadrante Norte até então barrados pelo Morro da Fortaleza. Alterei a rota de modo a contornar cada uma das enseadas. Sob o manto da escuridão me espreitavam as pedras submersas e, por mais de uma vez, o casco chocou-se contra os rochedos. Era difícil distinguir entre as areias das praias e os calhaus. As ondas vinham de todos os lados e, com a visão dificultada pela escuridão, resolvi aportar na Praia do Araçá que fica a uns seiscentos metros a Este do Farol de Itapuã. Passei pela praia, oculta pela escuridão, sem avistá-la, cheguei próximo ao Farol, retornei novamente e nada.
Praia do Araçá
Em 1845, com a chegada dos Imperialistas à região, os Farrapos afundaram seus brigues “Bento Gonçalves” e “20 de setembro” entre a Praia do Sítio e o local onde se encontra hoje o Farol de Itapuã. Aportei no Farol de Itapuã às 03h15. Aguardei quase três horas o Sol sair e os ventos diminuírem para transpor os umbrais da Laguna dos Patos.
Ponta da “Espia” ‒ Pedra da Argola
Parti ao raiar do dia, antes das 06h00. Logo depois de transpor o Farol, avistei a Pedra da Argola. A enorme argola, de uns trinta centímetros de diâmetro, “fixada às rochas com chumbo derretido” (chumbada), fazia parte de um sistema que dá nome à Ponta da Espia, que visava facilitar a entrada das embarcações no Rio Guaíba quando soprava o vento Norte.
As embarcações faziam uso das argolas para, tracionadas através de cabos, vencer a “Ponta da Espia” onde se localiza, hoje, o Farol de Itapuã. Aqueles que contestam essa teoria talvez nunca tenham lido o relato de Henry Walter Bates, em 1849, subindo o Rio Amazonas:
Quando começava a soprar o vento Leste, o chamado “vento geral” do Amazonas, os veleiros avançavam rapidamente Rio acima, mas, quando não havia vento, eles eram obrigados a ficar ancorados perto da praia durante vários dias, às vezes; havia, porém, a alternativa de subir laboriosamente a corrente, com a ajuda da espia.
Essa forma de navegação processava-se da seguinte maneira: uma montaria ([1]) era mandada à frente, com dois ou mais homens, os quais iam puxando um cabo de cerca de vinte ou trinta braças ([2]); uma das extremidades do cabo ficava amarrada no mastro do veleiro e a outra era passada à volta de um galho ou do tronco de uma árvore. Os homens puxavam então o veleiro até o ponto onde se achava a árvore, depois embarcavam de novo na canoa e levavam o cabo mais adiante, repetindo a operação. (BATES)
Praia do Tigre e Praia de Fora
Contornei a Ponta de Itapuã e, ao alterar o rumo pra Este, novamente o vento forte se fez presente desta vez diretamente de proa. Passei pela bela enseada da Praia do Tigre e logo, em seguida, naveguei pela longa Praia de Fora. Os dezesseis quilômetros que me separavam até a Ponta das Desertas não me permitiam visualizá-la. Não havia avistado viva alma desde que partira da Pedreira, apenas um grande cargueiro entrando no Guaíba, próximo ao Farol, dava o sinal da presença humana até ali. A solidão me encantava.
O grande número de cágados, tomando banho de Sol, impressionava pela quantidade. O número, certamente, era justificado pela ausência de seu maior predador natural o “Teiú”, que barbaramente violenta os ninhos desses quelônios comendo seus ovos.
A ausência dos Teiús é justificada pelo fato de a Praia de Fora não possuir rochas que, aquecidas pela radiação solar, favoreçam o aquecimento dos corpos desses animais pecilotérmicos (de sangue frio).
Os cágados devem ter uma boa visão, pois, quando me aproximava dos bandos a uns trezentos metros de distância, eles mergulhavam afoitamente nas águas da Laguna.
Os cardumes de tainhas davam um espetáculo à parte. A área protegida, do Parque, lhes servia de abrigo e parece que elas tinham consciência disso. A água, às vezes, parecia ferver, tal a quantidade destes mugilídeos. Uma ou outra saltava na vertical, coisa que eu ainda não tinha observado, projetando seu belo e esguio corpo prateado sobre a linha do horizonte.
Remei três horas e meia até o último renque de árvores localizado na extremidade Este da Ponta das Desertas. Descansei meia hora, me hidratei e alimentei, telefonei para os familiares e a Equipe de Coordenação formada pelo Coronel PM Sérgio Pastl (Diretor de Ensino da Brigada Militar e experiente velejador), o Coronel Leonardo Roberto Carvalho de Araújo (Chefe da Seção de Comunicação Social do Colégio Militar de Porto Alegre ‒ CMPA), a professora Silvana Schuller Pineda (Clube de História do CMPA) e a minha parceira Rosângela Maria de Vargas Schardosim.
“Cabo Horn” e a Travessia das Desertas
Os ventos continuavam muito fortes vindos do quadrante Este, meu destino. Resolvi tentar a travessia e parti às 10h00. A margem Oriental, há mais de vinte quilômetros de distância, não podia ser avistada e tive de me guiar pelo GPS. Havia marcado um ponto diretamente a Leste para diminuir a rota. Em condições normais, levaria em torno de três horas para percorrer tal percurso.
As ondas de três metros e meio e o vento de proa de quase 60 km/h freavam meu deslocamento, mas, mais uma vez, o meu caiaque modelo “Cabo Horn” da Opium FiberGlass se portava galhardamente. Carregado ele se tornara ainda mais estável e eu jogava o corpo para trás para evitar que enterrasse a proa nas grandes ondas. Tinha de manter a concentração total na navegação, pois uma enterrada de remo, um movimento inadequado poderia resultar em um lamentável acidente. Como não avistava a margem oposta, vez por outra tinha de me guiar pelo GPS e constatava que ia, inadvertidamente, ziguezagueando, aumentando ainda mais o percurso.
Às 11h30, depois de navegar por 90 min, confirmei, pelo GPS, que havia navegado apenas 4,5 km. Cheguei à conclusão de que não teria condições físicas de manter aquele ritmo e a concentração por mais cinco horas e, se o conseguisse, estaria me sujeitando a enfrentar uma possível e indesejada mudança do tempo no meio da travessia e distante da segurança das margens. Resolvi abortar, temporariamente, a missão e retornar à minha última parada nas Desertas.
Montando Acampamento nas Desertas
Aproveitei, na volta, o vento de popa e as ondas, surfando. Foi um deslocamento bem mais rápido. Escolhi um lugar entre as árvores, resguardado por pequenos montes de areia, protegido do vento e iniciei a limpeza da área e a montagem da barraca.
Lavei a roupa e a estendi em um varal improvisado, reparei o casco do caiaque das avarias que sofrera com Silvertape. Estava cansado, frustrado. Era a segunda vez que enfrentara condições adversas extremas em meus deslocamentos, a primeira fora no Rio Guaíba, e a única que tivera que abortar uma travessia.
Tinha decidido descansar e, no dia seguinte, no momento em que o vento diminuísse, tentar novamente a travessia. Saí para observar o local, inúmeros biguás e cágados infestavam as praias que o vento continuava castigando impiedosamente. Tomei um bom banho nas águas da Lagoa e retornei à barraca, montei o colchão de ar e, depois de me hidratar e comer massa crua, descansei um pouco. Recebi informação da Equipe de Coordenação de que a previsão para o dia seguinte era de trovoadas e ventos mais fortes ainda e fui orientado a abortar a Missão.
O Coronel PM Sérgio Pastl providenciou uma equipe de resgate formada pelo 1° Sgt QPM1 – João Batista Prates Pedroso, do Departamento de Ensino da Brigada Militar, e do Sd QPM2 ‒ Evertom Haupenthal, da Escola de Bombeiros. Desmontei o acampamento e remei mais de onze quilômetros até o local onde se encontrava a viatura da equipe de resgate.
Fracasso Anunciado nas Desertas
A Travessia, no seu planejamento original, contava com a presença e apoio, diretamente de bordo, de nosso caro amigo o Coronel PM Sérgio Pastl e seu veleiro Ana Claci. Eu desfrutaria do conforto de sua embarcação nos locais de parada sem a necessidade de montar barraca. Em decorrência de problemas de saúde de sua esposa, ele não pôde me acompanhar, mas continuou se preocupando em fazer contato com todos os elementos que, de uma forma ou de outra, poderiam me apoiar ao longo da rota.
O sinal tinha sido claro. A missão deveria ser executada em outra ocasião. O enfrentamento recente com vento de cento e dez quilômetros por hora no Guaíba tinha sido outro sinal. A época era de ventos fortes na Laguna. Por teimosia, talvez, e condicionantes escolares, alheias à minha vontade, eu tinha de arriscar a qualquer custo. No ano que vem vamos tentar novamente e continuar tentando até atingir nosso objetivo.
E-mail do Velejador Coronel PM Sérgio Pastl
[…] desde 1992 tenho usufruído de vivências na Laguna dos Patos, e muitas vezes ela me vence. Já fui náufrago nela, veranista, feliz barqueiro a diesel, feliz velejador, passei a noite de 30 de dezembro de 2006 encalhado no Banco do Vitoriano, com a Aninha e os guris. Terrível. Sofri um rebojo em 2006 […].
Ainda noutra quebrou o mastro, sorte que a dois quilômetros de São Lourenço do Sul. Noutra ocasião, quebrei o motor […] encalhei no Capão Comprido, e quase perdi um cunhado, o Valdir, afogado, que desceu no banco de areia para empurrar. Noutra, quase encalhei no Banco do Bojuru. Confesso que rezei, e cantei salmos, de tão medroso que fiquei. […]
Ainda noutra, passei dois dias encalhado […] no Cristóvão Pereira. Noutra, 31 de dezembro de 2008, ficamos sem vento no Pontal Santo Antônio, e sem o motor […].
Depois veio um rebojo e entramos “voando” em Tapes. Levamos uma hora somente para amarrar o barco no trapiche. […]
Eu sonho com a Laguna, penso nela todos os dias, por vezes tenho medo, mas é uma cachaça. Para hoje (25 de novembro), a Marinha expedira “Aviso de Mau Tempo” na Lagoa e área Alfa, vento Força 7 da “Escala Beaufort”. És um bravo. Enfrentaste a Laguna. Não vamos desistir. Vamos nos fortalecer e voltar. […]
Vamos planejar o combate. Vamos voltar e aproveitar a Laguna em melhores momentos. Ela é linda. SELVA! (PASTL)
Escala Beaufort
O Almirante britânico Sir Francis Beaufort (1774 – 1857) criou uma escala, de 0 a 12, observando as modificações que ocorriam no aspecto do Mar, em consequência da ação dos ventos. Algum tempo depois esta tabela foi adaptada para a terra.
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 27.10.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Montaria: pequena embarcação.
[2] Vinte ou trinta braças: 44 ou 66 metros.
Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias
Deixe um comentário