Índios Patos e a Lagoa dos Patos – Parte II
A questão tem, como se vê, duas faces, uma ornitológica e outra etnográfica que, em seguida, trataremos separadamente.
O Ponto de Vista Ornitológico
As opiniões dos autores divergem muito sobre esta questão, opinando uns por aves domésticas importadas, outros por diversas aves indígenas, entre as quais é preciso mencionar particularmente: o Pato do Brasil, o Biguá e o Pinguim. O nome “Pato” cabe em geral às espécies maiores dos Palmípedes comestíveis da família Anatidæ, cujas espécies menores são denominadas Marrecas.
Esta palavra de “Pato” acha-se, em sua aplicação no Brasil, restrita à Cairina moschata (Linn.), denominada “Pato real” pelos espanhóis. Esta espécie pertence em geral mais às regiões centrais do Brasil, sendo rara, ou faltando mesmo, na maior parte do nosso litoral.
No Rio Grande do Sul, é encontrada particularmente ao longo dos grandes Rios, marginados por mato alto; mas não é ave da Lagoa dos Patos. Há nesta um cisne, Cygnus melanocoryphus ([1]), denominado “Pato arminho”. Embora seja certo que o número das aves aquáticas nas margens da “Lagoa dos Patos” diminuiu bastante nos últimos cinquenta anos, assim mesmo perto da cidade do Rio Grande obtive nada menos de 14 espécies de Anatidæs; não estava incluído, entretanto, neste número, a Cairina moschata. Como as minhas observações estão de acordo com as de Wied, Azara e outros observadores, é certo que o nome da Lagoa dos Patos não pode ser derivada de patos silvestres do gênero Cairina, posto que se tome por base as atuais condições faunísticas. Este fato, contudo, não exclui a hipótese de este nome provir de patos domesticados.
Infelizmente é muito insuficiente o nosso conhecimento das aves criadas pelos indígenas antigos do Brasil. Uma das informações mais valiosas neste sentido devemos a Álvaro Nunes Cabeça de Vaca que, em sua expedição pelo interior do Estado de Santa Catarina, em 1541, notou que os indígenas “criam galinhas e gansos à maneira dos Espanhóis”. Esta indicação evidentemente se refere a Jacus e Patos e observo que eu mesmo tive, no terreiro da minha propriedade na Barra do Camaquã, Jacus e também uma Cairina moschata silvestre, em estado mais ou menos domesticado.
Penso que entre todas nossas aves, o pato é o que com mais facilidade pode ser domesticado e cruzado com as marrecas e patos criados. Os Jacus também são amansados com relativa facilidade, mas de noite não são capazes de entrar no galinheiro, empoleirando-se, pelo contrário, na cumeeira da casa.
Von Martius diz que, na região amazônica, se criam espécies de Psophía e Crax e no Brasil Oriental o Mutum ([2]). Markgrav descreve bem o pato, mas não diz que seja criado pelos indígenas, acontecendo o mesmo com Azara, Wien e tantos outros autores, que consultei.
O Padre Nóbrega diz que, no Estado de S. Paulo, houve muita caça de mato e patos, que os índios criam; bois, vacas, ovelhas, cabras e galinhas se dão também na terra e há delas grande quantidade. Outra informação valiosa referente ao Estado da Bahia devemos a Gabriel Soares que diz:
Criam-se mais ao longo destes Rios e nas Lagoas muitas aves, a que o gentio chama “peca”, que são da feição das da Espanha, mas muito maiores, as quais dormem em árvores altas, e criam no chão perto da água. Comem peixe, e da mandioca que está a curtir nas ribeiras, tomam os índios estas aves, quando são novas, e criam-nas em casa, onde se fazem muito domésticas.
É certo que o Pato europeu não é mais senão um descendente da Cairina moschata da América Meridional. Han diz que já em tempos remotos se criavam patos na América. Na sua segunda viagem, Colombo viu destas aves em S. Domingos e entre elas também brancas. Southey conta que os indígenas no Paraguai criavam nas suas casas patos almiscarados, o que se refere à Cairina moschata. Presume-se que o pato, que era a única ave criada pelos antigos Peruanos chamado “nuñuma”, veio do Peru à Europa, passando pela África. A primeira descrição desta ave deu, na Europa, Conrad Gesner, em 1555 e, no mesmo ano, em Paris já se ofereciam patos como fina iguaria. Na América Meridional, os patos eram criados, segundo estes dados, no Peru, Paraguai e no Brasil.
Parece, entretanto, pouco provável que já então houvesse patos domesticados na costa, como se depreende também do trecho indicado de Álvaro Nunes Cabeça de Vaca.
Por esta razão não podemos admitir que a Ilha de Santa Catarina e diversos Rios, portos e a Lagoa dos Patos tivessem recebido seus nomes de patos domesticados do gênero Cairina. F. F. Outes dá sobre o nome da Ilha de S. Catarina a seguinte informação:
Santa Cruz en su “Islario” da a entender claramente que tanto a la isla de Santa Catarina como al territorio continental adyacente se conocía en la primera época del descubrimiento bajo el nombre de los Patos “por los muchos de ellos que allí se vieron la primera vez que fue descubierto”. Esta afirmación del ilustre cosmógrafo se halla confirmada en muchos documentos de la época. Me bastará citar las declaraciones de Antonio de Montoya y El “maestre” Juan en respuesta a la 20ª pregunta del interrogatorio en el pleito del Capitán Francisco de Rojas con Sebastián Caboto:
Entre los autores modernos todos han aceptado La denominación antedicha… La causa del mencionado nombre parece estar en la gran cantidad de “patos negros sin pluma, y con el pico curvo”, conforme a expresa de Francisco López de Gómara [Historia General de las Indias, in Historiadores primitivos de Indias]. Estas aves, continua Outes, algunos autores suponen que es pingüinos.
Estas informações antes dificultam do que facilitam a explicação. Não podemos admitir que estes patos tivessem sido Pinguins ‒ Spheniscus magellanicus [pinguim-de-magalhães] porque estes, embora aparecendo às vezes nas costas do Brasil Meridional, nunca entram na água doce, não podendo, por conseguinte, dar o seu nome a Rios e Lagoas. Além disto, a cor é diferente e também o bico é direito sem ponta recurvada.
O caráter indicado do bico nos faz pensar no Biguá [Carbo vigua Vieill.] que também é de cor uniforme preta, mas a expressão “sem penas” não pode ser aplicada nem a esta, nem com relação a qualquer outra espécie. Além disto, o Biguá, muito semelhante a espécie congênere da Europa, conhecido como “Corvo marinho”, não pode ser confundido com patos e marrecas ([3]) e ocorre nas costas da América Meridional desde a Patagônia até a Guiana.
Observo ainda que não é fácil explicar o nome de “Biguassu” ou Biguá grande, dado a um Rio de Santa Catarina, visto que há uma só espécie de Biguá. Há outra ave, bastante diferente em cor e bico, que é denominada Biguatinga ([4]), porém é mais ou menos do mesmo tamanho e não ocorre na costa, mas nos grandes Rios no interior do Brasil.
Deste modo entende-se que os patos a que se referem os historiadores não podem ter sido nem pinguins nem biguás [?], sendo possível que se tratasse da Cairina moschata, provavelmente então muito mais comum na zona litoral do Brasil Meridional do que hoje.
Ponto de Vista Etimológico
Numerosos escritores dos séculos XVIII e XIX referem-se a uma tribo de índios Patos. Sobre o domicílio dela diz o Coronel José J. Machado de Oliveira:
O Rio dos Patos é hoje conhecido com o nome de Biguassu, que desemboca no canal que separa do continente a Ilha de Santa Catarina; servia ele de confins ([5]) às tribos dos Carijós e dos Patos, que habitavam a primeira, o litoral entre a Conceição e o Biguassu, e a segunda o que decorre deste para o Sul.
Na sua história da Capitania de S. Vicente, publicada em 1772, diz Pedro Taques de Almeida Paes Leme:
É certo que da Vila de S. Vicente saíram, em 24 de agosto de 1554, os Padres Jesuítas Pedro Corrêa e João de Souza para a missão dos gentios Tupis e Carijós dos Patos e ambos foram mortos pela barbaridade destes índios, como escreve o Padre Simão de Vasconcellos na “Chronica do Brazil”, onde mostra que Pedro Corrêa era sujeito de nobreza conhecida, e se fizera opulento na Vila de S. Vicente, para onde tinha vindo com o fidalgo Martim Alfonso de Souza, porém que, deixando a vida secular, tomara a roupeta ([6]) no Colégio de S. Vicente, e, ordenado, de presbítero, empregara o seu talento e ciência da língua dos gentios em convertê-los à fé católica, até que encontrara com a coroa do martírio pelos bárbaros índios Carijós do Sertão dos Patos.
Outras informações sobre a região ocupada pelos Patos encontram-se no artigo de Felix F. Outes, “El puerto de los patos”, que reproduz vários Mapas antigos do Brasil e do Paraguai que, além dos dados geográficos, contêm indicações sobre as diversas tribos indígenas. Estes Mapas dão para a região do Rio Grande do Sul (RS) e parte contígua de Santa Catarina o nome dos índios Patos. O mais antigo destes Mapas com tal indicação é o da Est. VIII, “construído por los Jesuitas [1646 – 1649]”. Todos os outros Mapas seguintes indicam na mesma região os índios Patos. Os Mapas mais antigos, publicados por Outes, não dão os nomes das tribos indígenas.
Não parece existir nenhuma informação exata sobre estes Patos. Tomando em consideração que o território do RS, nos tempos antigos, não foi explorado e só bem tarde foi colonizado, não é de admirar que sejam escassos e insuficientes os dados referentes aos primitivos habitantes do Rio Grande do Sul. É singular, entretanto, que o livro do Padre Gay, tratando minuciosamente dos indígenas do Brasil Meridional e do Paraguai, nem sequer nos transmita o nome de uma nação dos Patos.
É bastante notável neste sentido o manuscrito do ano de 1612 que Gay reproduz com referência aos indígenas do Rio Grande do Sul, mencionando Guaranis, Arachanes, Charruas e Goianás. Nem o manuscrito anônimo de 1584, nem Gabriel Soares mencionam os Patos, tratando, aliás, apenas dos indígenas desde o Pará até Santa Catarina.
Com referência ao livro de Ayres Casal, diz Alfredo F. Rodrigues, ter ele sido o primeiro a mencionar os índios Patos, ao passo, que segundo F. Outes, ele se teria referido não a índios, mas à ave Pato. Neste sentido, trata-se de um engano do último dos dois autores, visto que o livro de Ayres Casal se refere exclusivamente a índios. Em geral podemos verificar que os escritores do século XVI não mencionam índios Patos, referindo-se apenas às aves palmípedes e que nas publicações do século XVII se acha registrada uma tribo de Patos, sem que, entretanto, fossem dadas informações exatas.
Conclusões
Resulta da exposição precedente que, para a explicação dos nomes da Lagoa dos Patos, do Rio dos Patos, etc. na literatura antiga há duas versões: Uma que se refere às aves palmípedes de que trata a literatura do século XVI e outra referente aos índios Patos segundo a literatura do século XVII e seguintes. Contra esta segunda opinião pode-se objetar a falta de informações, referentes a estes indígenas na literatura mais antiga e isto no próprio manuscrito anônimo de 1612, publicado por Gay. É preciso, entretanto, considerar que algum dos outros nomes de tribos rio-grandenses, indicados naquele manuscrito, pode ser sinônimo do dos Patos e, mais, que argumentos de caráter negativo nada provam, particularmente, sendo, como é, a literatura antiga deficiente em informações etnográficas aproveitáveis. Por sua vez, a literatura do século XVI contém várias informações sobre a origem ornitológica destas denominações, mas as mesmas são contraditórias entre si. As aves a que se referem os antigos escritores, é lícito supor-se, não devem ter sido nem pinguins ou biguás nem marrecas ou patos domesticados. Já João Dias de Solis, em 1515, deu à Ilha de S. Catarina o nome de Ilha dos Patos, sendo impossível supor que isto dissesse respeito a aves domesticadas, importadas da Europa.
Se as diversas denominações dos “Patos” fazem referência a aves aquáticas, pode-se tratar apenas do “Pato Real” [Cairina moschata], devendo-se supor que esta ave tenha existido naquela época em muito maior número que hoje, nas costas do Brasil Meridional. Se assim for, não seria para admirar que os exploradores tivessem dado a várias localidades a denominação dos “Patos”, visto representar esta ave, sem dúvida, a caça mais valiosa entre as aves aquáticas daquela região.
Em favor desta hipótese posso acrescentar o resultado de um estudo geológico por mim publicado, que prova uma modificação profunda no caráter da vegetação no litoral do Rio Grande do Sul. Perto da costa observei, na vizinhança da cidade de Rio Grande do Sul, Colinas, coroadas de uma vegetação de arbustos espinhosos, que mostravam, pouco em baixo da superfície uma camada argilosa, humosa, com conchas terrestres e fluviais, que sugerem uma modificação profunda da flora e da fauna. De experiências desta ordem devem lembrar-se os engenheiros que pretenderam melhorar as condições da Barra; recomenda-se, como auxílio indispensável, a defesa das terras por meio de vegetação, não só nas margens do canal, mas também numa faixa de 1 a 2 léguas de largura.
É preciso confessar que os dados aqui expostos não conduziram a um resultado seguro.
Admitindo que os autores que falam de índios Patos tivessem cometido um erro, a mesma suposição é aplicável aos autores do século XVI, cujas informações a respeito das aves “patos” são contraditórias, mas também em parte incompreensíveis e evidentemente falsas. A explicação, entretanto, que nas atuais circunstâncias mais se recomenda, é a do Sr. Alfredo F. Rodrigues, que precisa ser modificada só no que diz respeito às aves que causaram a dita denominação. O caso seria então o de ter sido, antigamente, o Pato Real muito mais frequente no Brasil Meridional do que atualmente, tendo causado a denominação de várias localidades porque, como excelente caça que é, tornou-se digno de toda atenção por parte dos descobridores. O que neste sentido nos confirma mais nesta opinião é o fato de existirem também, em outros Estados do Brasil, localidades com a denominação de “Patos”, como nos estados de Minas Gerais e Paraíba. Não podemos atribuir estes nomes também naqueles Estados a uma tribo desconhecida dos Patos, sendo ao contrário evidente que a explicação, que deriva de uma origem comum a todas estas denominações, é a mais aceitável.
São Paulo, 08 de agosto de 1903. (IHERING)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.10.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
HERING, Hermann Von. Os Índios Patos e o Nome da Lagoa dos Patos – Brasil – São Paulo, SP – Revista do Museu Paulista, Volume VII, 1907.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Cygnus melanocoryphus: cisne-de-pescoço-preto. (Hiram Reis)
[2] Mutum: Crax carunculata Temm. (Hiram Reis)
[3] Observando os biguás pousados nos troncos secos ou nas margens, secando-se ao Sol, após seus longos mergulhos em busca das presas, os antigos cronistas podem ter sido levados a acharem que estes palmípedes não possuíam penas. (Hiram Reis)
[4] Biguatinga: Anhinga anhinga. (Hiram Reis)
[5] Confins: limite.
[6] Roupeta: hábito talar ou batina dos sacerdotes.
Nota – A equipe do Ecoamazônia esclarece que o conteúdo e as opiniões expressas nas postagens são de responsabilidade do (s) autor (es) e não refletem, necessariamente, a opinião deste ‘site”, são postados em respeito a pluralidade de ideias