Jornada Pantaneira 

A Medicina na Guerra do Paraguai – Parte XIII

A MEDICINA NA GUERRA DO PARAGUAI
(Mato Grosso)

LUIZ DE CASTRO SOUZA
Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Membro titular do Instituto Brasileiro de História da Medicina. 

Diz José de Mesquita, que o Alferes Farmacêutico Reginaldo José de Miranda faleceu de varíola (MESQUITA).

Talvez em fevereiro ou março de 1868, pois, no relatório do Delegado do Cirurgião-Mor do Exército, de janeiro de 1868 não se encontra mencionado o seu óbito e sim em exercício da função farmacêutica.

No mapa nosológico para o ano de 1867, relativo ao Hospital Militar de Cuiabá e às Enfermarias Militares dos Distritos de Poconé, Vila Maria e da cidade de Mato Grosso, incluindo os hospitais de sangue, ambulantes e temporários de variolosos, assinala o Delegado do Cirurgião-Mor do Exército em seu relatório oficial, que predominaram, consideravel­mente, a varíola em caráter epidêmico, seguindo-se as “febres intermitentes paludosas” e as doenças do “aparelho digestivo” [enterocolites, diarreias e disen­terias]; em terceiro lugar “as afecções cutâneas”, com especialidade; em quarto lugar, a “sífilis”.

A “sífilis” compreendia, na época, as doenças venéreas; continuando em decréscimo as “feridas” diversas, sem especificar; as doenças do “aparelho respiratório”; as “nevroses” e outras de menor número de casos que não mereceram ser citadas.

A inclemente epidemia que assolou as terras mato-grossenses – indo aumentar a dor e o sofrimento daquela gente martirizada pela guerra, tratava-se de varíola confluente, segundo a classificação do Dr. Francisco de Azeredo em seu relatório, e que é a forma mais grave,

As pústulas se imbicam e prolongam, uma em outra, como se fora um acolchoado de pus, ora na face, ora no dorso das mãos, ora em grandes superfícies do corpo (PARREIRAS).

É a denominada “bexiga lixa” do linguajar popular, porque a pele se enruga como lixa. O trajeto impiedoso do flagelo atinge a todos os lares cuiabanos.

E os que se encontravam longe da terra, como era o caso do Tenente-Coronel Cirurgião-Mor de Divisão, Dr. José Antônio Murtinho, procuravam regres­sar para ficar junto dos seus. Assim fez esse médico militar que acabara de obter reforma do Exército, mas ao chegar à capital da Província, aos 19.10.1867, encontra seus filhos na orfandade. Dois dias depois, assinala Estevão de Mendonça, encaminhou-se ao cemitério de Nossa Senhora do Carmo, no Cai-Cai construído especialmente para receber cadáveres dos variolosos, a fim de reverenciar e levar flores ao túmulo de sua estremecida esposa, por entre lágrimas e soluços dos sete filhos mais crescidos (MENDONÇA). Diz Virgílio Corrêa Filho, que o abalo causado pelo desapare­cimento da companheira querida, iria modificar-lhe a personalidade e

Afastou-se quanto possível da clínica civil, exercida apenas para satisfação de clientes mais necessitados de seus desvelos (CORRÊA FILHO).

Dr. Murtinho como Vice-presidente em exercício, em fevereiro de 1869, diante do júbilo da ocupação da capital paraguaia, mandou uma Comissão a Assunção, com o fim de cumprimentar o Comandan­te-em-Chefe das Forças Brasileiras, mas o Governo Imperial impugnou as contas das despesas por julgá-las desnecessárias, obrigando o mesmo a assumir a responsabilidade pessoal dos gastos ([1]).

O Coronel Hermenegildo de Albuquerque Porto Carrero, comandante interino das Armas em Mato Grosso, em sua representação, datada de 24.10.1867 ([2]), elogia oficiais inferiores e soldados “que mais tem se destacado por serviços humanitários” na Província. Entre os oficiais médicos faz referências ao Capitão 1° Cirurgião, João Tomás de Carvalhal e Tenente 2° Cirurgião, Dr. Dormevil José dos Santos Malhado, quando acentua que este médico militar foi nomeado 1° Cirurgião e encarregado do Hospital temporário, em 16 de julho último, desenvolvendo

Grande soma de zelo, perícia e dedicação no tratamento dos variolosos.

Quanto ao Capelão Militar, Padre Benedito de Araújo Filgueira, afirma que o sacerdote esteve empregado no Hospital temporário, tendo prestado

Bons serviços caridosos durante a epidemia até cair doente, vítima de seu zelo.

Outro profissional que teve atuação destacada no período da epidemia, foi o farmacêutico Joaquim Alves Ferreira Sobrinho, como anteriormente, na invasão paraguaia, havia tido também exemplar e digna conduta (MENDONÇA).

A todos os componentes do Serviço de Saúde do Exército e Armada, somos devedores pelo muito que realizaram em prol da saúde da população mato-grossense, cuja exaltação é um dever que nos cumpre assinalar, pois, foram realmente beneméritos pela dedicação, inteligência, atividade, estoicismo. É o culto e o apreço que nessa hora desejamos celebrar, como preito, do mais alto e comovido respeito, para quem tudo fez para minorar o sofrimento e a dor dos seus desventurados irmãos.

Assim, ao simbolizarmos a todos por igual, evocamos a pessoa do Delegado do Cirurgião-Mor do Exército, Dr. Francisco Antônio De Azeredo ([3]), como Diretor da Saúde Militar e Pública, que ele tão bem soube encarnar e dignificar, numa hora das mais dramáticas que atravessava uma das províncias do Império do Brasil.

XI

OS MEIOS DE TRANSPORTE DE DOENTES E FERIDOS

O socorro e a evacuação dos soldados feridos em combate receberam em todas as épocas, as melhores atenções e cuidados dos responsáveis pelo estado sanitário dos exércitos, pois, são problemas considerados fundamentais na organização das tropas em atividade, e cuja essência primordial é baseada nos meios de transporte e da assistência imediata ao doente ou ferido. Cabe, realmente, ao exército francês, a honra de ter sido o inovador nas medidas de melhoria e solução desses problemas, quando por inspiração do seu cirurgião-mor, o grande LARREY, criou e pôs em execução a primeira unidade móvel, capaz de acompanhar todos os movimentos da tropa à semelhança da artilharia volante, levando os primeiros socorros e atendendo ao soldado ferido no próprio terreno de combate.

Dominique Jean LARREY

Dominique Jean LARREY [1766-1842] concebeu sua unidade volante quando era cirurgião-chefe do Exército do Reno, em 1792, e levando à conside­ração superior, foi esta imediatamente aceita pelo comandante-em-chefe e comissário geral. Essas unidades volantes eram constituídas de três cirurgiões e um enfermeiro, montados em vigorosos cavalos, levando os enfermeiros grandes caixas contendo instrumental cirúrgico e material de curativo – ataduras, fios para sutura, compressas, vinho, vinagre, aguardente, sal, caldo, etc. As cober­tas e as padiolas iam em outros compartimentos. Quanto à viatura-ambulância para o transporte de doentes e feridos, esta ficou improvisada num carroção guarnecido de palha e com toldo de pano impermeabilizado, estendido sobre arcos de ferro. Entretanto, a 11.11.1792, a Convenção Nacional francesa, decreta a construção de viaturas suspensas, especiais para o transporte de feridos e doentes dos exércitos, conforme a concepção também de LARREY.

Baseado neste Decreto, o Departamento de Guerra abre concurso público, em 23.01.1793, para o melhor modelo apresentado, oferecendo um prêmio em dinheiro ao vencedor. O aviso, afixado nas pare­des, é constituído de vários itens, onde além da recomendação de comodidade, resistências, facilida­de de construção, preço, locomoção, leveza, etc., são especificadas as condições que devem possuir para defender o doente contra os insetos, poeira, lama, mau tempo, sem, entretanto, impedir a renovação do ar e a entrada de luz. É um documento interes­santíssimo e que marca, sem dúvida, um progresso notável na história da organização militar. A Comissão julgadora é constituída, além do Conselho de Saúde, de mais dez membros indicados pela Faculdade e Sociedade de Medicina, pelo Colégio e Academia de Cirurgia e pela Academia das Ciências de Paris (CABANÈS).

Ambulância Ligeira de Larrey

A comissão seleciona dois modelos que depois, rejeita, porém, mais tarde, o comitê militar da Convenção faz construir uma viatura baseada nesses projetos e que vem demonstrar, na prática, a impossibilidade do uso a que se destinava. Larrey, somente em 1797, na Expedição da Itália, pôde ver seus projetos amplamente utilizados com todos os componentes, inclusive sua ambulância ligeira, montada sobre molas, sustentada por duas rodas e puxada por dois cavalos, que constituiu a grande inovação para a melhoria do atendimento ao soldado ferido ou doente. Já o contemporâneo de Larrey, o cirurgião-mor Percy, criava, em 1796, uma companhia de 120 enfermeiros, escolhidos entre os soldados de boa vontade. Esses homens exerciam a função de padioleiros e atuavam no campo de batalha recolhendo os feridos, porém, celebrada a paz, foi extinta esta companhia. Outra tentativa de melhoramento deste cirurgião francês é a construção de um carro muito comprido, em forma de caixa e por isso apelidado com a palavra alemã Wurst [salsichão], que transportava, escarranchados, os cirurgiões sobre as caixas de material para curativo, cuja capacidade de atendimento era previsto para 1.200 feridos (CHEVALIER). Esses carros eram puxa­dos por quatro cavalos e pelo seu formato, peso e pouca mobilidade, não tiveram o resultado esperado e caíram no esquecimento, ficando, apenas, como curiosidade. Pierre-François Percy [1754-1825], figura na história da medicina militar não só como grande cirurgião e organizador, mas, também, como precursor da neutralidade das formações sanitárias e inviolabilidade dos hospitais. Ele propõe, em abril de 1800, ao seu comandante o General Moreau que encaminhe ao General Kray, chefe do exército austríaco, um convênio que levou a sua redação e marcado de profundo sentido humano e cristão, no qual são consideradas neutras e intangíveis as unidades do Corpo de Saúde dos exércitos.

Ambulância de Percy – Wurst (salsichão)

É um documento que muito honra o cirurgião-mor Percy e precede de 64 anos as disposições da 1ª Convenção de Genebra que assinalaram os mesmos propósitos de respeito à pessoa humana. Quanto à viatura-ambulância de Larrey, esta atuava plenamente em áreas mais ou menos planas, porém quando o exército combatia em terrenos acidenta­dos, como nos desfiladeiros da Itália, observou-se sua inutilidade. Aí, o serviço de saúde, ainda sob a supervisão de Larrey, improvisou uns cestos, colocando-os no lombo das mulas, como o nosso caçuá ([4]), para o transporte de medicamentos, fios de sutura, ataduras e instrumentos necessários aos primeiros socorros.

Cacolet

Era o princípio do “cacolet”, que depois foi inteligen­temente adaptado ao transporte de feridos, em várias Expedições Militares. Logo após, na Campanha do Egito [1798-1799], Larrey, como cirurgião-chefe, fez construir, então, cem liteiras, em formato de berço, que eram colocadas uma em cada lado da giba do dromedário, prosseguindo sua atividade infatigável de amparo ao soldado e por isso gran­jeou-lhe o cognome de a “Providência dos Soldados”. Napoleão, em Santa Helena, ao fazer o seu testa­mento, não esqueceu Larrey e o fez de modo todo especial e comovente, quando escreveu:

Deixo ao cirurgião-chefe Larrey cem mil francos: é o homem mais virtuoso que conheci (BACELLAR).

Transporte de feridos, de Larrey, no Egito

A primeira vez que se usou o “cacolet” no transporte de feridos, foi na expedição francesa de Máscara, Província de Orã, Argélia, no ano de 1835. O “cacolet” era constituído de dupla cadeira de braços, em metal, articuladas e dispostas de maneira a se colocar um doente de cada lado, sustentadas no lombo de mula ou cavalo. As mulas por serem mais dóceis e mais fáceis de serem conduzidas, tinham a preferência da escolha. Poder-se-ia colocar o doente em posição horizontal, em leito, porém, era neces­sário um animal forte, e reajustar seus compo­nentes.

Cacolet, padiola, rede e andas

O “cacolet” foi utilizado amplamente nas guerras da Península e nas expedições francesas da África, não se adaptando seu uso, entretanto, nos camelos e dromedários. Na Guerra do Oriente ou da Crimeia [1854-1856], foi inestimável o seu auxílio como meio eficiente e útil no transporte de feridos e doentes.

Banguê

*   *   *

Na Coluna Expedicionária de Mato Grosso, organizada em princípios de 1865, havida de improvisação e afogadilho, o Capitão 1° Cirurgião, Dr. Antônio De Jesus e Souza, Chefe do Corpo de Saúde, demonstrando possuir espírito organizador e estar à altura do alto cargo em que fora investido, requisitou para a sua repartição, mais de quarenta “cacolets”, fabricados no Arsenal de Guerra da Corte [Rio de Janeiro], autorizado a entregar-lhe, com urgência, pelo Ajudante-General, a 09.03.1865, além de outros objetos e instrumentos que o Diretor do Arsenal imediatamente cumpriu. A previsão deste chefe militar não tardou muito a ser testada, pois ao sair a Expedição da cidade de Campinas, São Paulo, quando se manifestou o primeiro surto de varíola no contingente, principalmente naqueles soldados caboclos da companhia de artilharia do Amazonas que foram quase todos dizimados, os convalescentes dessa virose e doentes de outras entidades mórbi­das, utilizaram-se do “cacolet”.

Na zona do Rio Negro e nas fraldas da Serra do Maracaju, a Coluna Expedicionária era infectada pela malária e logo depois surgia o beribéri, em caráter epidêmico, atingindo um número considerável de soldados, resultando daí a grande serventia desse meio de transporte e comprovado seu valioso auxílio. O Capitão Liberato Augusto Pereira Lomba, do 21° Batalhão de Infantaria de Minas Gerais, foi transportado de Miranda a Nioaque, percurso de 210 quilômetros, num “cacolet”, suavizando, desse modo, seus padecimentos até os últimos momentos de sua existência, vitimado que fora pelo beribéri. Quando da Retirada da Laguna, ainda existiam dois “cacolets”, como remanescentes, que foram providenciais para quatro soldados, feridos na carga de cavalaria de 11.05.1867, os quais se salvaram graças a esse excelente meio de transporte.

Em 1872, o então Ministro de Guerra, João José de Oliveira Junqueira, dirige-se, por meio do Aviso de 16 de maio, ao Conde d’Eu, na qualidade do antigo comandante-em-chefe do Exército Imperial Brasilei­ro, solicitando-lhe parecer para vários itens de interesse na organização do exército, cujas respostas deveriam ser baseadas na observação e experiência adquiridas na Campanha do Paraguai.

O 5° Quesito compreendia os meios de transporte e embora o Conde d’Eu não tenha apresentado solução para o problema de transporte de feridos, diz que os “cacolets” tão conhecidos no Exército francês,

Prestaram bons serviços na coluna de Mato Grosso, não puderam ser empregados com vantagem no Paraguai por falta de burros bastantes robustos para suportar o peso de dois indivíduos sentados no “cacolet”,

e pelo que ele pôde observar,

Os doentes e feridos eram transportados do Hospital de Sangue para os lugares da base de operações, nas próprias galeras que até esse momento tinham conduzido munições de artilharia, e que depois dos combates achavam-se vazias; na falta destes, nas carretas em que os fornecedores tinham trazido a farinha e outros gêneros para o consumo do exército ([5]).

Assim, no documento firmado pelo antigo comandan­te-em-chefe, Marechal Conde d’Eu, fica demonstrado que no teatro principal da Guerra do Paraguai, os doentes e feridos eram removidos em viaturas de munições e de provisões, vazias, inadequadas e incô­modas, sendo que, nestas últimas, de graves conse­quências pelo perigo da propagação de doenças infectocontagiosas. Conde d’Eu, em 14.05.1869, co­munica ao Presidente da Província de Mato Grosso que as Forças existentes em Cuiabá deveriam se mover em direção ao sul da Província e daí para Assunção, recomendando a remessa

De todo o material de hospital,

bem como

Os “cacolets” que se achavam em depósitos, dos que haviam sido, do ponto dos Baús, mandados para a capital pela Expedição de Mato Grosso (TAUNAY, 1926).

O príncipe, que era conhecedor da boa aplicação do “cacolet”, desejava vê-lo instituído no Exército sob seu comando, mas foi inaplicável pela falta de animais bastante robustos, como afirmara. O Marechal Conde d’Eu, respondendo à solicitação do Ministro da Guerra, acima referida, fez várias considerações sobre a reorganização do Serviço de Saúde do Exército Brasileiro, de muito interesse e objetividade, cujos conceitos emitidos, representa­ram, para a época, as aspirações dos médicos milita­res (CASTRO SOUZA, 1959).

Na segunda retirada de Corumbá, após a gloriosa retomada, os bravos brasileiros saíram levando os primeiros enfermos pela varíola. Na travessia pelos pantanais, a doença foi recrudescendo e ceifando vidas, obrigando-os a deixar, ali e acolá, os cadá­veres dos companheiros falecidos, servindo de pasto às vorazes piranhas. Ao atingirem os retirantes o Rio São Lourenço, as embarcações foram rebocadas até o porto Alegre, pelos vapores “Antônio João” e “Jauru”, sendo que este, levou a reboque, duas igari­tés com oitenta variolosos, servindo de enfermarias, ficando o Jauru, por isso, na margem oposta, isolan­do-se por causa dos doentes, quando se deu o com­bate com o inimigo, a 11.07.1867.

Em terra, os variolosos eram transportados pelos soldados, em “andas rústicas”. Em Coxim, Mato Grosso, um dos três Alferes-capelães que serviam à Coluna Expedicionária de Mato Grosso, o Padre Antônio Augusto de Andrade e Silva, foi acometido de retenção de urina que persistiu durante 48 horas e após ter cedido, caiu o sacerdote em profunda prostração por um dia e despertou recuperado. Resolveu, então, voltar para a Corte [Rio de Janeiro], deixando a Expedição, viajando, nessa ocasião, deitado em banguê ou liteira (TAUNAY, 1948).

Na Força Expedicionária de Mato Grosso, outros meios foram utilizados na remoção de enfermos e feridos, como: a rede, carregada por dois homens e suspensa a uma longa vara ou caibro pelos seus “punhos”, o secular instrumento de transporte brasileiro; a padiola fabricada no Arsenal de Guerra da Corte e levada pela repartição de saúde; a pelota, que é um quadrado de varas por dentro do qual se amarra o couro de boi, bem seco, foi constantemente utilizada no transporte de doentes e feridos, na travessia de rios, trata-se de uma embarcação de uso da mais remota época (GOULART).

Na Retirada da Laguna, as carretas de artilharia e os carroções foram transformados em viaturas-ambu­lância; estes transportes acolhiam o dobro da lotação e de todos os lados deixavam pender braços, pernas, cabeças daqueles infelizes soldados da “Constância e do Valor”, consumidos pela miséria orgânica; as galeras, os “carros-manchegos” ([6]) e “armões” das peças foram, também, outros recursos aproveitados, sendo que neste último tipo, o Comandante Camisão, passou seus derradeiros momentos de vida. E, finalmente, depois do desaparecimento dos carros pela necessidade da carne dos animais para o alimento e a madeira destinada à fogueira para o aquecimento do organismo umedecido pelas enxurradas diluviais e constantes, somente restaram as padiolas de couro mal curtido ou as “andas rústicas”, improvisadas com varas e cipós, cada qual ocupando quatro homens.

Pelo aumento assustador dos doentes, imaginou o Coronel Camisão, no auge do desespero e da retirada, um novo arranjo para as padiolas: colocar os doentes em couros cortados ao meio e levantadas pelas pontas, espécie de cadei­rinhas, para possibilitar o transporte de dois, em vez de apenas um.

Essa maneira e inovação, recebeu a opinião contrária de toda a oficialidade ao ser consultada, pois sabia que a soldadesca estava exausta e não aguentaria sobrecarga de peso, já com os “pés esfolados e tintos de sangue”. Ao atingir os retirantes a margem direita do Prata, primeiro afluente do Rio Miranda, o número de padiolas carregadas com doentes, atinge à cifra dos noventa e seis, numa marcha lenta e fúnebre, verdadeira procissão de sofrimento, miséria, dor… A missão de padioleiro é das mais nobres e edificantes, pois encarna o mais alto sentido da solidariedade humana e se eleva pelo sublime espírito de abnegação e de heroísmo. Na Retirada da Laguna, ela se apresenta em toda sua plenitude, com exemplos nobres e páginas de ternura.

Narra o Visconde de Taunay aquele episódio tão comovente e cheio de amor fraternal, do soldado do corpo de cavalaria de Mato Grosso, Alexandre de Campos Leite, que ajudou a transportar seu irmão Martinho, numa padiola, durante dois dias, ininter­ruptamente, não permitindo que o revezassem naquela tarefa, pois considerava ser sua obrigação, seu dever… (TAUNAY, 1878). Hoje, diante da transcrição nominal que fizemos dos doentes aban­donados, em 26.05.1867, até então inédita, sabemos do drama maior vivido por este soldado: seu irmão mais velho Martinho, do 19° Corpo de Caçadores a Cavalo, ficara, também, por ordem superior, na clareira aberta para receber aqueles infelizes soldados.

E, ainda, na Retirada da Laguna, quando o derradeiro transporte, eram as “andas rústicas” e os soldados se encontravam exaustos, famintos e ver­dadeiros farrapos humanos, muitos se recusavam a carregar seus companheiros doentes, porque mal podiam consigo. Foi necessário o uso da força e a redobrada vigilância dos oficiais, pois, ao menor descuido largavam os enfermos pelos caminhos.

Naquela trágica ocasião, um doente ia perecendo num grande charco pela queda de um dos carregadores da padiola e assistido pela indiferença dos outros três que caminhavam extenuados e de pés sangrando, quando, surgiu, inesperadamente, o quarto apoio, o ombro de um oficial, para salvar aquele infortunado brasileiro. Chamava-se esse militar: Alferes Manoel Clímaco dos Santos Souza, que mereceu os aplausos de todos e deu exemplo eloquente e eterno de amor e respeito à pessoa humana (TAUNAY, 1874).

Hoje, evocamo-lo como símbolo digno do Exército de Caxias, cujo nome deve ser inscrito no bronze da história para todo o sempre. Os médicos militares permaneceram firmes e vigilantes em seus postos, acompanhando os soldados feridos e doentes, com desvelos e cuidados, notadamente quando de suas remoções, nos vapores, nas igarités, nas padiolas, nas redes, nas canoas de todos os feitios, nas viaturas improvisadas, nas “andas rústicas” e outros meios de transpor-te, seguindo as trilhas funda­mentais de um verdadeiro sacerdócio, principalmen­te, porque cumpriram o “decálogo ético” de sua profissão e deram provas de

Possuir uma alma predestinada ao serviço do enfermo, amando-o tanto quanto a si mesmo… (VASCONCELLOS, 1957),

Para real júbilo e orgulho da medicina militar brasileira. (CONTINUA…)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 20.09.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia   

SOUZA, Luiz de Castro. A Medicina na Guerra do Paraguai (I a V) – Brasil – São Paulo, SP – USP, Revista de História, 1968, 1969 e 1970. 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;  

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Segundo MENDONÇA, o Dr. Murtinho faleceu na cidade de Cuiabá, aos 20.08.1888, cercado pelo respeito e reconhecimento do povo mato-grossense, deixando oito filhos, muitos dos quais se projetaram no cenário político e científico do país. (SOUZA)

[2]    Arquivo Nacional. IG 1 – 242, doc. 503. (SOUZA)

[3]    Reformou-se no posto de Tenente-Coronel Cirurgião-Mor de Divisão, tendo falecido em sua cidade natal, Goiás, no dia 23.09.1884. Era Cavaleiro da Ordem de São Bento de Aviz. Publicou: Manual de agricultura elementar, Goiás, 1875 [Blake]. (SOUZA)

[4]    Cesto grande e comprido de vime, cipó ou bambu, sem tampa e com alças para prender às cangalhas no transporte de gêneros diversos em animais de carga. (Hiram Reis)

[5]    Anuário do Museu Imperial. Vol. II, Petrópolis, 1941. (SOUZA

[6]    Carro de munição de artilharia. (Hiram Reis)

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