Jornada Pantaneira
Mello, o Bravo!!! – Parte I
[…] abdicando então à terra, precedeu-se ao desembarque no Bananal, antes do Sará e, desenvolvendo qualidades excepcionais de energia e espírito de ordem, que de pronto lhe asseguraram as regalias de completa força moral sobre aquela coluna de fugitivos, preparou-se para seguir pausadamente e com toda cautela pelos pantanais de São Lourenço em direção à capital Cuiabá. O que foi aquela terrível marcha durante quatro meses, por pauis quase invadeáveis, em solo sempre encharcado, cortado de fundos corixos, na estação mais rigorosa do ano, debaixo de contínuos aguaceiros, por lugares nunca transitados, sem guia, vencendo enormes distâncias e rios caudalosos, que todos deviam transpor, desde os mais fortes e impacientes até os mais débeis e retardatários, passa os limites da descrição. Só mesmo alma de herói, empenhada em sacrossanta missão. Sabia que, nada menos de 400 vidas, homens, mulheres, crianças e velhos, dependiam só e unicamente da sua serenidade e coragem e dessa convicção tirava recursos para encarar sem desfalecimento as mais cruéis e desesperadoras conjecturas. Também severíssima e meticulosa disciplina reinava naquela mísera coluna, a que se haviam juntado não poucos índios Terenos, Laianos, Quiniquináos e Guanás; e os castigos não eram poupados ao mais leve delito – caso de salvação pública. (TAUNAY, 1891)
Mello, o Bravo
(D. Francisco de Aquino Correia)
Quando, à frente do povo imenso e belo
De mulheres, crianças e anciões,
Que salvaras do exílio e do cutelo,
Através de cem léguas de sertões,
Entraste, como um Cid o mais singelo,
Na cidade a sorrir-te em mil festões,
A alma da Pátria sobre ti, ó Mello,
Vibrava em beijos, festas e canções.
Foi ela, pela mão de uma menina,
Quem, nessa fronte heroica e peregrina,
Pôs-te um nimbo de pétalas triunfais.
Mas, hoje, é a deusa rútila da Glória,
Que, do Panteão na cátedra marmórea,
Impõe-te a láurea em flor dos imortais!
***
Preza aos céus que o bom senso, e gratidão nacional, que hoje colhe neste continente do Império os frutos de vossos suores, não só bendiga a mão benéfica que lhe os liberta, como também recompense devidamente, um dia, tão valiosos quão relevantes serviços!
(Dr. José da Costa Leite Falcão)
***
Não poderíamos deixar de exaltar a excepcional figura do Tenente João de Oliveira Mello, destacando-se as qualidades de liderança, coragem e desprendimento, demonstrados anteriormente, mas reafirmados da desassombrada atitude, abandonando uma retirada segura, para reunir-se àqueles que necessitavam dele e guiá-los a seu destino: jornadas pontilhadas de tremendas dificuldades e perigos: imaginemos aquela marcha, através dos pantanais de Corumbá, São Lourenço e Cuiabá.
(General Breno Borges Fortes)
O Comandante das Armas, Cel Carlos Augusto de Oliveira, apoiado pelo seu Estado-maior, embarcou suas tropas no “Anhambahy”, no “Jaurú”, na escuna argentina “Jacobina” e outras pequenas embarcações fugindo para Cuiabá abandonando covardemente a população local e soldados remanescentes à própria sorte.
O Tenente João de Oliveira Mello, se apresenta, então, voluntariamente, para conduzir os desprotegidos para Cuiabá. Foi uma penosa marcha de quatro meses, percorrendo quase 500 km, conduzindo militares, civis, idosos, mulheres e crianças enfrentando todo o tipo de privações por uma rota desconhecida e cheia de obstáculos. Quando Mello e sua maltrapilha e famélica multidão chegaram à capital da Província foram recepcionados entusiasticamente pelo Presidente da Província, diversas autoridades políticas e eclesiásticas e uma considerável massa popular.
A Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso (IHGMT) N °14 reproduz, no ano de 1927 (Tomos XVII e XVIII) o Relatório do Tenente Mello:
Tenente João de Oliveira Mello
Relatório Apresentado pelo 2° Ten João de Oliveira Mello Acerca de sua Viagem de Corumbá à Capital (1865)
N° 130 – Ilm° e Exm° Sr. Em observância do despacho de V. Exª de 4, exarado no ofício datado de 3, tudo do corrente, do Ten Cel Cmt da Guarnição desta Capital, cobrindo o relatório apresentado pelo 2° Tenente do Corpo de Artilharia da Província João de Oliveira Mello acerca da sua viagem pelos pantanais do Baixo Paraguai até esta Capital, passo a informar com o que me ocorrer.
Pouco poderei dizer acerca das diversidades das circunstâncias em que se achou este oficial, pois que não mais o vi desde a saída da Povoação de Corumbá no dia 2 de janeiro último.
Sei que estando ele a bordo do vapor “Anhambahy” – naquele dia passara para da Escuna, como refere, mas tendo largado o vapor o porto de Corumbá, ignoro o que então ocorrera: certo é que mesmo durante minha viagem para esta Capital sabia-se por notícias de algumas particularidades que refere no seu relatório.
Na minha opinião entendo que este Oficial prestou muito bons serviços, nas circunstâncias em que se achou, e por isso digno de toda a consideração. Se me é grato ter assim de exprimir-me acerca deste Oficial e também dos 2os Tenentes Manoel Joaquim de Paiva e João Izidoro Chaves pelo procedimento louvável que tiveram, reconhecido por aquele, pesa-me dizer que o que vem referido acerca do 2° Tenente Antônio Paulo Corrêa o coloca na posição da mais severa censura.
Entendo que as despesas feitas pelo referido 2° Tenente Mello com transporte de sua numerosa comitiva devem ser pagas pela Fazenda Pública.
Nada mais me ocorre dizer acerca do referido Relatório. Deus Guarde a V. Exª – Quartel do Comando das Armas de Mato Grosso em Cuiabá, 10.05.1865. – Ilm° Exm° Sr. Brigadeiro Alexandre Manoel Albino de Carvalho, Presidente desta Província – Carlos de Moraes Camisão, Tenente-Coronel Comandante interino.
Conforme
Joaquim Felicíssimo d’Almeida Louzada
Ilm° e Exm° Sr. – Tenho a honra de passar às mãos de V. Exª o incluso Relatório, que acaba de apresentar-me o 2° Tenente do Corpo de Artilharia da Província João de Oliveira Mello, das ocorrências havidas em sua viagem de Corumbá a esta cidade com a Força que comandava. – Deus Guarde a V. Exª Quartel do Comando da Guarnição da Capital, 03.05.1865. – Ilm° e Exm° Sr. –. General Alexandre Manoel Albino de Carvalho, Digníssimo Presidente desta Província. – Leopoldino Lino de Faria, Tenente-Coronel Comandante da Guarnição. – [Despacho] – Informe com urgência o Sr. Tenente-Coronel Comandante das Armas interino com o que lhe ocorrer acerca do relatório junto. Palácio do Governo de Mato Grosso, 04.05.1865. A. de Carvalho.
Conforme
Joaquim Felicíssimo de Almeida Louzada
Ilm° e Exm° Sr. – Tenho a honra de cientificar a V. Exª em breve relatório as ocorrências havidas em meu trajeto de Corumbá a esta capital, com a Força sob o meu comando.
No dia 2 de janeiro por ocasião da retirada das Forças Militares estacionadas em Corumbá, achando-me embarcado no vapor de guerra “Anhambahy”, nele subi o rio Paraguai às 09h00 pouco mais ou menos, passando pela escuna “Jacobina” que estava encostada à margem direita deste rio, em cuja escuna se achava quase todo o Corpo de Artilharia, 51 praças do 2° Batalhão de Artilharia a Pé, 7 praças da Companhia de Artífices, Guardas da Alfândega, diversos paisanos, e um grande número de mulheres e crianças de ambos os sexos. Passando, como o disse pela escuna as praças, que nela estavam, reclamaram com gritos, a minha presença na referida escuna. Querendo dar àquelas praças não só uma prova de humanidade, como de amizade e estima pela bravura com que se houveram nos ataques dos dias 27 e 28 do mês de dezembro p.p. ([1]) no Forte de Coimbra, dirigi-me ao Sr. Cel Comandante das Armas e pedi-lhe que me concedesse passar para aquela escuna a fim de dirigir as Forças que nela estavam o que me foi negado. De novo pedi-lhe, dizendo-lhe
Sr. Comandante das Armas, aquelas praças ainda não almoçaram até esta hora [09h30], não tem gênero nenhum para a viagem, e ademais são praças do meu Corpo e não tem junto a elas sequer um oficial para os dirigir.
Com isso obtive a concessão pedida, e mesmo o vapor andando mandou-se atracar um escaler e nele embarquei conjuntamente com o 2° Tenente Antônio Pauto Corrêa e o Sargento Quartel Mestre Antônio Baptista da Cunha, os quais se ofereceram para me acompanhar, e todos fomos lançados no barranco do rio um pouco distante da escuna. Tão logo saltei no barranco do rio mandei por algumas praças matar 3 reses, conduzi-las para a mencionada escuna, depois do que, embarquei num escaler e fui para Corumbá, e ali comprei ao negociante Nicola farinha e sal, e ao negociante Gines, bolachas; mandando logo embarcar no dito escalar os referidos gêneros. No meu regresso para o embarque passei no Quartel em que se havia aquartelado o 2° Batalhão de Artilhara, e aí achei um quarto com muitos cunhetes de cartuchame, e uma porção de barris cheios de pólvora encartuchada para Artilharia. Não achando nenhum outro meio de inutilizar cassa imensa porção de cartuxos tratei logo de formar um rastilho de pólvora até uma distância conveniente e daí pretendia, por meio do fogo, inutilizá-la. Nessa ocasião apareceram os negociantes estrangeiros Nicola e Bianchi e outros indivíduos também estrangeiros e pediram-me que não deitasse fogo à pólvora, que eles se comprometiam a deitar ao rio todos os cunhetes e barris, o que, em minha presença cumpriram; depois do que desci para o porto e embarquei no escaler com direção à escuna; entrando nela às 17h30 do já indicado dia 2, hora essa em que dei princípio à viagem mandando espiar ([2]) a dita escuna. Neste trabalho estive toda a noite de 2 para 3.
No dia seguinte [3], continuei o mesmo trabalho de espia até às 15h00 que, ventando fracamente no rumo que se seguia içou-se dos panos nos mastros da citada escuna, e andou-se com auxílio do vento até 18h00 do indicado dia. Às 17h45 o vigia do mastro de proa deu-me parte que um vapor Paraguaio subia o rio Paraguai e já se achava na altura do Ladário e minutos depois que havia fundeado no porto de Corumbá; e às 18h00, que um outro vapor aparecia na mesma altura que o primeiro, e mais logo que havia fundeado no mesmo porto; não havendo vento, e ainda mais que com o auxílio de espia muito morosamente se viajava, e finalmente que os vapores viriam à caça da Força embarcada na escuna, resolvi às 19h30 do dia em questão dar desembarque à Força e particulares, cuja resolução efetuei fazendo, depois der ter desembarcado toda a gente inclusive 4 marinheiros da tripulação, rodar a dita escuna e escaleres a ela pertencentes; tapando no barranco do rio o lugar do desembarque, colocando sentinelas trepadas era árvores; e fazendo finalmente acampar ao longo do barranco à margem esquerda do rio toda a comitiva, e aí passei a noite.
No dia 4, ás 05h00, pus-me em marcha com a Força pelos pantanais de Corumbá e às 10h00 do mesmo dia subiram o rio os dois vapores chegados a Corumbá no dia anterior. Em marcha continuada, desde o indicado dia 4, no dia 13, cheguei à Fazenda do Mangabal e ali acampei até o dia 17, em que resolvi acampar uma légua distante da Fazenda, pois que apenas contava duzentos e vinte e três cartuchos distribuídos à Força que comandava e nenhuma resistência podia fazer no caso de encontro com as Forças Paraguaias, o que era muito provável.
No dia 24, retirei-me do acampamento com destino à Fazenda do cidadão Salvador Corrêa da Costa, não só para comprar certos gêneros de que necessitava para alimentar as praças, como também indagar se era possível ir aos Dourados buscar cartuchame e cápsulas, visto ter eu sabido que depois da explosão havida nesse ponto, a Força Paraguaia que o ocupava se havia retirado. Dessa diligência nenhum resultado colhi, pois que nessa ocasião o referido ponto já se achava novamente ocupado.
Regressando no dia 25 para o acampamento em consequência do meu mau estado de saúde, tive de demorar-me na Fazenda do cidadão José Dias de Barros o resto do indicado dia 25 e o seguinte, podendo só seguir viagem às 15h00 do dia 27. Ao chegar à Fazenda do Mangabal e dela distante cerca de 70 braças, fui, pelo irmão de João d’Arruda Cunha em caminho encontrado e dele soube que uma Força de 300 paraguaios comandados por um capitão, um tenente e dois alferes achava-se já dentro da mencionada Fazenda, e logo ao chegar aí o citado capitão indagara de todas as pessoas onde eu me achava com a Força sob meu comando, dizendo logo que inteirado estava de que eu e a Força aí nos achávamos. Informado do que acima fica dito tomei nova direção em busca do acampamento e aí chegando às 19h00 não encontrei sequer uma praça; o acampamento havia debandado com a notícia da chegada da dita Força. Tomei a direita do acampamento em buscas das praças e seguindo sempre nessa direção, às 22h30, encontrei em um capão de mato 23 praças, algumas mulheres e crianças. Sendo essa hora já muito avançada e a campanha não se prestando ao trânsito de noite, aí fiquei, até 05h00 do dia 28, dando destino às pessoas aí enconcadas, pus-me novamente em campo a procura das demais praças. Enfim, desde a noite de 27 para 28, quotidianamente reunindo a Força, só no dia 13 de fevereiro o pude conseguir, somente tendo perdido 4 praças; destes fui informado que uma, voluntariamente, se apresentara à Força Paraguaia.
No dia 14 do mês de fevereiro, segui definitivamente a marcha subindo o rio Taquari, dispondo somente para esse efeito de um batelão que apenas suportava 26 pessoas e 2 montarias suportando cada uma 5 pessoas. Nessa ocasião minha comitiva compunha-se de 479 pessoas entre praças, paisanos, mulheres e crianças de ambos os sexos.
No dia 26 cheguei à Fazenda do Bracinho à margem esquerda do Rio Paraguai onde me refiz de víveres para a Força: depois do que prossegui por terra a marcha, passando pelos pontos S. Bento, Gonçalves, Piquiri, Santa Luzia, Carrente, Santo Antônio do Paraíso, Itiquira, Peixe de Couro, S. Lourenço, Tamanduá, Rebojo, Itaculumi, Aricá do Vila Mendes, Aricá e Coxipó; chegando neste último ponto no dia 30 fiz a entrada da Força.
Do Pessoal
Como é de supor depois de uma retirada tão desordenada como a que teve lugar no dia 2 de janeiro, a Força perdeu toda a disciplina, a ponto de dizerem as praças que tendo o Sr. Comandante das Armas as deixado como isca para a Força Paraguaia elas não se consideravam mais soldados, e assim que procurariam o rumo que lhes parecesse conveniente, assim pois, conclua V. Exª qual seria a dificuldade com que tive de lutar para conseguir apresentá-la a V. Exª com ordem e disciplina como me cumpria fazê-lo.
Tão logo me foi possível alimentar a Força, tratei de remilitarizá-la e discipliná-la, como antes ela se achava, o que, com inúmeros esforços e em um curto lapso de tempo, consegui, sendo necessário para isso fazer alguns castigos. Folgo em cientificar a V. Exª que a Força sob meu comando em número de 230 praças de todos os Corpos da Guarnição desta Província, 4 presos de justiça, 2 Guardas da Alfândega e um Amanuense de Polícia não cometerão o mais leve ato que prejudicasse e nem ofendesse a moralidade pública. Faltaria a um dever de gratidão e mesmo de justiça se passasse desapercebido tratar do 2° Tenente do 2° Batalhão de Artilharia a Pé Manoel Joaquim de Paiva, pelo zelo, dedicação e sérios esforços que sempre empregou em prol da boa ordem e disciplina que devia haver entre a Força no decurso de tão longa e penosa marcha por espaço de 4 meses.
Tratando do 2° Ten do mesmo Batalhão João Isidoro Chaves, tenho a informar a V. Exª que durante 14 dias que fez parte da referida Força, portou-se sempre bem e bastante me coadjuvou. Tratando finalmente do 2° Ten do Corpo de Artilharia Antônio Paulo Corrêa não posso deixar de bem informar a V. Exª qual o procedimento e conduta deste oficial. Este oficial, como acima disse, ofereceu-se para me acompanhar quando obtive permissão para dirigir a Força embarcada na Escuna. Longe de persuadir-me que ele seria o flagelo da Força e plantaria entre ela a desordem, fiquei satisfeito por ter mais um companheiro que comigo devia juntar-se para colocá-la ao abrigo dos inimigos, visto não ser possível fazer-se nessa ocasião uma resistência eficaz. Vi logo malogradas minhas esperanças, pois assim que entrou na escuna, deitou-se junto de uma mulher sobre a meia laranja ([3]), a vista da Força, e de um modo inteiramente imoral, sem que daí se levantasse e desse sequer providências acerca da marcha e provisões para a Força. Não ficou nisso.
No dia seguinte, às 09h00, este oficial passou-se para uma pequena montaria com 2 paisanos dizendo que em consequência de estar com os pés feridos, ia-me esperar no lugar denominado “Laranjeira” algumas léguas distante do lugar em que estávamos; não achando plausível a razão por ele apresentada, pois que sendo aquele lugar quase inabitado e falto de recursos, ainda mais que sendo a montaria muito pequena e por isso de pouca segurança e de nenhum cômodo, fácil, e mesmo provável era inflamar os pés e assim ficaria, senão inabilitado, pelo menos, quase para fazer a viagem pelos pantanais, o que era de supor segundo a presunção que havia, de que mais ou menos horas o inimigo estaria perseguindo a Força.
À vista pois do que fica dito, concluí que o referido 2° Tenente procurou aquele pretexto para melhor se escapar da garras do inimigo. Depois de 4 dias nos pantanais de Corumbá encontrei o dito 2° Tenente que em consequência de ter visto os vapores Paraguaios havia desembarcado da montaria e se refugiado no mato. Daí em diante encostou-se à Força, sem dela cuidar nem ter a menor ingerência.
Depois de se ter passado o Paraguai-Mirim, e em minha anuência, ordenara ele ao 2° Sargento do Corpo de Cavalaria Francisco Manoel d’Araújo Sobrinho obstasse a marcha das praças que se achavam atrás dele, cuja ordem fora intimada às praças, porém não fora observada, pois que elas marchavam ao meu alcance certas de que marchando eu sempre na frente com algumas praças ainda fortes em busca de alguma rês, era de supor matassem a fome que os devorava, de fato, assim acontecia, em consequência do que passou a maltratar com palavras injuriosas ao mencionado Sargento, e como este lhe observasse que ele o não podia maltratar por semelhante modo, fora ameaçado de que, se desse mais sequer uma palavra levaria um tiro, resultando de tal procedimento o indicado Sargento amedrontou-se e ausentou-se da Força, sendo este o único fato desta ordem que tive o desprazer de ver na Força sob meu comando.
Tendo eu chegado como disse, na Fazenda do Mangabal no dia 13 de janeiro, só no dia 14 à noite teve lugar a chegada deste 2° Tenente, tendo ambos saído à mesma hora do Paraguai-Mirim: sendo sua demora causada não por motivo justo, mas por pessoa que nem seu parente era.
Do exposto verá V. Exª qual o zelo, interesse e humanidade que este oficial teve para com a Força em questão. Assim, pois, nenhum fundamento achei e nem importância alguma dei a este oficial, quando apresentando-se na manhã do dia 15 disse-me que sendo ele o oficial mais antigo a ele competia o comando da Força.
Na manhã do dia 17 também de janeiro por ocasião de formar a Força para mudar de acampamento, apresenta-se ele mandando sair de forma as praças da 1ª Companhia do Corpo de Artilharia que outrora comandava, apenas saíram duas, não querendo mais nenhuma sair; à vista de semelhante recusa as demais praças que compunham a Força deram-me imensos vivas; depois do que, vendo-se ele desmoralizado e sem influência alguma, teve de retirar-se da frente da Força, passando depois a aliciar os Cadetes, Inferiores, Soldados, e mesmo paisanos para o acompanharem, a fim de fracionar a Força servindo-se para isso de calúnias contra mim, a ponto de dizer ao Fazendeiro João d’Arruda e Cunha que os conhecimentos de generais por mim a ele passados para fornecimento da Força nenhum valimento tinham pois que ele se oporia a seu pagamento com as etapas das praças.
Que um oficial de caráter honrado e circunspecto, num momento de raiva assim procedesse, releva-se, porém o oficial que tem em sua fé de ofício tristes e vergonhosas notas, não pode com vantagem buscar equiparar-se com aquele que ergue a fronte altiva por consciência íntima de sempre haver cumprido bem os seus deveres de homem e de soldado.
Aqui releva dizer a V. Exª que me abalanço a pedir-lhe para tomar na devida consideração os fatos acima expendidos, porque certo estou de que este oficial, dotado de uma alma mesquinha, de ações baixas como é, não olvidará exercer, servindo-se de sua autoridade, contra os praças do Corpo, que infeliz considero por possuir em suas fileiras semelhante oficial, qualquer ato de vingança.
Portaram-se com toda a subordinação, atividade e dedicação durante a marcha do Corpo de Artilharia, o Sargento Quartel Mestre Antônio Baptista da Cunha, 1° Sargento Luiz Antônio Vieira, Furriel José Pereira dos Guimarães e Sargento Coronheiro Sabino José Rodrigues; do 2° Batalhão de Artilharia a Pé, 1° Sargento Manoel Gomes de Menezes, o Particular 2° Sargento Bellarmino de Hollanda Cavalcanti; e do Corpo de Cavalaria, o Particular 2° Sargento José Lemos d’Almeida Falcão.
Ocorrências
Capturado na Fazenda de Santo Antônio do Paraíso o desertor de nome Martiniano Corrêa da Costa.
Na mesma Fazenda, por denúncia tive, mandei uma escolta de um Inferior e dezoito praças a um morro dela distante três quartos de légua, prender o 2° Cadete Delfino Luiz de Carvalho e Soldado Belizário da Costa Magalhães, ambos do Corpo de Cavalaria da Província, sendo o último implicado no assassinato de um Cabo do mesmo Corpo, tendo tido eles notícia de que eu fazia unir à Força as praças que em caminho encontrava, dias antes ao da minha chegada ali, se haviam refugiado. Apresentaram-se voluntariamente da deserção, da Armada ‒ o Imperial Marinheiro do vapor “Anhambahy” João Fernandes e do Batalhão de Caçadores da Província, o soldado José Rodrigues Pires.
Foi-me entregue pelo cidadão Antônio Dias na Fazenda de S. Pedro o ex-Cabo da Força Paraguaia Francisco Sardiê.
Marcharam encostados à Força os presos de Justiça do Forte de Coimbra Manoel Domingos, Joaquim Vicente, Antonio Pereira Leite e o índio Montó. Me é forçoso declarar que os referidos presos foram tirados das prisões, e junto a mim bateram-se com denodo em todos os ataques havidos no Forte de Coimbra, além disso durante a marcha, não tendo eles tido a menor sujeição quanto à prisão, aqui chegaram com toda a lealdade esperando e com toda a razão da munificência Imperial a recompensa de tantos trabalhos, e do valor que mostraram em defesa da Pátria.
Tive de comprar por conta da Fazenda Pública cinco cavalos para montar as praças enfermas que absolutamente a pé não podiam fazer a marcha, passando aos vendedores os competentes conhecimentos. Marcharam encostados à Força o Amanuense externo de Polícia Manoel Nonato da Costa Franco e os guardas da Alfândega Laurindo Antônio da Costa e Manoel Corcillo.
São estas, Exm° Sr., as ocorrências que se deram, e que tenho a honra de submeter à sabia consideração de V. Exª, pedindo, outrossim, que releve as lacunas de que vão inçadas.
Deus Guarde a V. Exª. Quartel em Cuiabá, 01.05.1865. – Ilm° e Exm° Sr. General Alexandre Manoel Albino de Carvalho, Presidente da Província – João de Oliveira Mello, 2° Tenente. (RIHMG N° 14)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 29.09.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
RIHMG N° 14. Relatório Apresentado pelo 2° Ten João de Oliveira Mello Acerca de sua Viagem de Corumbá à Capital [1865] – Brasil – Cuiabá, MT – Revista do Instituto Histórico de Mato Grosso n° 14, Tomos XVII e XVIII, 1927.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected]
[1] P.p.: próximo passado. (Hiram Reis)
[2] Espia: é o reconhecimento náutico realizado por uma embarcação menor que baliza a rota a ser seguida, no caso pela escuna, verificando a profundidade do leito do rio evitando que esta encalhe. (Hiram Reis)
[3] Meia laranja: escotilha guarnecida de parapeito que dá acesso às antecâmaras do navio. (Hiram Reis)
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