Jornada Pantaneira
Antonio João Ribeiro – Parte I
O Correio da Manhã n° 13.541, de 29.12.193, publica um excelente artigo enaltecendo os Heróis de Laguna e Dourados e faz uma sintética biografia do 1° Tenente de Cavalaria Antônio João Ribeiro:
Correio da Manhã n° 13.541
Rio de Janeiro, RJ – Quinta-feira, 29.12.1938
Resgata-se uma Dívida de Gratidão – Uma Síntese Histórica da Bravura de Antônio João e do Espírito de Sacrifício dos Retirantes da Laguna
O Brasil celebra hoje, num só monumento, duas façanhas heroicas: a morte de Antônio João, comandante da Colônia Militar de Dourados e a Retirada da Laguna, em plena Guerra com o Paraguai. Episódios distintos e separados um do outro por um espaço de mais do dois anos, eles se confundem, entretanto, no mesmo esplendor o no mesmo espírito de sacrifício pela Pátria. Para síntese dos acontecimentos memoráveis escolheu–se a figura do maravilhoso Tenente no dia da sua morte, enfrentando com 15 homens uma Força aguerrida que invadia o nosso território. É o primeiro capítulo da história daquela, luta titânica que durou cinco anos, escrito com sangue numa região deserta da fronteira, dando aos contemporâneos e aos pósteros o exemplo da intrepidez e da consciência cívica do nosso soldado. Começa aí, de forma galharda, o drama desencadeado no solo americano pela tirania lopista. Estamos a 29.12.1864. Dourados é uma Colônia Militar de vigilância brasileira, um posto avançado nas raias da Pátria, nada mais do que isso. Um alojamento fosco, alguns casebres esparsos, uma dúzia de homens sob o comando do um Tenente e nada mais. Em torno o deserto, o desconhecido, a desolação sem limites. É um ponto vulnerável para a investida do inimigo. Com ímpeto e um magote de soldados, os paraguaios, por aí pisaram a nossa terra para a invasão. Mas Antônio João à testa de 15 bravos está vigilante. Com eles vivos não passarão os paraguaios.
O Depoimento do Inimigo
Do livro “Antônio João”, do General Valentim Benício da Silva, a única obra completa sobre a personalidade do herói de Dourados escrita até hoje e na qual se encontra o que foi possível obter a respeito da sua vida, vamos citar alguns trechos que dizem eloquentemente do episódio magnífico.
Começaremos pelo testemunho do próprio inimigo, mais valioso do que qualquer outro no caso, porque reproduz a proeza com detalhes que só mais tarde o conhecimento dos fatos nos papeis oficiais brasileiros confirmou.
Da veracidade do episódio
afirma o brilhante historiador militar
Fala-nos porém o testemunho insuspeito do próprio inimigo. O nosso Instituto Histórico e Geográfico conserva intacta a coleção da folha paraguaia “El Semanario” publicada em Assunção antes e durante a guerra da Tríplice Aliança. É a esse precioso documento que vamos recorrer.
Em 31.12.1864, “El Semanario” estampava uma proclamação do Francisco Solano López a seus soldados. Em certo ponto dizia o ditador:
Por momentos se espera en la Asunción las noticias de triunfo obtenido sobre las fuerzas brasileñas de Coímbra, Miranda y Dorados donde deben operar las fuerzas nacionales. Esta ansiedad preocupa hoy vivamente al pueblo, es de creerse que no se dejará esperar muchos días sin que hayan pormenores de las operaciones de nuestros bravos y valerosos soldados.
Coimbra, Miranda, e Dourados são os pontos visados pelo ditador em seu plano de operações pelo sul de Mato Grosso. E efetivamente, passa-se apenas uma semana e o mesmo hebdomadário transcreve, na edição de 07.01.1865, a seguinte comunicação de Urbieta ao governo paraguaio:
іViva la República del Paraguay!
Señor Ministro
Con el debido respeto tengo el honor de dar parte a V. E., de que el 29 del que espira, he llegado en esta Colonia de los Dorados sin que fuese sentido por ningún individuo, y siendo divisado á corta distancia oí tocar una corta llamada, y tomando armas, marchó el Comandante con algunos hombres de resguardo; el Teniente de Infantería ciudadano Manuel Martinez, que llevaba el ataque, lo requirió de rendirse y respondió el Comandante brasilero que en caso de traerle orden del Gobierno Imperial, se rendiría, y si no, no lo haría de ninguna manera.
Con esta respuesta, pronto se trabó el combate, y el Comandante de Dorados, Teniente Antonio João Ribeiro, cayó con las primeras balas, lo mismo que dos individuos más, huyendo lo restante para el monto del arroyo, de donde fueron recogidos en número de doce, incluso un herido y un cabo, habiendo escapado lo demás de la guarnición con el segundo comandante.
De la tropa de mi mando solo el Teniente ciudadano Benigno Días ha recibido una contusión, y un soldado de infantería, herido. Tengo el, honor de acompañar á V. E. la cuenta de armas tomadas en esto punto. Por las declaraciones y por los papeles que he tomado se ve que hace más de dos meses que este punto estaba avisado de retirarse, cuando alguna fuerza paraguaya apareciere, siendo, según parece, esta disposición general en los otros destacamentos.
Dios guarde a V. E. muchos anos. Colonia, de Dorados, Diciembre 30 de 1864.
Martin Urbieta
A. S. E. el Señor Ministro de Guerra y Marina
Aí está, relatado, pelo inimigo vitorioso, o sacrifício espontâneo do soldado brasileiro. Tinha ordem de retirar-se, preferiu desobedece-la. Podia fugir: preferiu resistir no seu posto. Podia render-se ao número, preferiu lutar. Podia retirar-se combatendo, preferiu morrer. Da narrativa brasileira difere a informação paraguaia: com Antônio João apenas dois companheiros tombaram, outros doze fugiram para o mato, mas foram logo “recolhidos”. Mas quem sabe do furor sanguinário dos nossos inimigos, bem pode avaliar a sorte dos doze prisioneiros de que nunca mais houve notícias.
Talvez não tenham tombado ao lado do Antônio João, mas certamente a sorte inglória não lhes terá preservado do golpe com que morriam, “de morte natural”, os que caiam nas garras do bárbaro invasor. Mas o que importa, desta narrativa autêntica, é a homenagem de respeito com que o vencedor confessa o heroísmo do vencido. Não pode haver melhor nem mais eloquente testemunho.
O Glorioso Episódio
Como chegou até nós a narrativa desse episódio, tal como o conhecemos em toda a sua beleza? … O General Valentin Benício, ao compor a sua biografia, rebuscou todas as fontes. Percorreu os lugares sagrados onde tombaram os heróis, ouviu pessoas que poderiam dizer qualquer coisa de novo. Conversou com o tio Vieira, José Francisco Vieira, um velho rústico morador da localidade, homem da época, mas desmemoriado. O Visconde de Taunay que descreveu com minúcias a Retirada da Laguna, de que participou, pouco se refere a Dourados, no seu livro “Histórias Brasileiras”. Mas de alguma coisa serviu a indagação do General Benício. Serviu para confirmar a veracidade da descrição feita pelo falecido General Joaquim Silvério de Araújo Pimentel no seu livro “Episódios militares”.
E evidentemente o autor serviu-se de documentos autênticos, que ele cita e foram seus guias na reconstituição do sacrifício da Guarnição de Dourados, de que só sobreviveu uma testemunha, cujo destino parece apagado no anonimato que costuma ocultar os modestos sobreviventes aos lances épicos.
Assim, reproduziremos aqui a narrativa que nos parece mais verosímil, a que mais de perto coincide com informações de outras fontes e a que tem a autoridade do escritor da época, consagrado aos feitos que foram padrão de glória dos nossos antepassados na Guerra que sustentamos contra a tirania de Solano López.
Eis como o General Pimentel descreve o episódio heroico:
Antonio João Ribeiro, de quem se trata no presente capítulo, era Tenente de Cavalaria, comandante da Colônia Militar de Dourados, na Província do Mato Grosso. A 28.12.1864 teve notícia de que um destacamento do exército paraguaio, comandado pelo Coronel Barrios[1] [cunhado do ditador López], invadira pelo sul, aquela Província Brasileira, sem ter para isso havido previa declaração de guerra.
Uma explosão de santa indignação patriótica expandiu-se em sua alma, depois de ter sentido nela penetrar o encurvado espinho das terríveis novas de tão covarde e audaciosa invasão. Formulou na patriótica mente a quantiosa ([2]) soma de energia que os defensores do Forte do Coimbra deviam ter gasto, para depois se verem na extrema necessidade de abandoná-lo. Mediu o alcance magistral e estratégico da gloriosa retirada dessa centena de brasileiros que puderam iludir a vigilância, o cerco posto pelo inimigo à praça para deixá-lo pasmado da ousadia do feito; compreendeu depois qual a raiva e o furor do atacante ao ver-se logrado por algumas dúzias de homens que defenderam um Forte esfacelado, e, somando tudo isso, admirado de tanto valor, formou seu pequeno Destacamento de 16 homens.
Tomou dentre eles o que mais confiança lhe inspirou. Escreveu a lápis num pedaço de papel aquele tesouro de patriotismo, ordenando-lhe que a toda pressa, custasse o que custasse, fosse levar a notícia da invasão ao Tenente-coronel Dias da Silva, comandante do Regimento de Cavalaria da Província. Em seguida, mandou prevenir aos habitantes da Colônia Militar do Dourados do perigo que os ameaçava.
Ponderou-lhes que deviam fugir, quanto antes, levando o que de melhor possuíssem; que ele, Antônio João, ali ficava para demorar a marcha triunfal do inimigo [pois que obstá-la era impossível], até dar tempo de pôr-se a salvo a pequena povoação do local. Cerca do oitenta pessoas, em cujo número mais de setenta eram velhos, mulheres e crianças, aterrorizados e precipitadamente, mesmo obrigados por Antônio João, evacuaram de momento a Colônia.
Sumindo-se o último habitante dela no recinto longínquo do mato, onde se embrenhou, Antônio João sorriu de satisfação, murmurando talvez em sua consciência:
‒ Bem. Está cumprida a primeira parte de meu dever; a salvação das famílias dos colonos. Agora… resta-nos a resistência e a morte!
Olhou em seguida para seus quinze companheiros de armas. Que mundo de pensamentos não lhe afluiria na alma em tão supremo e soleníssimo momento? Que série de sentimentos desencontrados lhe não faria bater com violência o coração?
Só o sabem Deus e o túmulo onde gloriosamente jaz.
* * *
Tomou da espada e… formou toda a Força que comandava. Quinze homens apenas! Com sua pessoa completava o número de dezesseis defensores! É provável que ele tivesse dito a seus companheiros:
‒ Soldados e amigos. Sabeis já que os inimigos da Pátria, à falsa fé ([3]), estão de posse e dominam toda a região fluvial, do Rio Paraguai e São Lourenço, até a embocadura do Cuiabá, Coimbra, Corumbá, e outros pontos são deles. Sabei mais, que marcham contra a Colônia, Militar de Dourados, confiada à vossa guarda e defesa.
Eles contam-se por centenas, ou talvez milhares. Nós somos dezena e meia. Não podemos pensar em uma vitória por nosso lado. Toda a resistência que opusermos será apenas inicial, impotente. Devemos sucumbir à primeira descarga que contra nossos peitos dirigem. Quereis morrer pela Pátria e pela honra do Brasil?
Que responderiam aqueles quinze condenados a se deixarem esmagar pelo número e fuzilar pelas armas? Mistério! Ninguém o sabe, porque nenhum desses heróis sobreviveu a tão grande e gloriosa prova de resignação militar.
* * *
No dia 29.12.1864, portanto vinte e quatro horas depois que Antônio João tivera conhecimento do fato, o Capitão Urbieta, comandando a Expedição que devia atacar Dourados, apresentou-se à frente de 250 homens, mandando intimar aquele para que se rendesse.
‒ Traz ordem do Governo Imperial para que eu me renda, ou entregue a Praça?
‒ Não; mas trazemos 250 homens para tomá-la à força das arma.
‒ Então, meus senhores,
Respondeu o Tenente da cavalaria brasileira,
‒ Retirai-vos. Enquanto me bater este coração, filho do País em que pisais, só obedeço a intimação de meus próprios chefes e superiores!
E, voltando-se para seus companheiros, bradou:
‒ Preparar! Apontar!
E a uma descarga de 16 tiros respondeu uma descarga de 250 armas, e outra, e outra, cessando a fuzilaria porque não havia mais quem a ela respondesse.
* * *
Os paraguaios entraram na Colônia, voz em grita ([4]), triunfantes, onde acharam estendidos em linha 16 corpos do militares brasileiros. Mas… o cadáver de Antônio João, com um sorriso de desdém e desprezo que lhe pairava ainda no canto da boca, parecia repetir aquelas patrióticas palavras que são o monumento da honra e do patriotismo brasileiro:
‒ Sei que morro, mas o meu sangue e o de meus companheiros servirá de protesto solene contra a invasão do solo de minha Pátria. (CORREIO DA MANHÃ N° 13.541) (CONTINUA…)
Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 25.09.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.
Bibliografia
CORREIO DA MANHÃ N° 13.541. Resgata-se uma Dívida de Gratidão – Uma Síntese Histórica da Bravura de Antônio João … – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Correio da Manhã n° 13.541, 29.12.1938.
(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;
- Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
- Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
- Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
- Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
- Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
- Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
- Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
- Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
- Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
- Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
- Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
- Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
- Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
- E-mail: [email protected].
[1] Juan Felipe Barrios López. (Hiram Reis)
[2] Quantiosa: considerável. (Hiram Reis)
[3] À falsa fé: traiçoeiramente. (Hiram Reis)
[4] Voz em grita: com grande alarido. (Hiram Reis)
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