Jornada Pantaneira 

Hiram Reis e Silva -um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

A Medicina na Guerra do Paraguai – Parte XIV

A MEDICINA NA GUERRA DO PARAGUAI
(Mato Grosso)

LUIZ DE CASTRO SOUZA
Sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e Membro titular do Instituto Brasileiro de História da Medicina. 

XII

AOS MÁRTIRES DA MEDICINA MILITAR

Após a passagem da Esquadra brasileira pelas baterias de Humaitá, a 19.02.1868, o Marechal Solano López mandava que suas Forças Terrestres e Navais que se encontravam em Mato Grosso, se recolhessem ao território da República, o que se efetuou a 03.04.1868. Mais tarde, com a ocupação da capital do Paraguai, a 05.01.1869, pelo Marechal Marquês de Caxias, este reconheceu a necessidade de ser imediatamente restabelecida a comunicação fluvial com a Província de Mato Grosso. Assim, a 14 de janeiro, partia de Assunção uma esquadrilha de seis canhoneiras, sob o comando do Capitão-de-Mar-e-Guerra Aurélio Garcindo Fernandes de Sá, levando a bordo 250 praças do Batalhão de Sapadores, comandados pelo Major de Engenheiros Júlio Anacleto Falcão da Frota, com o fim de ocupar e fortalecer o Fecho dos Morros, ponto estratégico do Alto Paraguai. Aí chegando, o comandante Garcindo de Sá determina que os navios “Fernandes Vieira” e “Felipe Camarão”, subissem até Cuiabá, levando as notícias das vitórias brasileiras.

Estas duas canhoneiras ao tocarem em Forte de Coimbra, encontram-no abandonado, porém, em Co­rumbá, estavam a postos uns 200 homens coman­dados pelo Tenente-Coronel Antônio Maria Coelho [Barão de Amambai em 28.08.1889]. Continuam a subir o Paraguai e chegam à capital da Província de Mato Grosso, aos 03.02.1869, quando são festiva­mente recebidos. Uma multidão de cerca de duas mil pessoas aguardava os avisos, com bandas de música e salvas de artilharia, tendo à frente o Presidente da Província e o Bispo diocesano, quando foi cantado o “Te-Deum” em ação de graças, na Igreja de São Gonçalo. O povo cuiabano transbordava de contenta­mento, após longos anos de martírios e apreensões, sendo as notícias, trazidas pelas canhoneiras, das mais auspiciosas para os mato-grossenses.

Na ação guerreira que teve como cenário a Província de Mato Grosso, a população pagou um alto tributo de sofrimento, de miséria e de dor. Os nossos soldados, a maioria improvisados, demonstraram uma resignação jamais igualada, quando, sem armas e munições, enfrentaram o invasor da Pátria, com heroísmo e abnegação.

Cabe aos médicos militares, igualmente, uma parcela ponderável no êxito daquela resistência gloriosa, pois encontravam-se sempre firmes em seus postos, nos combates, nas longas marchas, nas retiradas, nas epidemias, nos pantanais, nos pontos de resistência, nos vapores e em toda a parte que se fazia neces­sária a sua presença. Preveniam as infecções, sanea­vam os acampamentos e combatiam as enfermida­des, curavam os males e praticavam intervenções cirúrgicas, sedavam as dores e confortavam os enfermos quando nada mais seria possível fazer. Os médicos transfixavam calor humano, onde tudo era sofrimento e desespero, como autênticos sacerdotes do corpo.

Nesse momento, quando recordamos com sincera homenagem os heróis da Medicina Militar Brasileira, lembramos, por igual, um médico francês que foi convocado para Primeira Guerra Mundial: Dr. René Dumesnil. Serviu no posto de Major e atuou como Médico de Batalhão, Médico-chefe de um Regimento de Infantaria e depois de um Regimento de Cavalaria. Anos após, dedicou páginas de um dos seus trabalhos (DUMESNIL), às reminiscências do período de Campanha que nos revelou toda a realidade tétrica.

Teve oportunidade de evocar suas revoltas contra a destruição e a improvisação; a preocupação de ter medo e faltar coragem na ocasião necessária; regis­tra episódios de uma retirada vendo camponeses fugindo, moribundos à beira da estrada, velhos cujo sofrimento se agravava pelo fato de a morte surpre­endê-los longe de casa, onde resignadamente a teriam esperado; crianças chorando de fome e mães cujos seios secaram e não podiam mais alimentar seus filhos.

Diante daquele quadro dantesco, ele compreendera que o seu tormento soara; a hora exata em aceitar com realidade sua parte de sofrimento e de angústia. Relembra certas circunstâncias que deram às palavras a sua plena concepção: Morrer no seu posto. Então, viveu dias iguais ao do trapista ([1]) que medita sobre a morte, não no silêncio do claustro mas no reboliço da tropa e no troar dos canhões. Cada minuto que passava representava apenas uma pausa, um momento de graça. E, escreveu, textualmente:

Morre ou mata. Para quem combate, morrer é um dos termos do dilema, mas é o termo que se esquece. O médico deve conservar as mãos vazias e a mente calma entre os que retesam os braços sobre uma arma e o pensamento sobre um único ato: matar. Ele é a testemunha sóbria de uma orgia sangrenta. Arrisca a sua sorte e tem parte no perigo, mas sem o reverso. Seu dever sem embriaguez é mais austero que do soldado. Começa onde o outro cessa, no momento em que o ferido se entrega às mãos caridosas que o arrancam do inferno. Entre a batalha e o ferido, é o médico que se interpõe.

Em outro trecho ele fala do dever do militar de empedernir-se, dominar os nervos, entretanto, acrescenta:

não ao ponto do endurecimento que, banindo toda sensibilidade, faz do homem uma máquina de cortar todas as coisas, agir, raciocinar, segundo princípios rígidos e leis imutáveis, impõe uma disciplina na qual o coração não tem lugar. Empedernir-se, mas não até a frieza. O dever ordena. Obedece-se. Não se discute, não se transgrede.

Sabia que cada um representava a ínfima peça de uma engrenagem que dependia de todos para fun­cionar bem. E conclui o Dr. Dumesnil:

Os feridos, os doentes esperam de nós não só os cuidados materiais que farão desaparecer na medida do possível seus sofrimentos e seus males corpó­reos, como ainda outra coisa que os regulamentos não podem definir e que se encerra em uma palavra: humanidade.

Esses conceitos são atualíssimos para a evolução da medicina, ou melhor, para a crise que a medicina atravessa, quando a arte e ciências médicas perdem o seu caráter humanitário, forçada pela tecnologia exagerada, distanciando-se do alto sentido que vem atravessando os séculos.

Mas o grande drama vivido por esse médico francês, em sua experiência de guerra, foram, sem dúvida, aqueles três dias e três noites passados em Sézanne, local estabelecido para ser instalado um hospital de evacuação. Os feridos chegavam constantemente e eram colocados no pátio perto de uma estação férrea. Não havia meios de transportes, apenas os trens de munições e de gado, que depois de desocupados eram aproveitados na remoção dos doentes.

O Dr. René Dumesnil fora designado para fazer a seleção dos que estavam em condições físicas de viajar e os que eram irrecuperáveis, isto é, ficar para ali morrer; outros que a imediata intervenção cirúrgi­ca lhes assegurassem alguma probabilidade de so­brevida, enviava para o hospital improvisado ali em Sézanne, pois, o hospital já se encontrava repleto de feridos. Fora-lhe uma tarefa das mais cruéis, cujas páginas comovidas revelam o seu tormento, pois, os doentes compreendiam a situação e erguiam para ele um olhar de expressão jamais esquecida,

olhar de infinito desânimo e súplica desesperada.

Utilizava a “piedosa mentira” de que nos ensinou o nosso imortal Miguel Couto e muitas vezes falava o linguajar das crianças para ser também entendido. Para Dumesnil era uma vigília mais angustiosa que um pesadelo, e diz:

Quantas vezes, nessa noite, ali o desânimo e o pavor no olhar dos que não podiam partir, dos que meu gesto privava do que tinha sido toda a sua esperança durante horas de agonia, mais demoradas do que anos? Quantas vezes olhos condenados a se fechar para sempre à luz, dirigiram-me uma súplica que me torturava?

Lá estava, escreve Dumesnil,

investido da função que maldizia porque ela me tornava mais do que um homem e, no entanto, um homem acabrunhado pelo cumprimento de seu inexorável dever.

E qual o dever desse médico militar? Não permitir o embarque daqueles que não podiam suportar uma longa viagem e enviar para o hospital de Sézanne somente os doentes estritamente recuperáveis; os demais tinham que permanecer ali esperando o de­senlace, apenas assistidos e sedados pelos médicos. E surgia o dilema anterior e a dúvida em ter acertado os diagnósticos, na seleção realizada, e indagava o médico francês:

Mas a minha opinião é infalível? Meus conhecimentos tão seguros que eu possa escolher sem duvidar um instante, sem refletir?

E após injetar uma dose de morfina em um ferido desenganado, que antes lhe suplicara para deixá-lo partir, o Dr. Dumesnil vendo-o adormecido, faz-lhe uma confissão, cuja bela página de súplica e de perdão, não podemos deixar de transcrever, na íntegra, pois, representa todo o sentimento e ternura do seu coração:

Meu irmão, se me vês, se sabes que estou junto de ti, perdoa-me a recusa que inda há pouco tive de fazer ao teu desejo mudo, teu último desejo. Perdoa-me. Não sou um monstro; sou um homem como tu e que sofre porque compartilha o teu sofrimento. É verdade que não suportaria martírio igual ao teu. Comparado a ti sou um felizardo.

Meu corpo está são e salvo e se move na plenitude da vida, enquanto os teus olhos se anuviam, a tua razão se escurece. Mas é minha razão que esta noite me faz sofrer, é este triste poder, do qual te julgaste vítima inocente, que me acabrunha. Ele não partiu de mim.

Outrora, quando me iniciava na arte de aliviar a dor, não imaginava que chegasse o dia em que este saber penosamente adquirido causasse o meu suplício pelos seus limites e pela sua impotência. Desejaria ter a certeza de que fui para ti, esta noite, um pouco mais do que o médico do corpo e que eu soube abrandar tua aflição moral como acalmei tua carne dilacerada. Desejaria que tivesse sentido perto de ti, na falta da ternura materna que imploravas, a ternura fraternal que eu te oferecia.

Compreendeste, não é assim? E levas, ao fechar os olhos para sempre, a imagem de um amigo debruçado sobre ti, de um amigo que não conhecias, mas que, no momento solene em que a Morte absolve de toda mentira, te deu sinceramente o que ele tinha de melhor em si.

Dumesnil recorda que no pátio em que se aglome­ravam os feridos, duvidou poder desempenhar sozinho a tarefa de seleção, diante de tanta súplica, desespero, dor, gemido. E naquele exato momento havia entre os enfermeiros militares, o vigário de uma paróquia de Etampes, cujo desempenho de seu serviço de guerra não fazia esquecer a sua missão sacerdotal. Encontrava-se perto do médico militar e sentiu a sua angústia, seu sofrimento, suas dúvidas em face da limitação de sua ciência de curar. Chegou-se mais perto dele e disse-lhe:

Tu quoque sacerdos, medite… Deus docet manus tuas.

Era o que faltava na “alma do médico” René Dumesnil, fortalecendo-o numa hora mais terrível do que o cenário de miséria e de dor da própria guerra…

*   *   *

A Província de Mato Grosso, na Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, oferece em holocausto à Pátria, preciosas dádivas do Serviço de Saúde das Forças Armadas do Brasil, profissionais autênticos e heróis consagrados, cujos nomes deverão ficar eternamente em nossos corações e, principalmente, daqueles que tombaram no cumprimento do dever. Os heróis e mártires de Mato Grosso, se completam em nossa admiração e reconhecimento aos demais companheiros que na frente principal da guerra no Paraguai também foram sacrificados quando prestavam seus serviços profissionais aos nossos soldados e marinheiros (CASTRO SOUZA, 1937).

O Chefe do Corpo de Saúde da Esquadra em Operações no Paraguai, Cirurgião-Mor da Armada, Dr. Carlos Frederico Dos Santos Xavier Azevedo, diz em seu precioso livro (AZEVEDO, 1870), com a autoridade do cargo e o conhecimento ocular de quem esteve presente a todas as solicitudes da guerra:

Foi o cirurgião militar, a par do soldado, um dos principais protagonistas desta memorável Campa­nha, porque foi este em quem o soldado e mari­nheiro encontravam lenitivo a seus sofrimentos, quando, tendo por leito a relva do campo e por abrigo a fraca barraca ou o convés do navio, era visto, dia e noite, depois de renhidos combates, ou curando-os dos seus honrosos ferimentos, ou expon­do-se, quase sempre, aos resultados fatais de de­vastadoras epidemias.

Eis, a seguir, os nomes dos que merecem o tributo da eterna gratidão da Pátria, pelo dever cumprido em defesa da província de Mato Grosso:

        • 2° Cirurgião 2° Tenente, Dr. José Cândido de Freitas e Albuquerque – valente e bravo, cuja gloriosa morte, na Anhambhay, a 06.01.1865, representa o primeiro médico, mártir e herói da Guerra do Paraguai;
        • Capitão 1° Cirurgião, Dr. Antônio Antunes da Luz – a primeira vítima do Serviço de Saúde do Exército Brasileiro, aprisionado pelos paraguaios, no vapor “Marquês de Olinda”, vindo a falecer de inanição, a 06.12.1867, depois de um cativeiro cruel;
        • Capitão 1° Cirurgião, Dr. Teófilo Clemente Jobim – extraviado na Retirada de Corumbá e capturado pelo inimigo e levado para o Paraguai, onde padece os horrores do cativeiro e falece vitimado pela cólera, em fevereiro de 1868;
        • Capitão 1° Cirurgião, Dr. Benvenuto Pereira do Lago – um dos heróis da epopeia do Forte de Coimbra e extraviado a caminho de Cuiabá, quando foi feito prisioneiro dos paraguaios, tendo sucumbido em terras estrangeiras como autêntico mártir;
        • Tenente 2° Cirurgião, Dr. José Antônio Dourado – atuou desde o início da guerra, em Mato Grosso, vindo a falecer por doença contraída em campanha, a 03.02.1868;
        • Tenente 2° Cirurgião, Dr. Manoel João Dos Reis – aprisionado e levado para o Paraguai, quando enfrenta o pelotão de fuzilamento, no mês de janeiro de 1868, morrendo como mártir e seu pensamento voltado para a Pátria, para honra do Brasil e símbolo da medicina militar brasileira;
        • Alferes Farmacêutico Tobias Alvim Do Amaral – falecido de beribéri ao sair da Vila de Miranda, quando viajava com licença a fim de recuperar-se na Corte [Rio de Janeiro];
        • Alferes Farmacêutico Reginaldo José De Miranda – tombado no posto de honra na epidemia de varíola, em Cuiabá, depois de ter atuado em várias unidades sanitárias da guarnição de Mato Grosso, durante a guerra;
        • Soldado João Pacheco Da Costa – da Companhia de Enfermeiros na Retirada da Laguna, vitimado no cumprimento sagrado do dever.

Estes heróis e mártires são pela vez primeira, rela­cionados e proclamados, enriquecendo e enchendo de orgulho a historiologia médica nacional, para ufa­nia da Medicina Militar e glória da Pátria Brasileira. […] (SOUZA)

Por Hiram Reis e Silva (*), Bagé, 22.09.2023 – um Canoeiro eternamente em busca da Terceira Margem.

Bibliografia    

SOUZA, Luiz de Castro. A Medicina na Guerra do Paraguai (I a V) – Brasil – São Paulo, SP – USP, Revista de História, 1968, 1969 e 1970.   

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;   

  • Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)
  • Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);
  • Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);
  • Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);
  • Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)
  • Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);
  • Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);
  • Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);
  • Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)
  • Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);
  • Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)
  • Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).
  • Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).
  • E-mail: [email protected].

[1]    Trapista: pertencente ou relativo à ordem religiosa da Trapa. A ordem da Trapa, na França, é uma ramificação beneditina fundada em 1140, cujos membros observam o silêncio, praticam a contemplação e rigorosa penitência. (Francisco da Silva Borba. Dicionário UNESP do Português Contemporâneo)

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