O Projeto de Lei – PL nº 2.903/2023, que tramita no Senado Federal e trata, dentre outros temas, do marco temporal para a demarcação das terras indígenas brasileiras, foi incluído na pauta da reunião da Comissão de Agricultura e Reforma Agrária do Senado Federal desta quarta-feira (16). A relatora do PL nº 2.903/2023, senadora Soraya Thronicke, manifestou-se favoravelmente à aprovação da proposta. No dia 30 de maio, o projeto de lei, registrado como PL nº 490/2007, foi aprovado em regime de urgência pela Câmara dos Deputados.

A tese jurídica do marco temporal condiciona a demarcação das terras tradicionais dos povos indígenas à sua efetiva ocupação na data da promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988. Essa tese ignora o longo histórico de esbulho possessório e violência praticada contra os povos indígenas, acarretando a expulsão de seus territórios, além de violar os direitos indígenas previstos na própria Constituição Federal e em tratados internacionais dos quais o Estado brasileiro é signatário.

De acordo com a Constituição Federal, as terras indígenas são bens da União e de usufruto exclusivo dos povos indígenas. Elas são bens inalienáveis e indisponíveis, ou seja, não podem ser objeto de compra, venda, doação ou qualquer outro tipo de negócio, sendo nulos e extintos todos os atos que permitam sua ocupação, domínio ou posse por não indígenas. Outro ponto importante é o fato de que os direitos dos povos indígenas sobre suas terras são imprescritíveis. Desse modo, a Ordem Constitucional vigente reafirma o Princípio do Indigenato, que significa que os direitos dos povos originários sobre suas terras antecedem a própria formação do Estado brasileiro.

A forma acelerada como o projeto de lei tem tramitado, sem consulta aos maiores interessados na questão, os povos indígenas, além de ser inconstitucional, também é contrária à Convenção nº 169/1989 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Esse tratado internacional de direitos humanos foi ratificado pelo Brasil e prevê que os povos indígenas têm o direito à consulta livre, prévia e informada sobre quaisquer medidas administrativas ou legislativas capazes de impactar seus modos de vida, sendo dever dos governos proceder às consultas com boa fé.

Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados no dia 16 de maio, a presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, já chamava a atenção para as ameaças do projeto de lei aos direitos indígenas. “A demarcação de terras é um direito dos povos indígenas e um dever constitucional do Estado brasileiro, realizado pela União, mais especificamente pela Funai. O PL nº 490/2007 e seus projetos apensados são um risco. Em nenhum momento, por exemplo, teve-se o cuidado de consultar os povos indígenas sobre as propostas, o que é exigido pela Convenção nº 169, da qual o Brasil é signatário. Esse projeto sequer poderia tramitar nesta Casa”, alertou.

O marco temporal é inconstitucional e também vai contra o entendimento do Ministério Público Federal (MPF), que se manifestou por meio de uma nota publicada pela Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF) em 29 de maio. Segundo o MPF, o projeto de lei “representa uma ameaça ao direito das populações originárias ao seu território”, o qual “constitui cláusula pétrea e integra o bloco de direitos e garantias fundamentais que não podem ser objeto sequer de emenda constitucional”. O MPF alerta ainda que, em caso de aprovação, o marco temporal consolidaria inúmeras violências contra os povos indígenas, como remoções forçadas de seus territórios, confinamento em pequenos espaços territoriais e apagamentos identitários históricos.

A tese do marco temporal está em disputa também no Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito do Recurso Extraordinário – RE nº 1017365, que possui repercussão geral e pode afetar dezenas de outros casos semelhantes. O defensor público federal Bruno Arruda, que representa a Defensoria Pública da União (DPU) e os indígenas no caso, argumenta que, independentemente de qualquer lei, a terra é deles. “Esse direito já existia, inclusive, antes de toda e qualquer Constituição”. Já a defensora pública federal Daniele Osório, do Grupo de Trabalho Comunidades Indígenas na DPU, lembra que, “na década de 80, muitos povos haviam sido expulsos de seus territórios e estavam sendo ameaçados. Por isso, na promulgação da Carta Magna, não ocupavam a terra que hoje precisa ser demarcada”.

Serviços Ambientais

Em 2021, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) e o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe (FILAC) publicaram o relatório “Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais e a Governança Florestal”, que reúne 300 estudos científicos publicados sobre o tema nas últimas duas décadas. A compilação demonstra que as taxas de desmatamento nas florestas da América Latina e Caribe são significativamente menores em áreas indígenas e tradicionais cujos direitos territoriais coletivos foram formalmente reconhecidos pelos governos. No Brasil, as taxas de desmatamento dentro de terras indígenas são cerca de 2,5 vezes menores do que fora delas, demonstrando que os povos indígenas são os melhores guardiões das florestas.

O Projeto de Mapeamento Anual do Uso e Cobertura da Terra no Brasil (MapBiomas), que reúne universidades, instituições de pesquisa e organizações da sociedade civil, corrobora os achados da FAO/FILAC. As terras indígenas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa nos últimos 30 anos, enquanto nas áreas privadas essa supressão foi de 20,6%. De 1990 a 2020, foram desmatados um total de 1,1 milhão de hectares em terras indígenas, ao passo que o desmatamento em áreas privadas foi de 47,2 milhões de hectares. “Os dados de satélite não deixam dúvidas de que são os indígenas que estão retardando a destruição da floresta amazônica. Sem seus territórios, a floresta certamente estaria muito mais perto de seu ponto de inflexão, a partir do qual ela deixa de prestar os serviços ambientais dos quais nossa agricultura, nossas indústrias e cidades dependem”, explica Tasso Azevedo, coordenador geral do MapBiomas.

De acordo com o referido relatório da FAO/FILAC, as florestas governadas por comunidades indígenas e tradicionais na bacia amazônica armazenam cerca de 34 bilhões de toneladas métricas de carbono, o que equivale a 14% do carbono armazenado nas florestas tropicais de todo o mundo. Entre 2000 e 2016, os territórios indígenas perderam menos de 0,3% do carbono armazenado em suas florestas, enquanto outras categorias de áreas protegidas perderam 0,6%, e as áreas não protegidas apresentaram perdas de 3,6%. Embora as terras indígenas representem 28% da área da bacia amazônica, apenas 2,6% das emissões brutas de carbono são provenientes desses territórios no referido período.

Portanto, tais serviços ambientais prestados pelos povos indígenas são extremamente relevantes para os compromissos de redução das taxas de desmatamento e de emissões de gases do efeito estufa assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional. Nesse sentido, a FAO e o FILAC fazem algumas recomendações a fim de frear as ameaças aos territórios e povos tradicionais: fortalecimento de seus direitos territoriais, promoção da gestão florestal comunitária, apoio à governança territorial e às organizações comunitárias, compensação por serviços ambientais, e reafirmação da cultura e dos conhecimentos tradicionais. A tese do marco temporal é justamente um contrassenso por ferir a primeira premissa, ou seja, restringir os direitos territoriais indígenas.

Julgamento no STF

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, nesta segunda-feira (14), que o ministro André Mendonça poderá participar do julgamento que trata da constitucionalidade do marco temporal para a demarcação de terras indígenas.

A questão foi analisada a partir de uma questão de ordem suscitada pelo próprio ministro, autor do pedido de vista que suspendeu o julgamento do caso, em junho.

Durante o período de tramitação do processo na Corte, André Mendonça não pertencia ao Supremo e exercia a função de advogado-geral da União. A questão era saber se o ministro está impedido de participar da votação.

Conforme entendimento da maioria dos ministros, o impedimento ocorre somente no julgamento do caso específico que gerou a discussão, não atingindo a tese constitucional.

A votação ocorreu no plenário virtual, modalidade na qual os ministros inserem seus votos no sistema eletrônico da Corte e não há deliberação presencial.

A expectativa é que Mendonça possa liberar o processo para julgamento antes da aposentadoria da presidente da Corte, Rosa Weber, em setembro. Em junho, após o ministro pedir vista e suspender o julgamento do marco temporal, a presidente disse que quer votar antes de se aposentar.

O placar do julgamento está em 2 votos a 1 contra o marco temporal. Edson Fachin e Alexandre de Moraes se manifestaram contra o entendimento, e Nunes Marques se manifestou a favor.

Assessoria de Comunicação / Funai / Marco Temporal: Uma ameaça aos direitos indígenas no Brasil — Fundação Nacional dos Povos Indígenas (www.gov.br)

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